(…) Em 1994, Bernardo Sassetti intensificou a dedicação à fotografia, movido não apenas pela paixão por esta arte, mas por uma real necessidade de associar a imagem à música que escreve. Tal como aconteceu com a sua música, a fotografia foi, para Sassetti, mais do que a própria realidade, o espelho das coisas que dela se imaginam. (…)
Excerto da Biografia de Bernardo Sassetti (www.casabernardosassetti.com)
Lembrem-se que um bom par de sapatos faz sempre uma grande diferença.
Bernardo Sassetti, Excerto do texto Pianistas Pianistas (www.casabernardosassetti.com)
Analisar elementos iconográficos e iconológicos nas fotografias de Bernardo Sassetti pode parecer um acto frio e cirúrgico. Compartimentá-las, dissecar os seus detalhes, pode até parecer quase perverso. Mas fiquem os leitores descansados, que esta análise pretende, antes, tentar chegar à sua essência. Acima de tudo, estas são fotografias marcadas por uma intimidade. E dão uma visão tão plena do âmago do artista que chega a ser assustador e perturbador mergulhar nele.
Para além da referida intimidade, estas fotografias são marcadas por uma grande dose de experimentação. Vemos o fotógrafo que ousa tentar, insatisfeito, impaciente, numa constante busca de algo que, inevitavelmente, sabe que poderá nunca alcançar. Partes do próprio corpo do artista são fotografadas. Outras são de outros corpos. Pés, mãos, olhos, testa. Com uma ênfase nas rugas, nas linhas da pele. Elas são, tal como está enunciado na sua biografia e acima citado, “mais do que a própria realidade, o espelho das coisas que dela se imaginam”.
1. A primeira fotografia intitula-se “Pés (Rio Tejo)”, tirada em 2010 numa área húmida que bordeja o Tejo, junto às salinas, perto de Alcochete.1 Bernardo Sassetti mostra os seus pés descalços. As inúmeras fotografias tiradas neste formato demonstram uma certa fixação por esta parte do corpo. Os pés são vistos como um objecto de curiosidade constante e de quase fetiche. A fotografia é, na maioria das vezes, realizada de cima para baixo, com os pés descalços. Muitas têm o elemento água associado, um elemento fluido – os pés descalços na casa de banho, na água livre, que corre, ou no leito seco de um rio. Os pés são objectos altamente simbólicos, numa série de contextos, épocas e sociedade. São os pés que caminham, que nos conduzem, que trilham caminhos. Já na Bíblia, no Antigo Testamento, Deus diz que todo o lugar onde pisarem as plantas dos pés, a elas pertencerão (Dt. 11:24). Sassetti mostra pés descalços, por forma a sentir o chão, a terra. São ponto de contacto com sensações únicas e primordiais. Uma busca do sentir. Do profundo sentir. A terra seca e já fragmentada salpica os pés que a pisam. A ausência da água, que já abandonou o terreno – deixa a descoberto alguns ramos sem vida e uma luva de borracha, suja, marca do Homem na Natureza.
2. No segundo auto-retrato temos um contraste experimental ao nível do jogo de luzes e de sombras.2 O cenário, interior, foi preparado para fotografar amigos. Mas, enquanto preparava a sessão, eis que surge um momento íntimo, de experimentação. A objectiva aponta e dispara no automático. A imagem tem camadas, tal como o nosso interior, tal como nós próprios. Uma cortina, um homem, uma janela. A cortina, transparente, deixa ver o vulto humano, mas apenas nos seus contornos. A janela ilumina, por trás. Entre duas fontes de luz – a janela, emissora, e a cortina transparente, a receptora – está a sombra contrastante e esbatida do corpo. As mãos estão contra a cortina, bem abertas. Quase como se estivéssemos a testemunhar O Grito de Munch, mas ainda mais exasperante. A figura humana parece prisioneira. E, ironicamente, não há grades, mas uma fina cortina transparente de luz. Esta é uma das poucas imagens em que vemos as mãos. As mãos que tocam, que compõem, que escrevem e que fotografam. Que deveriam ser a parte obsessiva do músico, ao invés dos pés. Mas as mãos, aqui, não tocam, não escrevem. Parecem ser parte de um grito surdo. Apesar de esta fotografia ter sido tirada enquanto ante-câmara de um momento de vida feliz, considero que há aqui algo muito íntimo, sensível, privado e até, quase, doloroso.
A análise de dois auto-retratos de Bernado Sassetti revelou-se tão gratificante quanto difícil. Gratificante porque me permitiu contactar com o seu génio, com a sua alma, com a sua sensibilidade. Olhar, reflectir, compreender, desfrutar da sua arte, do seu pensamento. Difícil porque obriga a olhar para interior, muitas vezes escondido, muitas vezes que dói. Obriga a libertá-lo e a purificá-lo. Se a fotografia foi para Sassetti mais do que a realidade, e foi o espelho das coisas que dela se imaginam, foi também um espelho de mim, ao escrever este pequeno artigo. Por tudo isso, nunca, mas nunca, será demais olhar e recordar Bernardo Sassetti.
notas
1 Beatriz Batarda refere: “(…) O Bernardo subiu o Tejo a bordo de um semi-rígido num passeio organizado por Carlos Caetano, responsável pelo Náutico Clube Boa Esperança sediado no Cais do Sodré. Iam a bordo o Bernardo, Carlos Caetano e Paulo Santos quando fizeram a paragem que proporcionou esta imagem. O Bernardo voltou para casa maravilhado com o passeio.”
2 Beatriz Batarda refere: “Imagem feita em 2010. O Bernardo fotografou um casal de amigos em casa deles, em teatro de sombras. Esta imagem foi feita na preparação para essa sessão.”
Fotografia: Bernardo Sassetti
Texto completo publicado na Glosa nº 14, p. 42-44.

