Luís de Freitas Branco não teve uma educação formal, tendo beneficiado de um ensino particular em todas as áreas do saber — um modelo de formação expectável, considerando o meio social aristocrático em que se inseria. A educação particular, com o contributo de uma perceptora e do tio João de Freitas Branco, não impediu Freitas Branco de contactar com as tendências internacionais, tendo em conta a sua profunda e prolongada aprendizagem com Désiré Pâque — que o terá introduzido às teorias de Vincent d’Indy — e com Luigi Mancinelli. Passagens por Berlim e Paris facilitaram o contacto com as grandes correntes estéticas do início do século XX e o maior convívio com outros músicos portugueses, também eles de passagem ou radicados fora do país, como José Viana da Mota (DELGADO et al. 2007).
À chegada, instalaram-se numa boa pensão […]. No dia seguinte, Freitas Branco tomava contacto com dois portugueses ilustres então residentes em Berlim: José Viana da Mota e Francisco de Andrade […] / A 17 de Fevereiro, e por intermédio de Viana da Mota, foi apresentado a Engelbert Humperdinck, professor de Composição na Hochschule. (ibid.: 40)
Desse contacto, estabelecido precisamente nos primeiros dias da estadia de Luís de Freitas Branco em Berlim, terá surgido tanto a ênfase que este dará à divisão entre culturas latinas e germânicas e ao retorno a uma época clássica (VIANA DA MOTA 1941), como uma relação de confiança que viria a permitir a associação do ainda muito jovem Freitas Branco a Viana da Mota na remodelação do ensino artístico e na direcção do Conservatório Nacional a partir de 1919, já depois de integrar o corpo docente desde 1916 como professor de Leitura de Partituras, Realização do Baixo Cifrado e Acompanhamento. Contudo, de acordo com um texto de Joly Braga Santos sobre Luís de Freitas Branco e António Fragoso, a carreira de Freitas Branco no ensino parece ter começado uns anos antes da sua entrada para o Conservatório; segundo esse relato, Fragoso terá começado a sua aprendizagem particular com o mestre em 1913, motivado pela estreia de Paraísos artificiais (BRAGA ANTOS 1960). Ana Telles atribui a responsabilidade da maioria das alterações curriculares resultantes da reforma do Conservatório a Freitas Branco, mencionando que fora precisamente por iniciativa dele que o ensino musical na instituição sofrera alterações profundas nestes anos — até 1930 —, criando-se um ensino musical com vista à formação do músico também enquanto intelectual, reflectindo uma crença na simultaneidade entre o carácter artístico e o carácter científico da música, além da própria reestruturação dos cursos de instrumento. A centralidade do conhecimento e da investigação musicológica foi desde cedo assumida por Luís de Freitas Branco, materializando-se numa batalha que travará ao longo de toda a carreira, ela própria assente na ideia de música prática e de musicologia enquanto dimensões intrínsecas na formação de um músico que procure verdadeiramente desempenhar um papel relevante no contexto cultural.
A reforma do ensino musical de 1919 surge na continuação de outras anteriores, como a de 1898, que deu início aos cursos gerais e superiores nos vários instrumentos e canto, bem como a aulas de Música de Câmara, Orquestra, Coro, Língua Italiana, História da Música, Literatura Musical e Harmonia, e a de 1901, em que foi introduzida a disciplina de Acompanhamento ao Piano, com uma dimensão de leitura de partituras.
Contudo, apesar das reformas anteriores, segundo Ana Paz (2014) relacionadas com ideologias republicanas de evolução do ensino musical, continuava a persistir um ensino insuficiente, ou “árido” nas palavras de Joaquim Carmelo Rosa (2010), sendo as verdadeiras inovações levadas a cabo apenas em 1919:
Entre as inovações plasmadas neste Decreto, destacam-se as seguintes: a inclusão dedisciplinas de Cultura Geral (História, Geografia, Línguas e Literatura francesa e portuguesa); a criação da Classe de Ciências Musicais, dividida em História da Música, Acústica e Estética Musical; a introdução de uma nova disciplina de Leitura de Partituras; a adopção exclusiva do Solfejo entoado ao invés do “rezado”; a divisão dos diferentes cursos de instrumento de canto e de composição em três graus distintos: elementar, complementar e superior; o aumento de duração do curso de música vocal, sendo que, “atingindo o terminus do grau complementar”, haveria ainda “dois ramos: o de canto teatral e o de concêrto”; o aumento da duração do curso de piano em um ano, prevendo-se igualmente, “para os alunos que hajam mostrado excepcionais aptidões de concertistas, uma nova cadeira, a de virtuosidade, onde se prolongam e aperfeiçoam os estudos realizados no curso superior”; a determinação de que “nas aulas cuja base haja de ser o ensino individual limita-se a oito o número de alunos em cada turma”, aumentando-se “o tempo de lição directamente recebida” para “meia hora por semana, mais do que na quási totalidade dos conservatórios estrangeiros”; a instituição do “ensino da composição em cadeira separada e o de regência de orquestra, instrumentação, acústica e estética musical”; a possibilidade de abertura de cursos livres para todos os instrumentos; e a criação de uma importante fonte de receitas para subsídios e bolsas a alunos carenciados proveniente do aumento de propinas efetuado (NOGUEIRA 2016:23-4).
