É muito comum, na História da Música, importantes compositores, depois de sua morte, caírem no mais completo esquecimento, para serem resgatados muitos anos depois. O caso Bach, redescoberto por Mendelssohn, é um exemplo icônico. Quantos compositores esquecidos foram ressuscitados no século XX – como foi o caso do próprio Mendelssohn, antes considerado um compositor menor, ou de Vivaldi que, até hoje, tem novas obras sendo redescobertas… Bartók, quando morreu, era um ilustre desconhecido na maior parte do mundo ocidental, para ser considerado como um dos maiores compositores de todo o século somente trinta anos após a sua morte. O mesmo fenômeno ocorreu com Henrique Oswald. Sua obra vem sendo reabilitada principalmente depois das pesquisas e das gravações pioneiras realizadas por José Eduardo Martins. Seu livro sobre o compositor1 nos revelou uma rica trajetória que ficou apagada da memória do brasileiro durante muitos anos. As gravações realizadas pelo ilustre pianista e pesquisador também revelaram um sofisticado camerista e compositor para piano. Na esteira de José Eduardo Martins, começaram a surgir alguns trabalhos acadêmicos que, cada vez mais, confirmam a grandeza do compositor. Henrique Oswald foi o mais importante autor de música de câmara e música para piano do romantismo brasileiro. Ele abordou, também, com igual maestria, a música sinfônica, a ópera e a música sacra, deixando um legado artístico preciosíssimo. No entanto, ficou quase que completamente esquecido em nossos palcos e em nossos estúdios de gravação. Qual foi a razão disso?
Como sabemos, Henrique Oswald mudou-se para Itália com a idade de dezasseis anos, permanecendo na Europa durante trinta e cinco anos. Com formação musical peninsular e francesa, filho de uma italiana e casado igualmente com uma italiana, já tinha sua vida profissional plenamente estabelecida quando, por uma casualidade, retorna ao Brasil, o que não estava em seus planos. A morte precoce de Leopoldo Miguez deixa o cargo de Diretor do Instituto Nacional de Música vago, necessitando de um novo Diretor, de preferência com experiência internacional. O nome de Henrique Oswald se impôs uma vez que ele, nesta época, já granjeava uma certa notoriedade como compositor e, principalmente, como pianista. Ademais, ele tinha acabado de vencer o famoso concurso do Le Figaro de Paris, com sua peça para piano Il neige!. Depois de alguma resistência, Oswald acaba aceitando o honroso convite do ainda jovem regime da República e se transfere para o Rio de Janeiro. Nesta cidade, apesar de ser bem recebido por personalidades do quilate de um Alberto Nepomuceno ou um Francisco Braga (ambos haviam estudado na Europa), Oswald teve que enfrentar um ambiente hostil, burocrático e xenófobo, pois era apontado como um estrangeiro que não conhecia a realidade brasileira. Lutou, acima de tudo, contra um ambiente provinciano, carregado de mágoas, despeito e inveja de uma minoria medíocre. Sua postura aristocrática, embora sempre tivesse dificuldades financeiras, agravava, mais ainda, o diálogo entre Oswald e os burocratas do Instituto Nacional de Música. Oswald é descrito por seu biógrafo Martins como um gentleman, elegante de atos e palavras e idealista e, por isso, sucumbiu à pressão sofrida e renunciou ao cargo três anos depois. O estado de ânimo de Oswald, nesta época, é o pior possível, o que se pode avaliar de anotações de seu diário, em 1903, após um concerto em que participou, tocando suas obras, em Munique: « Por que me deixo tomar por este desânimo terrível? E, no entanto, o meu concerto, sob o ponto de vista artístico, foi bom, foi aquilo que se denomina sucesso. Esta manhã, sozinho até o meio dia, sem me distrair com qualquer visita, desejei ver os belos lugares da cidade, todo absorvido em minhas meditações; não conseguia ver o futuro senão através de um véu negro, negro. Que faço agora? É horrível para mim o dever de retornar ao Rio, naquele inferno em que tanto sofri! Só Deus sabe o que lá me espera.»2.
Oswald poderia voltar definitivamente para Florença, mas um sentimento de patriotismo e de necessidade de “tudo está por fazer neste país” o prendeu à sua terra natal, já estando estabelecido com uma numerosa classe de alunos particulares. Depois de várias idas e vindas à Europa (pois sua família ficara em Florença), Oswald volta definitivamente para o Brasil em 1911, quando recebe a posição de Professor Catedrático de Piano do INM. Apesar das homenagens que lhe foram dadas, por ocasião de sua morte, em 1931, seus detratores se encarregaram de deixar a sua obra no esquecimento. Seu influente amigo Alberto Nepomuceno já havia morrido, onze anos antes, enquanto que Francisco Braga, com sessenta e três anos de idade, não tinha o mesmo prestígio e a força de outrora. Assim, a obra de Henrique Oswald foi sepultada com ele.
