entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santos

transcrição de Duarte Pereira Martins e Philippe Marques

Com a sua mulher e Pedro de Freitas Branco durante a “Semana de Música Portuguesa” em Wurtzburg, onde foram executadas várias obras suas. Palácio dos Schönborn em Wisentheid, Alemanha, 1957.

Dos vários professores que teve lá fora, qual foi o que mais o marcou?

O Scherchen, sem dúvida, tanto como professor de Composição, quanto como Director de Orquestra.

Mais do que o Virgilio Mortari?

Mais do que o Mortari, sim. O Mortari foi professor de Composição, mas a verdade é que, depois do Luís, tinha pouco para lhe ensinar. 

Talvez em novas técnicas de composição…

Ele sobretudo aprendeu muito ouvindo, indo a muitos espectáculos, indo a muitos concertos, lendo muitas partituras, comprando partituras assim que chegavam… Era como ele gastava o dinheiro da bolsa!

Daí nasceu a grande viragem de estilo, sendo talvez os Três Esboços Sinfónicos a obra que marca essa viragem…

A viragem começou, curiosamente, com a Mérope e por influência da minha mãe. Quando ela ouviu pela primeira vez a Mérope achou que aquilo não era música do seu tempo e que o meu pai tinha de, pouco a pouco, libertar-se da influência do Luís de Freitas Branco. Portanto, foi ela que o empurrou e encorajou, para além da curiosidade natural do meu pai, a dar uma volta ao estilo, a tornar-se mais contemporâneo e a absorver tudo aquilo que eles estavam a ouvir todos os dias nos espectáculos a que iam. O Concerto para Viola foi mais um passo, digamos que ele foi progredindo passo a passo. O Divertimento I é uma obra muito específica em que ele decide fazer, exactamente, um divertimento e usar a sua linguagem habitual. Os Três Esboços Sinfónicos foram realmente a primeira tentativa. Ele não escrevia sinfonias desde a 4ª, não imaginava escrever outra sinfonia usando a mesma linguagem. Isso é revelador de que ele achava que já era uma linguagem esgotada, pelo menos do ponto de vista da forma sinfonia. E a verdade é que só escreve uma nova sinfonia dezasseis anos depois, e é a 5ª, que é uma revolução. Ele quis ir aprendendo, a par e passo, o que é que se coadunava melhor com as suas características intrínsecas, fala muito disso nas entrevistas que dá. Quer permanecer fiel à sua personalidade musical.

Uma coisa que ele nunca perdeu é o élan melódico, mesmo nas suas fases mais abstractas.

A prova disso é a 5ª Sinfonia ou, por exemplo, uma obra como o Divertimento II, em que a melodia está lá – é difícil, é dura, angustiada e pungente, mas está lá. E, mesmo na 5ª Sinfonia, há sempre melodia. 

Mas é muito interessante que essa viragem tenha sido em grande parte por influência da tua mãe, é sinal de que não era para aí que ele naturalmente pendia…

Não, e os amigos reconhecem. O Cassuto, por exemplo, que assistiu a todas as conversas e discussões (das quais, aliás, era parte integrante porque foi aluno do meu pai e além disso aparecia lá em casa para lhe mostrar as partituras de tudo o que escrevia), foi testemunha privilegiada de todos os anos 60. Hoje, olhando para trás, tornou-se muito conservador (as pessoas quando envelhecem, se calhar acontece-lhes isso) e disse-me no outro dia, com um ar um bocado indignado: «o teu pai nunca devia ter deixado de escrever à maneira antiga, porque é isso que faz sucesso, é isso que atrai as plateias». Eu fiquei um bocado indignada com esta afirmação (risos), achei um pouco extremista. E falei-lhe da 5ª Sinfonia e de outras obras fabulosas… E da Sinfonietta que lhe é dedicada, que ele tem dirigido magistralmente e que é uma obra fantástica. O meu pai queria absorver uma parte das novas linguagens mas queria permanecer fiel à sua personalidade musical. Há um episódio curioso que é absolutamente demonstrativo dessa dualidade que se instala na obra dele que é a composição da 6ª Sinfonia. Depois da 5.a ele compôs coisas várias, entre elas a Trilogia das Barcas que é uma obra que no fundo é uma espécie de súmula de todos os estilos porque é uma obra ultra-contemporânea, ultra-moderna, com música concreta inclusive, mas estão lá os modos medievais todos porque o libreto isso pede e a isso obriga. Depois disso, entusiasmado com os modos medievais (que era uma coisa de que ele falava desde novo e de que o próprio Luís de Freitas Branco falava muito), escreveu o D. Garcia, com o poema da Natália [Correia] baseado na poesia medieval e trovadoresca. Depois quis escrever outra sinfonia mas chegou a meio, não sabia como havia de descalçar a bota e parou durante largos meses. Eu lembro-me dele correr o corredor da casa da Av. dos Estados Unidos da América de um lado para o outro, era um corredor enorme…