No entanto, além de estabelecer medidas precocemente desmanteladas, esta reforma seria, conforme é mencionado uns anos mais tarde por Luís de Freitas Branco nas páginas do Eco Musical (FREITAS BRANCO & MACHADO 1923), apenas uma parte de uma reformulação de todo o ensino musical nacional, nos vários ciclos e tipos de instituição, sendo particularmente relevante a centralidade das Ciências Musicais num ensino que, anteriormente, se pautava quase exclusivamente pela formação virtuosística do instrumento ou pelo ensino da composição, preconizando as Ciências Musicais como haveriam de ser fundadas, no âmbito universitário, somente na década de 1980. Como manuais para a disciplina de Ciências Musicais, Luís de Freitas Branco publica, em 1922, Elementos de Ciências Musicais, três volumes dedicados a cada uma das componentes da disciplina: Acústica, História da Música e Estética. No prefácio da primeira edição, Freitas Branco insere-se na linhagem da emergente musicologia alemã, de figuras como Friedrich Chrysander, Guido Adler, Hugo Riemann, entre outros, afirmando nestas páginas a relevância que era já dada às Ciências Musicais noutras geografias.
Nestes volumes, a persistência de algumas ideias comparativamente a escritos anteriores — ou mesmo posteriores — de Luís de Freitas Branco demonstra precisamente uma filosofia da história que parece não se ter modificado substancialmente ao longo do tempo. A par com a ideia de que “a história da música não é senão uma constante oscilação entre os dois polos opostos: a polifonia, ou combinação de várias melodias, e a homofonia ou predomínio de uma melodia” (FREITAS BRANCO 1931:39), ou seja, de que essa se divide em períodos clássicos e racionais, e períodos românticos e irracionais, verifica-se a defesa da “portugalidade” de determinados géneros, como havia feito em 1915 aquando das conferências da Liga Naval Portuguesa, organizadas pelos doutrinários do Integralismo Lusitano (PINA 2016). Além da repetição dos que acabam por se tornar lugares-comuns na argumentação de Luís de Freitas Branco sobre compositores portugueses e a sua genialidade, o volume sobre História da Música apresenta também ideias muito enraizadas do autor no que se refere a compositores estrangeiros. A ideia inerente a toda a obra de que a história fora construída e evoluída pelas mãos de grandes génios faz com que a dedicação aos muitos compositores mencionados seja desigual, ou seja, enquanto a uns são dedicadas umas meras linhas, sobre outros são escritos capítulos inteiros. Beethoven e Wagner são os casos mais flagrantes, constando nas páginas de Luís de Freitas Branco como as grandes figuras da música ocidental. E se Beethoven é tido como o apogeu da música sinfónica, Wagner é descrito como “o maior músico dramático de todos os tempos, o reformador da ópera moderna, continuador da obra de Gluck, e criador do drama lírico moderno” (FREITAS BRANCO 1931:97). A sua nítida inclinação wagneriana, patente nos seus escritos desde a década de 1910, produzidos em contextos em que a sua devoção poderia parecer paradoxal — como no seio do movimento anti-germanista do Integralismo Lusitano — leva-o inclusivamente a considerar, talvez até inconscientemente, que depois de Wagner nenhum outro compositor merecia tanto espaço na sua história. De facto, os compositores contemporâneos e posteriores a Wagner são apenas muito resumidamente referidos, quase em formato de lista.
Muito mais curto que os outros dois volumes, e apenas publicado na primeira edição dos Elementos de Ciências Musicais, o volume sobre Estética Musical prova-nos também a persistência de certos temas na escrita de Luís de Freitas Branco. Neste volume, o autor acaba por demonstrar, tal como sucede nas páginas sobre Acústica ou História, uma visão parcial do pensamento sobre música, repetindo modelos como a associação da tristeza e da escuridão a acordes menores, e a associação da alegria e da luminosidade a acordes maiores, juntamente com a relação entre o tempo forte e a masculinidade, e o tempo fraco e a feminilidade, ficando igualmente bem clara a centralidade que sempre conferiu à forma-sonata, aliás como a toda a ideia de forma, corroborando o seu caminho em direcção ao que ficou conhecido como um investimento no neoclassicismo através da forma-sonata e do género da sinfonia. Através da sua obra teórica, Freitas Branco construía, portanto, a fundamentação da sua obra composicional, cada vez mais afastada dos seus ímpetos literários de juventude.