Mas houve outras razões para o banimento da música de Henrique Oswald.
A Semana de Arte Moderna de 1922 surgiu com uma certa arrogância contra toda a expressão artística que não tivesse vínculos com as raízes culturais brasileiras, principalmente aquelas nascidas entre os aborígenes e os descendentes de africanos. Havia uma rejeição contra uma arte com fortes vínculos europeus, como era o caso da obra de Henrique Oswald. Se a Semana de Arte Moderna de São Paulo trouxera um sopro de renovação para a arte nacional, de outro lado ela desdenhou de autênticos valores que seguiam cânones mais universais, como se estes cânones também não fizessem parte da formação da nação brasileira, sendo, mesmo, a sua matriz. Assim, até mesmo Carlos Gomes, o maior operista das Américas, foi colocado no ostracismo, por suas óbvias influências verdianas, apesar de um tímido reconhecimento de seu valor por Mário de Andrade. Mas Oswald não teve nenhum patrono que mostrasse o valor intrínseco de sua obra, independentemente da corrente estética a que ele pertencesse. Sua personalidade excessivamente tímida e reservada também não ajudava. É curioso que, apesar de Oswald ter uma posição de destaque no panorama musical do Rio, aparentemente ele não tomou nenhum conhecimento do movimento de São Paulo. No diário minucioso de sua mulher, a principal fonte de pesquisa de José Eduardo Martins, não há nenhuma referência à Semana de Arte Moderna. Martins traça o perfil estilístico franco-italo-germânico de Oswald com muita propriedade: « Em Oswald pode-se perceber de imediato a feitura técnica. Os professores foram competentes e lhe transmitiram o hodierno praticado em fontes igualmente competentes e insofismáveis. Por parte de Oswald, existiu o “talento” do aluno que pressupõe a assimilação dos conhecimentos acadêmicos a ele oferecidos e a posterior transformação dos mesmos: melodismo e determinada fluência italianos, modelo formal rígido praticado na Alemanha e a relação nítida com o que se denominou “clareza francesa”.»3.
Ora, como esperar que um compositor que viveu tanto tempo na Europa, sofrendo fortes influências de compositores como César Franck, Saint-Saëns ou Gabriel Fauré ou mesmo vinculado, até certo ponto, a um Schumann, pudesse escrever música com síncopes amaxixadas, contínuos percussivos ou melodias tropicais com ou sem escalas modais? Oswald era, acima de tudo, sincero com sua formação e seus princípios estéticos, embora sempre aconselhasse os jovens a seguirem as trilhas do nacionalismo musical. O jovem Heitor Villa-Lobos foi um dos compositores aconselhados por Oswald a seguir aquele caminho4. Oswald considerava que ele próprio não seria um brasileiro de 2ª classe se fosse sincero consigo mesmo. Em depoimento de sua filha Maria Isabel Oswald Monteiro a José Eduardo Martins, ela afirma que « meu pai jamais considerou-se italiano, repetia isto incessantemente, ofendendo-se quando o chamavam assim »5. Darius Milhaud, que esteve no Brasil entre 1917 e 1918, frequentava a casa de Oswald por quem tinha grande admiração6. Entretanto, ele sempre criticou os compositores brasileiros que não abraçavam a linha nacionalista. Quando Oswald morreu, o musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo fez uma oração fúnebre, à beira do túmulo do compositor, realçando seu valor e seus méritos, mas fazendo uma crítica extemporânea à obra do compositor por não se curvar ao que era, na época, considerado “o politicamente correto”: o nacionalismo musical. Esta fala de Luiz Heitor causou um certo mal estar e ele, mais tarde , se retratou. No próprio ano da morte de Oswald, Mário de Andrade, o grande mentor da Semana de Arte Moderna, assim se expressou, revelando uma ambiguidade valorativa a respeito do compositor carioca: « Henrique Oswald foi incontestavelmente mais completo, mais sábio, mais individualisticamente inspirado que Alberto Nepomuceno, por exemplo; porém a sua função histórica não poderá jamais se comparar com a do autor da Suíte Brasileira. Eis porque eu o considerava teoricamente um inimigo. Digo mais: um inimigo de quem eu tinha, teoricamente, rancor. Porque reconhecendo a grande força e o grande prestígio dele, eu percebia o formidável aliado que perdíamos, todos quantos trabalhávamos pela especificação da música nacional.»7.