Nessa altura tinhas 13 ou 14 anos…

Sim, foi em 71-72. Lembro-me de vir da escola e ver o meu pai de um lado para o outro, numa angústia tremenda, sem saber o que fazer. E eu perguntava: «Ó pai, o que é que se passa?», «Não sei o que hei-de fazer com a 6ª Sinfonia…», «Então se não sabe ponha-a lá num canto, deixe-a lá pousada em cima da secretária e daqui a uns meses!»… Mas o facto de não conseguir terminar uma obra provocava-lhe uma angústia criativa muito grande. Entretanto houve duas ou três viagens a Espanha porque ele era júri do Prémio Manuel de Falla e convidavam-no regularmente para as conferências dos festivais, e quando veio de uma dessas viagens, talvez mais refrescado e com uma colectânea de poemas em castelhano de Camões que não se encontravam em Portugal, ficou entusiasmadíssimo. Um dia chego a casa e ele está a tocar aquele final da 6ª Sinfonia, com aquelas redondilhas maravilhosas do “Irme quiero, madre…”. Perguntei-lhe se era uma obra nova e ele volta-se para mim com um sorriso maroto e diz-me: «Não, isto é o final da 6ª Sinfonia». Eu fiquei um bocado intrigada. E depois pediu à minha mãe para ir ao escritório: «Maria José, vem cá e experimenta cantar isto», que era uma coisa que ele fazia sempre que escrevia para voz, pedia à minha mãe para cantar. E a minha mãe, claro, ficou deliciada com aquela maravilhosa música. O que aconteceu foi que a segunda parte da 6ª Sinfonia ficou pronta. Entre as duas há aquela transição que é muito bem feita porque (e aí vê-se a mestria orquestral do meu pai), embora sendo um bocado incómoda, está tão bem escrita que, se for bem dirigida, nem se dá por ela. E eu pedi-lhe para ele me dedicar a sinfonia porque fiquei absolutamente encantada com aquele maravilhoso tema.

Mas é verdade que passou de um mundo para outro completamente diferente; de tal modo que depois já não voltou a escrever sinfonias…

Não, aquela foi onde pôs o ponto final. Ele viu que esta nova linguagem que ele tinha criado resultava muito bem, por exemplo, em obras corais-sinfónicas. Se formos ver o catálogo há o Babel e Sião e a obra sobre os poemas de Teixeira de Pascoaes, As Sombras. Para obras corais-sinfónicas, que ele adorava escrever, resultava muito bem. Aliás escreve também em 74-75 muito para coro. Nessa época escreve as Composições Corais sobre Clássicos Castelhanos para coro a capella, que é uma obra maravilhosa. Desse ciclo, há uma parte que está gravada em disco, as Quatro Canciones.

Voltando atrás, como surgiu a 5ª Sinfonia?

A 5ª Sinfonia foi um drama. Foi uma encomenda do governo, através da Emissora Nacional, para a comemoração do 40.o aniversário da Revolução Nacional. Quando o Pedro do Prado falou pela primeira vez ao meu pai, falou-lhe na hipótese de ir a África, a Angola e Moçambique, fazer uma espécie de viagem de estudo para incluir temas africanos na referida sinfonia. O meu pai ficou entusiasmado com essa hipótese mas não ficou entusiasmado com a origem do pedido. E, de facto, quando chegou a casa e contou à minha mãe com um ar algo atrapalhado, ela ia tendo um ataque, e teve mesmo um ataque de fúria. Tentou demovê-lo de todas as maneiras e feitios de aceitar a encomenda. O problema é que a Emissora Nacional pô-lo entre a espada e a parede, pura e simplesmente chantageou-o.

Joly também não estaria à larga de dinheiro…

Não, ele precisava daquele ordenado, como é evidente. Ele tinha um ordenado na altura como Maestro Assistente de Captação, que era uma coisa ridícula, simbólica, mas dava para pagar a renda, a água e luz, e depois tinha de sustentar a mulher e as filhas o resto do mês. Portanto, em primeiro lugar, ele precisava do dinheiro das encomendas, não podia viver sem ele, e em segundo lugar não podia ficar sem o lugar na rádio. A alternativa era emigrar, pura e simplesmente. Coisa que ele não queria fazer porque desde miúdo que era um patriota, ele admirava o Pedro de Freitas Branco por ter voltado e fundado a orquestra da Emissora Nacional e não ter aceitado naturalizar-se francês. Fosse qual fosse o regime, ele nunca viraria as costas à Pátria. É uma coisa que ainda há pouco tempo a minha tia me confirmou, ele gostava verdadeiramente do seu país num sentido antigo, num sentido de amor à Pátria que nós agora já não sabemos muito bem o que é, a verdade é essa. E, portanto, não queria emigrar. E dizia que se era músico e se era artista tinha direito de o ser na sua terra, fosse de que maneira fosse. Toda a gente passou dificuldades naquela época, a verdade é essa.

E acabou por aceitar a encomenda…

Acabou por aceitar porque o Pedro do Prado disse-lhe muito claramente: «Se você não aceita, amanhã está na rua». Ele tinha ido ao Brasil no ano anterior. A minha mãe ainda telefonou para dois ou três amigos brasileiros através até do Manuel Ivo Cruz, que era um grande amigo, mas o meu pai recusou-se terminantemente a ser obrigado a fugir daqui por causa de uma encomenda, dizia ele que «daqui a 50 anos ninguém quer saber da encomenda e a obra está cá».

E teve razão. Mas ‘passou as passas do Algarve’ por causa dessa sinfonia…

Sim, porque, como se sabe, a crítica musical, sendo um dos poucos domínios em que o regime não interferia, estava nas mãos de gente de esquerda e, nomeadamente, gente do Partido Comunista. E mesmo gente de esquerda ficou indignadíssima por um homem com a integridade do meu pai ter aceitado aquela encomenda infame. Portanto, toda a crítica lhe caiu em cima. Havia pateadas sempre que se tocava uma obra dele, fosse ela qual fosse, até a 4ª Sinfonia foi pateada no Tivoli. 

Tudo isso antes do 25 de Abril, numa altura que coincidia já com a fase da vanguarda.

Sim, estamos a falar em 66-68. Portanto ele tinha sido chantageado pelo regime e levava pateadas da oposição. Não era que ele se preocupasse demasiado com isso, aquilo a ele não o incomodava particularmente, mas como é evidente incomodava a família.

E não lhe criou dificuldades a nível de encomendas?

Não, não. Na altura a Gulbenkian encomendava-lhe praticamente uma obra por ano, portanto ninguém ligou a isso, excepto, obviamente, a oposição. O que, aliás, me parece uma coisa natural. Um tipo que escreve uma sinfonia a comemorar o 40º aniversário da Revolução Nacional deve estar à espera que o pessoal de esquerda lhe caia em cima, que foi exactamente o que aconteceu. O meu pai não se preocupava com isso, mas para a família era um bocado desagradável. Para a minha mãe, coitada, que era uma pessoa liberal e democrata, e que detestava o regime, aquela contemporização foi uma coisa que lhe custou a engolir, quase se divorciaram por causa disso. Mas a verdade é que a obra ficou e é das mais importantes.

É marcante e foi premiada…

Não recebeu o prémio mas ficou entre as 10 melhores classificadas dos prémios da UNESCO desse ano, ficou em quinto ou sexto lugar. Os jornais puseram isso em parangonas e fizeram-nos entrevistas aos quatro, tiraram-nos fotografias, e a minha mãe cada vez mais furiosa com o chinfrim.

Quando é que foi a classificação pela UNESCO?

Foi logo em 66, porque o Pedro do Prado, sem o meu pai saber, enviou para o concurso. E de repente aparecem aquelas parangonas nos jornais e o meu pai chega à Emissora e diz: «Mas o que é que aconteceu? Eu não percebo nada. Eu não entrei neste concurso…», «Ah, eu mandei a obra!». (risos)

Fotografia: No restaurante “Cozinha Velha”, em Queluz, com o compositor brasileiro Camargo Guarnieri. No sentido dos ponteiros do relógio, Maria de Freitas Branco (mulher de João de Freitas Branco), Maria José Braga Santos, João de Freitas Branco Paes e Helena de Freitas Branco Paes, Joly Braga Santos e Camargo Guarnieri. Meados dos anos sessenta.

Artigo publicado na Glosas nº 3, p.18-30.

Sobre o autor

Imagem do avatar

Alexandre Delgado nasceu em Lisboa em 1965. Foi aluno particular de Joly Braga Santos. Recebe uma bolsa do Ministério da Cultura para prosseguir os seus estudos em Composição e Violino no Conservatório de Nice, tendo trabalhado com os professores Jacques Charpentier e Barbara Friedhoff, e concluindo o curso com distinção em 1989. Entre as suas obras, destacam-se o 'Concerto para viola e orquestra', 'Poema de Deus e do Diabo' e a ópera 'O Doido e a Morte'. Em 2001, o seu 'Quarteto de Cordas' foi gravado em CD pelo Arditti Quartet. Como violetista, ganhou em 1987 o Prémio Jovens Músicos. Foi membro da Orquestra Juvenil da Comunidade Europeia (1988-1989) e da Orquestra Gulbenkian (1991-1995). Tem-se dedicado ao estudo da música portuguesa, em especial a vida e obra de Luiz de Freitas Branco. Foi crítico musical do jornal 'Público' (1991-2001) e assinou o programa 'A Propósito da Música' na Antena 2. É autor do livro 'A Sinfonia em Portugal' (ed. Caminho 2002). Desde 2002 é director artístico do Festival de Música de Alcobaça.