Também essencial para a compreensão do pensamento sobre pedagogia de Luís de Freitas Branco é o periódico Eco Musical, publicado entre 1911 e 1931, e onde se torna evidente que, apesar de ainda recente a reforma de 1919, o assunto continuava ou voltava a gerar discussão, num ano em que se debatia a abertura de uma disciplina de música na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Luís de Freitas Branco insistia numa reformulação do ensino que visionava e pretendia alcançar em todos os ciclos e tipos de instituição de ensino, especializado ou geral. Para Luís de Freitas Branco, a música no ensino primário serviria para uma aprendizagem preliminar, ou mesmo uma triagem que impedisse que crianças não especialmente dotadas ou interessadas em música ingressassem no ensino especializado, isto é, nos conservatórios, ou que entrassem nos conservatórios já com bases musicais que não obrigassem os próprios alunos e os seus professores a fases de adaptação por vezes desiguais e ingratas. Simultaneamente, o ensino superior de música deveria consistir num curso de Ciências Musicais, no fundo, salvo alguns acréscimos explicados no referido artigo, organizado conforme a disciplina pelo próprio autor leccionada no Conservatório — porém, desmantelada em 1930, numa nova reforma que se baseava na ideia de que no Conservatório Nacional havia cursos demasiado longos e excesso de disciplinas teóricas e literárias, e que haveria de contrariar tudo aquilo que fora instituído em 1919, provocando o que Freitas Branco classificou sempre como um retrocesso no ensino artístico de que Portugal tardaria a recuperar, como um claro golpe no desejado avanço da educação musical e artística nacional.
Enquanto a secção do Eco Musical lhe era destinada como forma de divulgar o que se fazia no Conservatório Nacional, sobrando tempo e espaço para discorrer sobre a incompletude de uma reforma do ensino musical abandonada e contrariada, a Arte Musical parece ter sido fundada e dirigida pelo próprio Luís de Freitas Branco com o intuito de disponibilizar ao leitor parte do conhecimento musical básico, bem como a difusão dos seus próprios ideais latinistas e neoclassicizantes. A Arte Musical foi fundada em 1930, inspirada na Arte Musical de Michel’angelo Lambertini, com intenção de preencher uma lacuna no que a periódicos portugueses de música dizia respeito.
Nesta revista foi publicado por fascículos o Tratado de Harmonia de Freitas Branco, baseado inteiramente na teoria dualista, que o autor valida através de outros autores e defende também noutros contextos enquanto teoria que deveria ser incentivada e leccionada nas instituições de ensino especializado. A um sistema de ensino da composição, mais concretamente da harmonia, considerado por Luís de Freitas Branco obsoleto, ele opõe uma teoria que terá sido primeiramente defendida na Alemanha mas melhor apropriada em países latinos, afirmação que justifica através da influência das teorias árabes acerca das vibrações das ressonâncias inferiores, bem como de outros tratadistas defensores da teoria dualista, como Vincent d’Indy.
Na Alemanha são mais numerosos que em qualquer outro país os tratadistas da teoria dualista no século XIX […] [;] em 1880, o tratado de harmonia de Hugo Riemann […] pela primeira vez […] estabelece um sistema completo e coerente sobre a base dualista. Em França, Vincent d’Indy (1912) aceita e desenvolve a teoria de Riemann, insistindo especialmente nas funções tonais e no papel expressivo da modulação (ciclo de quintas), no que mostra ser discípulo do belga Cesar Franck. Em Portugal, em Espanha e na Itália, os países em que mais floresceu de início a teoria dualista (sendo fácil explicar esta tendência pela origem árabe da multiplicação teórica dos corpos vibrantes para determinar a ressonância inferior) perdeu-se a pouco e pouco esta bela tradição […].O presente tratado adoptará pois a doutrina dualista. Na aplicação desse seguirá, porém, um sistema novo, consistindo na extensão até à harmonia das teorias rítmicas e melódicas de Momigny, Mathis Lussy e Riemann com o estabelecimento não dos acordes maior e menor imediatamente pelas ressonâncias superior e inferior, mas, mediatamente, por um acorde leve de sétima de dominante superior resultado dos harmónicos superiores 4, 5, 6 e 7 tendendo resolver para um acorde pesado de respectiva tónica maior, e por outro acorde leve composto dos harmónicos inferiores 4, 5, 6 e 7 que cria o ambiente tonal para o pesado da sua correspondente tónica menor (FREITAS BRANCO 1947:13-4).
Texto completo publicado na Glosa nº21, p.130-140.