Todos estes casos relatados acima revelam o Zeitgeist (com perdão dos nacionalistas pelo uso da expressão estrangeira) da época de Henrique Oswald e que muito encobriu o verdadeiro valor de sua obra, durante tanto tempo.
Em 2003, eu afirmara que « o estágio atual de conhecimento da história da música brasileira vem apresentando uma nova visão do Romantismo Musical Brasileiro, depois de um longo período privilegiando a música colonial ou aquela que se segue à Semana de Arte Moderna. A música que surgiu no Império e nos primeiros anos da República ficou em relativo esquecimento ou era referida de modo pejorativo, por causa de sua vinculação estética com a Itália, Alemanha ou França.»8.
Antes, a musicóloga Maria Alice Volpe9 já havia levantado, no período de 1850 a 1930, um total de 397 obras camerísticas, de sessenta e sete compositores, revelando uma vertente do romantismo musical brasileiro completamente olvidada pela eclosão nacionalista. Oswald, naturalmente, estava dentro desta estatística. A força telúrica da obra de Villa-Lobos, bem como sua personalidade carismática e a repercussão internacional de sua obra não deixaram de contribuir para esta exclusão do repertório romântico brasileiro.
Além dos fatores citados, uma circunstância pessoal contribuiu para reduzir a divulgação da obra de Henrique Oswald. Seu filho Alfredo Oswald, um promissor pianista e concertista, professor do Peabody Conservatory of Music em Baltimore, nos anos 20, abandona a vida civil e ingressa na ordem dos jesuítas como irmão leigo. Oswald perde um de seus principais intérpretes e divulgadores. A partir daí, Oswald, por influência mística do filho, se dedica quase que exclusivamente à composição sacra e a obras para órgão10. Este universo musical encontra fraca tradição na música brasileira e contribuiu, mais ainda, para maior isolamento do compositor.
Do exposto, podemos concluir que a trajetória de Henrique Oswald e os anos que se seguiram após a sua morte nos trazem algumas lições que merecem ser analisadas:
1. O verdadeiro artista segue seu impulso criador independentemente do modismo de uma época. Na falta de uma expressão melhor, poderíamos chamar esta conduta de “sinceridade estética”.
2. O julgamento de uma obra de arte deve levar em conta sua essência e transcendência e não sua superfície e trivialidade. Os fogos de artifício se apagam logo. As estrelas continuam brilhando.
3. Não se pode confundir a crítica de uma estética com a crítica de uma obra.
4. Critério de valor de uma obra de arte é uma discussão complexa e delicada porque a arte transita numa linha imponderável, plena de relativismo. Muitos fatores podem ser apontados como critérios de valor, entretanto apenas um é definitivo: o tempo. O tempo é implacável com a mediocridade e redime o essencial.
5. Henrique Oswald nos ensinou estas lições e conquistou um lugar definitivo na galeria dos grandes compositores brasileiros.
Notas
1 MARTINS, José Eduardo, Henrique Oswald – Músico de uma Saga Romântica, São
Paulo, Edusp, 1995. Este livro é uma versão ampliada da tese para Professor Doutor Henrique Oswald – Compositor Romântico, defendida por Martins na Universidade de São Paulo, em 1988.
2 MARTINS, op. cit., p. 80
3 MARTINS, op. cit., p.162
4Em 1926 Villa-Lobos regeria, em São Paulo, a Sinfonia op. 43 de Oswald, na
presença do compositor, alquebrado por uma recente cirurgia e já com setenta e
três anos de idade.
5 MARTINS, op. cit., p. 131
6 LAGO, Manoel Aranha Corrêa do (org), O Boi no Telhado. Darius Milhaud e a Música Brasileira no Modernismo Francês, Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2012
7ANDRADE, Mário, Música, Doce Música, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963
8 TACUCHIAN, R, “Reavaliando o Romantismo Musical Brasileiro”, Brasiliana, 14 (maio de 2003): 2-7
9 VOLPE, Maria Alice, Música de Câmara do Período Romântico Brasileiro: 1850-
‐1930, Dissertação de Mestrado, São Paulo: Instituto de Artes da UNESP, 1994
10 IGAYARA, Susana Cecília, “A Obra Sacra de Henrique Oswald”, Brasiliana, 11 (maio de 2002): 2-8
Texto publicado na Glosas n.º 9, p. 26-28
