Em Portugal, inúmeras vezes insisti sobre o fato de o Brasil ignorar quase que totalmente a extraordinária criação musical portuguesa, assim como de não se debruçar sobre estudos literários a respeito da música composta em Portugal. São fatos inequívocos que não podem ser esquecidos. Essa atitude no Brasil parece ser endêmica a transparecer “catarse” relacionada aos séculos de colonização.

Essa premissa se faz ainda mais necessária após a recepção calorosa de duas obras portuguesas contemporâneas apresentadas em São Paulo em recital junto à Sociedade Brasileira de Eubiose em Abril último. A Missa sem palavras (Cinco Estudos Litúrgicos), de Eurico Carrapatoso (2012), e o Étude Die Reihe-Courante, de Jorge Peixinho (1992), rigorosamente contrastantes em todos os aspectos musicais e de propósitos, entusiasmaram público numeroso. Não há que pensar fazer, há que fazer, única possibilidade de que a música portuguesa de concerto penetre as mentes brasileiras.

Em 1985 iniciei projeto de Estudos Contemporâneos para piano que teria a duração de trinta anos. Recebi, ao longo, mais de oitenta Estudos vindos de diversas regiões do planeta. Encerra-se o projeto neste 2015. Ao convidar o notável compositor português Eurico Carrapatoso (1962-) a escrever um Estudo, fui surpreendido pela Missa sem palavras. Carrapatoso, nessa obra dividida em cinco partes que constituem a Missa, lega-nos uma obra de profunda meditação, a expor um domínio absoluto da trama polifônica. O texto em latim da Missa lá está na partitura, a corroborar, inclusive, a justeza da acentuação prosódia-música. Extraio segmento do texto de Eurico Carrapatoso que antecede a partitura: “Nesta peça, o conceito de Estudo está longe da asserção convencional do termo, tantas vezes associada à extroversão do elemento virtuosístico ou à exploração de determinados domínios técnicos de um dado instrumento. Trata-se, antes, de uma viagem pelo mundo interior, introspectiva, ao sabor das inflexões produzidas pela leitura de um texto expresso na partitura. Este texto sacro refulge no fragor bronzino do latim. Escrito na partitura, faz dela parte intrínseca. Mas não será verbalizado no sopro da voz. Está lá para dele ser feita uma leitura íntima, secreta. O intérprete cantará os mistérios do texto canônico através dos seus dedos e não da sua voz. Os dedos serão como os de Pepino, o Breve, rei dos franceses: taumatúrgicos, operando prodígios pelo toque. Penso, por isso, que estão reunidas as condições para se lhe poder chamar Estudos, não tanto pelo desafio técnico, que sempre esteve, aliás, muito longe de ser minha intenção, mas pelo desafio místico, dado todo o universo metalinguístico que lhe subjaz” (Lisboa, 22 de Fevereiro de 2012).

Ao receber o magnífico Étude V Die Reihe-Courante solicitei um ensaio ao ilustre compositor português Jorge Peixinho. Extraio alguns segmentos: “O ‘Estudo V Die Reihe-Courante’ herda qualquer coisa de obras minhas anteriores e deixa traços em obras posteriores. Como qualquer Estudo que se preze, e tomando como referência histórica os exemplos magistrais de Chopin, Liszt ou Debussy, uma peça com este título deve conter dois vectores fundamentais, a saber: ser um ‘estudo’, simultaneamente de execução para o instrumento respectivo (neste e naqueles casos, o piano) e, para o compositor, igualmente, como laboratório de novas experiências e dilatação dos seus limites técnico-expressivos… Trata-se de um estudo sobre uma visão da série como objeto e sujeito, uma perspectiva abrangente, que compreende tanto a concepção schönberguiana da série-tema como a concepção weberniana da série, enquanto princípio estrutural e estruturante, ordenador e motor da organização da obra. A série dodecafônica é exposta logo de início, num segmento que compreende, para além dos doze sons, uma sequência de outros vinte”. Após análise pormenorizada do processo e indicações precisas quanto à interpretação, conclui o compositor: “O Étude Die Reihe-Courante fecha e abre simultaneamente velhas e novas etapas, criando uma ponte entre duas margens de um rio; um rio sempre vivo e em movimento, uma corrente ininterrupta em direcção a um novo infinito, metáfora da impossível utopia da perfeição e da liberdade criadora” (“Introdução a um estudo sobre o Estudo V. Die Reihe-Courante para piano”. In Jorge Peixinho in Memoriam, organização de José Machado, Lisboa, Caminho, 2002, pp. 203-222).

As duas explêndidas obras estarão à disposição do público em 2016, a partir de gravação de CD realizada na Bélgica com outros mais Estudos: de François Servenière, Études Cosmiques (7+1), de Gheorghi Arnaoudov, Et Iterum Venturus, e de Gilberto Mendes Um Estudo? Eisler e Webern caminham pelos mares do sul. Em Maio de 2015, apresentei recitais com esses “estudos contemporâneos” para piano e mais Vers la flamme, de Alexander Scriabine (centenário da morte) na Academia de Amadores de Música, Lisboa, e no Canto Firme, Tomar.

Texto completo publicado na Glosas n.º 12, p. 94.

Sobre o autor

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José Eduardo Martins nasceu em 1938 na cidade de São Paulo. Estudou Piano com José Kliass, Marguerite Long e Jean Doyen. É autor de diversos livros sobre música, de quase uma centena de artigos publicados em diversas revistas e periódicos de vários países, e realiza paralelamente edições críticas das obras do compositor romântico brasileiro Henrique Oswald (1852-1931), por ele redescoberto. Doctor Honoris Causa pela Universidade Constantin Brancusi da Romênia e Acadêmico Honorário da Academia Brasileira de Música. Recebeu em Bruxelas, em 2004, na Embaixada do Brasil, a Ordem do Rio Branco. Em 2011, foi agraciado com a comenda 'Officier dans l'Ordre de La Couronne', outorgada por Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas.