A carreira de cantor e obstetra é, no mínimo, invulgar. O que surgiu primeiro, a medicina ou a música?
Primeiro foi a música. Em miúdo, pequenito, com seis ou sete anos, tocava bandolim. Depois fui para o seminário, tive formação musical. Pensei em fazer o exame de Solfejo do Conservatório como aluno externo, e procurei uma professora particular que, além do solfejo, também me deu umas lições de canto, como a outros colegas que estavam já no coro do São Carlos. Neste teatro, houve um baixo que saiu e o maestro Pellegrini perguntou se alguém conhecia algum indivíduo que cantasse. Uns amigos que trabalhavam com a mesma professora sugeriram que eu lá fosse. Estávamos em 1949… O maestro mandou-me fazer um vocalizo e depois pediu para cantar a Cavaleria Rusticana, que então se preparava para a temporada seguinte. Eu lia bem e não me enganei. Infelizmente já tinha sido preenchida a vaga, mas como tinha facilidade na leitura, o maestro Pellegrini fez-me uma proposta: não me pagar o que os elementos do coro recebiam, porque o director do teatro não aceitava contratar mais ninguém, mas pôr-me a cantar nas óperas de 1950 em que o coro entrasse. Eu, como não ganhava nada, também achei que os 120 escudos que me ofereciam sempre eram uns trocos… e fiquei!
Cantei em todos os espectáculos da temporada, excepto no Werther, porque não tem coro masculino. No ano seguinte estava como efectivo. Nessa altura frequentava uma escola nocturna para aprender o resto das químicas que me faltavam… Às vezes a escola durava até mais tarde e eu chegava ligeiramente atrasado. No terceiro dia cheguei tarde, sentei-me na parte dos baixos, ao pé do meu amigo Ruy de Carvalho, que cantava nessa altura no coro do São Carlos. Não tinha as partituras… Ao terceiro dia cantei de cor todo o coro da Aida… Estávamos em Dezembro, a temporada começava em Fevereiro e eu, nesse curto espaço de tempo, aprendi todas as óperas da temporada.
Devo dizer que em 1950 se fizeram quinze ou dezasseis óperas, um único espectáculo de cada uma delas.
E porque é que isso não acontece agora?
Bem, não acontece agora porque houve uma modificação muito grande na maneira de fazer ópera. Repare: sobretudo no tempo da guerra, quer na Itália, quer na Alemanha, os cantores não tinham tempo para ensaiar. Os grandes cantores levavam uma mala com os atos da ópera que iam fazer. Chegavam com o seu ato, a sua voz, depois diziam “entra por ali, sai por ali” e acabou. Depois apareceram os grandes maestros que, em determinada altura, passaram a ter um predomínio sobre os cantores. E, infelizmente, depois apareceram os encenadores para fazer teatro. E resolveram arranjar uma maneira nova de representar as peças antigas.
Mas as encenações modernas exigem tempo para os cantores se adaptarem – quer aos palcos, quer à música –. E grande parte delas, uma quase totalidade, acaba por destruir as obras de arte que são as partituras e as obras escritas anteriormente.
Alguma vez lhe pediram para cantar numa consulta?
Felizmente tornei-me conhecido também na parte médica, obstetrícia, até porque surgiu a oportunidade de começar a fazer algo que hoje é banal: a ecografia. Comecei a lidar com os sons e os ultrassons e tornei-me muito conhecido quer com os sons, quer com os ultrassons. Mas nunca consegui separar completamente as coisas uma da outra, e dizia-se que eu cantava enquanto estava a fazer partos. Mas isso é mentira, porque se fosse verdade os partos eram mais caros!
E já deve ter tratado colegas suas.
Sim, sim… Bailarinas, coristas, cantoras, até estrangeiras que me apareciam no consultório quando era necessário. Fiz muitos partos de colegas e até artistas de teatro. Quando apareceu a ecografia ou era comigo ou com mais dois ou três colegas…
Falemos de Frederico de Freitas. Acha que a versatilidade da sua obra teve alguma vertente comercial ou era ele próprio que tinha um gosto alargado?
O Frederico nasceu no ano em que nasceu a minha mãe, era muito mais velho que eu; não conheci o Frederico de Freitas que fazia música comercial, música de filmes, fados…
Aquilo que eu conheci do Frederico de Freitas foi sobretudo as óperas em que cantei, dirigidas por ele… e foram várias! Algumas eram coisas que ele se dedicava depois a repor, como aconteceu com a Condessa Caprichosa que foi recuperada dos arquivos de Marcos Portugal… e a sua obra como compositor era pouco comercial porque não era uma composição para ser vendida a qualquer pessoa que cantasse por aí. Por exemplo, para a Igreja do Mar, que foi uma encomenda da Emissora [Nacional], escrita para o Prémio Itália, ele passava muito tempo a compor e essa sua composição não tem nada a ver com a composição da revista, da chamada música ligeira. E eu creio que a composição do Frederico estava ao nível das modernices da época.
Mas o que mais conheci do Frederico foi realmente o lado de maestro. A primeira vez que eu cantei com ele foi no actual Pavilhão dos Desportos, em 1956. Com o Vieira de Almeida e a Laura Lima. Depois cantei A Serrana de Alfredo Keil, em 1957, no São Carlos; cantei, na Covilhã, a Traviata dirigida por ele; cantei nas Caldas da Rainha o “Barbeiro de Sevilha”, dirigida por ele, no parque Rainha Dona Leonor, ao ar livre! Repare no que é que se fazia… E esse espectáculo foi fantástico. A Cristina, o Casais, o Kjölner, o França, …
Fiz a estreia absoluta da Igreja do Mar em 1960. Foi a única vez que se fez em cena, com encenação do Álvaro Benamor. Mais tarde fez-se outra vez, mas em versão de concerto, no Tivoli. Há uns anos fez-se outra vez uma versão de concerto e já não foi comigo. Depois, fez O Barbeiro de Sevilha, a Traviata, de novo A Igreja do Mar, nessa altura com a Elsa [Saque] e ainda D. João e as Sombras. Um espectáculo que foi feito uma única vez em concerto no Tivoli, dirigido por ele, escrito por ele sobre um texto do António Patrício (a peça de teatro D. João e as Máscaras é fantástico!)… E o Frederico de Freitas tinha apanhado algumas partes e compôs, curiosamente, para um pequeno coro feminino, que foi dirigido pelo Frenner (que entrou nesse espectáculo comigo, com a Elsa e com o Fernando Seram).
Eu ia muitas vezes a casa dele para ensaiar. Ele chegou a perguntar-me se eu achava que merecia a pena transformar a peça numa ópera. E foi pena, eu fiquei com a sensação que se tivesse feito aquilo eu era o D. João. O D. João do António Patrício é um homem torturado porque procura nas mulheres a sua realização. Procura uma, outra e outra, para procurar sempre a sua felicidade. Ora bem, parece que realmente quando alguém procura a felicidade em muitos lados não a encontra. É um teatro sentimentalista, passa-se num grande caramanchão, com umas grandes vidraças que abrem para o jardim e o D. João fala com uma das suas amadas, que depois se vai embora porque ela ia à procura dele e não o encontra. … É essa mulher que o D. João procura. Procura essa mulher e quer essa mulher. Essa mulher chama-se Morte. E a Morte acaba por deixar o D. João sozinho.
Tive a sorte de muitos grandes compositores portugueses escreverem para mim e o Frederico de Freitas, quando escreveu D. João e as Sombras, fê-lo para mim. Quando escreveu A Igreja do Mar, o velho era eu. O António Victorino d’Almeida, quando escreveu o Canto da Ocidental Praia, escolheu-me para Camões.
Ruy Coelho, quando escreveu algumas das suas óperas, também eram para mim.
Tenho a sensação de que Frederico de Freitas não é muito conhecido actualmente. Acha que terá sido de algum modo prejudicado por ter sido associado ao regime, depois de 1974?
Foi o compositor d’O Timpanas, do Parque Mayer, e depois consideraram que ele era sempre aquilo. Mas ele era uma personalidade duma evolução fantástica. Além de pianista, aquilo que ele escreveu ultimamente era incrível. Dedicava-se, estudava, e a maneira como ele compunha – eu via-o algumas vezes – era um trabalho intelectual extremamente importante… Todos os artistas precisam de ganhar dinheiro, é claro, mas nessa altura ele queria era fazer a sua grande música… e não outra coisa.
Ruy Coelho foi outro. Era um grande compositor. Só um grande compositor é que é capaz de escrever tantas óperas como ele escreveu… mas acabavam por dizer mal dele porque achavam que ele era do regime.
Mas o Frederico de Freitas colaborava directamente com a companhia de bailado Verde Gaio…
Ele tinha sido colega de liceu do bailarino Francis Graça e foi ele que acabou por dar origem ao Verde Gaio. Foi uma coisa importantíssima. Se não fosse o Frederico com os seus bailados não havia Verde Gaio! Foi possivelmente prejudicado por essa associação. Mas com certeza que morreu mais satisfeito: morreu a fazer a música de que gostava.
Era uma personalidade intelectualmente muito importante.
Começaram a dizer mal dele porque a música se modificou. Hoje em dia ser músico é escrever umas cançõezinhas assim muito rapidamente, sobretudo com bateria. (Agora estou a ser injusto: há muitos compositores modernos que estão a compor, inclusivamente óperas, … que eu já não sou capaz de ver porque não estou francamente interessado.)

Do que os compositores agora se queixam é que até vai havendo encomendas, mas depois as peças são feitas uma única vez.
O Fernando Lopes-Graça, um enorme compositor, às vezes partilhava comigo o comboio, e conversávamos. Perguntei-lhe muitas vezes: “Maestro, então quando é que compõe uma ópera?”, e respondia “Nunca me encomendam!”.
Era uma resposta correcta, mas a verdade é que os grandes compositores começaram a escrever primeiro, e depois apresentavam o trabalho. O facto de ele ser um grande compositor, como era, não tornava obrigatório que soubesse escrever ópera. Acabou por escrever uma [D. Duardos e Flérida], que foi um fracasso.
É muito bom ter encomendas, mas ópera é ópera, concerto é concerto e canções são canções.
Que imagem é que guarda do Frederico de Freitas enquanto pessoa?
Homem esplêndido, duma gentileza fantástica… Há uns anos a Elvira decidiu fazer um concerto em homenagem ao pai e convidou-me para fazer parte desse concerto. Eu não cantava, não quis cantar… Ela teve que chamar outras pessoas, mas cantei no coro. Devo ter sido a única pessoa que recusou cachet. Não tive cachet nenhum porque, mais uma vez, se eu estou em condições de fazer uma coisa qualquer e ganhar dinheiro, têm que me pagar; se não, não gosto de ganhar por não fazer nada. De modo que cantei só com o coro. E depois ela disse: “Agora estou a reconhecer o Malta de que o meu pai falou.”. Eu também nunca pedi dinheiro ao Frederico quando trabalhei com ele, trabalhava com vontade, com gosto, para fazer a música dele. E ele sentia em mim uma pessoa que estava colaborando no aspecto de reproduzir aquilo que era a sua ideia. E ele nunca me disse isso, mas a lha diz que ele lho tinha dito. Tenho uma vaidade, um carinho grande pelo Frederico de Freitas. O Frederico ficou a dever-me o D. João e as Sombras.
Já não canta há quanto tempo?
Não sei… Há uma eternidade…
Essa homenagem ao Frederico de Freitas terá sido a última vez?
Não, mas essa foi só no coro. Às vezes ainda canto assim qualquer coisa, mas já não é o espectáculo de ópera. Eu acho que uma pessoa não deve fazer coisas quando já não tem condições para o fazer. Perde-se respeito e eu tenho vaidade nos mais de quarenta anos em que fiz ópera e naquilo em que era reconhecido pelas pessoas. Agora não posso fazer pior.
Numa das peregrinações em que às vezes participo, em Jerusalém, um dos peregrinos disse-me que entrou para o seminário por causa de uma determinada melodia, e dizia-se, nessa altura:
“Ah, isso é para o Álvaro Malta, que é capaz de cantar isso.”.
Bem, eu quis cantar esse trecho. Lá pedi ao padre que ia connosco para cantar numa das igrejas de Jerusalém, que é célebre pela sua acústica. Cantei. Quando acabei, o padre disse baixinho: “Bravo!”. E esse bravo foi uma grande paga porque, ao m e ao cabo, significa que mesmo morto e não ressuscitado (porque quando se sai do São Carlos morre-se), ainda canto.
A Maternidade Alfredo da Costa, agora, vão fechá-la. Morre. Depois vai ser outra coisa qualquer. Às vezes ressuscita quando alguém se lembra. Como uma senhora chata que quer falar de Frederico de Freitas [risos]. É um bocadinho ressuscitar…. Mas foi um grande prazer.
Texto publicado na Glosas n.º 7, p. 24-26.
