entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santos
transcrição de Duarte Pereira Martins e Philippe Marques
Dos vários professores que teve lá fora, qual foi o que mais o marcou?
O Scherchen, sem dúvida, tanto como professor de Composição, quanto como Director de Orquestra.
Mais do que o Virgilio Mortari?
Mais do que o Mortari, sim. O Mortari foi professor de Composição, mas a verdade é que, depois do Luís, tinha pouco para lhe ensinar.
Talvez em novas técnicas de composição…
Ele sobretudo aprendeu muito ouvindo, indo a muitos espectáculos, indo a muitos concertos, lendo muitas partituras, comprando partituras assim que chegavam… Era como ele gastava o dinheiro da bolsa!
Daí nasceu a grande viragem de estilo, sendo talvez os Três Esboços Sinfónicos a obra que marca essa viragem…
A viragem começou, curiosamente, com a Mérope e por influência da minha mãe. Quando ela ouviu pela primeira vez a Mérope achou que aquilo não era música do seu tempo e que o meu pai tinha de, pouco a pouco, libertar-se da influência do Luís de Freitas Branco. Portanto, foi ela que o empurrou e encorajou, para além da curiosidade natural do meu pai, a dar uma volta ao estilo, a tornar-se mais contemporâneo e a absorver tudo aquilo que eles estavam a ouvir todos os dias nos espectáculos a que iam. O Concerto para Viola foi mais um passo, digamos que ele foi progredindo passo a passo. O Divertimento I é uma obra muito específica em que ele decide fazer, exactamente, um divertimento e usar a sua linguagem habitual. Os Três Esboços Sinfónicos foram realmente a primeira tentativa. Ele não escrevia sinfonias desde a 4ª, não imaginava escrever outra sinfonia usando a mesma linguagem. Isso é revelador de que ele achava que já era uma linguagem esgotada, pelo menos do ponto de vista da forma sinfonia. E a verdade é que só escreve uma nova sinfonia dezasseis anos depois, e é a 5ª, que é uma revolução. Ele quis ir aprendendo, a par e passo, o que é que se coadunava melhor com as suas características intrínsecas, fala muito disso nas entrevistas que dá. Quer permanecer fiel à sua personalidade musical.
Uma coisa que ele nunca perdeu é o élan melódico, mesmo nas suas fases mais abstractas.
A prova disso é a 5ª Sinfonia ou, por exemplo, uma obra como o Divertimento II, em que a melodia está lá – é difícil, é dura, angustiada e pungente, mas está lá. E, mesmo na 5ª Sinfonia, há sempre melodia.
Mas é muito interessante que essa viragem tenha sido em grande parte por influência da tua mãe, é sinal de que não era para aí que ele naturalmente pendia…
Não, e os amigos reconhecem. O Cassuto, por exemplo, que assistiu a todas as conversas e discussões (das quais, aliás, era parte integrante porque foi aluno do meu pai e além disso aparecia lá em casa para lhe mostrar as partituras de tudo o que escrevia), foi testemunha privilegiada de todos os anos 60. Hoje, olhando para trás, tornou-se muito conservador (as pessoas quando envelhecem, se calhar acontece-lhes isso) e disse-me no outro dia, com um ar um bocado indignado: «o teu pai nunca devia ter deixado de escrever à maneira antiga, porque é isso que faz sucesso, é isso que atrai as plateias». Eu fiquei um bocado indignada com esta afirmação (risos), achei um pouco extremista. E falei-lhe da 5ª Sinfonia e de outras obras fabulosas… E da Sinfonietta que lhe é dedicada, que ele tem dirigido magistralmente e que é uma obra fantástica. O meu pai queria absorver uma parte das novas linguagens mas queria permanecer fiel à sua personalidade musical. Há um episódio curioso que é absolutamente demonstrativo dessa dualidade que se instala na obra dele que é a composição da 6ª Sinfonia. Depois da 5.a ele compôs coisas várias, entre elas a Trilogia das Barcas que é uma obra que no fundo é uma espécie de súmula de todos os estilos porque é uma obra ultra-contemporânea, ultra-moderna, com música concreta inclusive, mas estão lá os modos medievais todos porque o libreto isso pede e a isso obriga. Depois disso, entusiasmado com os modos medievais (que era uma coisa de que ele falava desde novo e de que o próprio Luís de Freitas Branco falava muito), escreveu o D. Garcia, com o poema da Natália [Correia] baseado na poesia medieval e trovadoresca. Depois quis escrever outra sinfonia mas chegou a meio, não sabia como havia de descalçar a bota e parou durante largos meses. Eu lembro-me dele correr o corredor da casa da Av. dos Estados Unidos da América de um lado para o outro, era um corredor enorme…
Nessa altura tinhas 13 ou 14 anos…
Sim, foi em 71-72. Lembro-me de vir da escola e ver o meu pai de um lado para o outro, numa angústia tremenda, sem saber o que fazer. E eu perguntava: «Ó pai, o que é que se passa?», «Não sei o que hei-de fazer com a 6ª Sinfonia…», «Então se não sabe ponha-a lá num canto, deixe-a lá pousada em cima da secretária e daqui a uns meses!»… Mas o facto de não conseguir terminar uma obra provocava-lhe uma angústia criativa muito grande. Entretanto houve duas ou três viagens a Espanha porque ele era júri do Prémio Manuel de Falla e convidavam-no regularmente para as conferências dos festivais, e quando veio de uma dessas viagens, talvez mais refrescado e com uma colectânea de poemas em castelhano de Camões que não se encontravam em Portugal, ficou entusiasmadíssimo. Um dia chego a casa e ele está a tocar aquele final da 6ª Sinfonia, com aquelas redondilhas maravilhosas do “Irme quiero, madre…”. Perguntei-lhe se era uma obra nova e ele volta-se para mim com um sorriso maroto e diz-me: «Não, isto é o final da 6ª Sinfonia». Eu fiquei um bocado intrigada. E depois pediu à minha mãe para ir ao escritório: «Maria José, vem cá e experimenta cantar isto», que era uma coisa que ele fazia sempre que escrevia para voz, pedia à minha mãe para cantar. E a minha mãe, claro, ficou deliciada com aquela maravilhosa música. O que aconteceu foi que a segunda parte da 6ª Sinfonia ficou pronta. Entre as duas há aquela transição que é muito bem feita porque (e aí vê-se a mestria orquestral do meu pai), embora sendo um bocado incómoda, está tão bem escrita que, se for bem dirigida, nem se dá por ela. E eu pedi-lhe para ele me dedicar a sinfonia porque fiquei absolutamente encantada com aquele maravilhoso tema.
Mas é verdade que passou de um mundo para outro completamente diferente; de tal modo que depois já não voltou a escrever sinfonias…
Não, aquela foi onde pôs o ponto final. Ele viu que esta nova linguagem que ele tinha criado resultava muito bem, por exemplo, em obras corais-sinfónicas. Se formos ver o catálogo há o Babel e Sião e a obra sobre os poemas de Teixeira de Pascoaes, As Sombras. Para obras corais-sinfónicas, que ele adorava escrever, resultava muito bem. Aliás escreve também em 74-75 muito para coro. Nessa época escreve as Composições Corais sobre Clássicos Castelhanos para coro a capella, que é uma obra maravilhosa. Desse ciclo, há uma parte que está gravada em disco, as Quatro Canciones.
Voltando atrás, como surgiu a 5ª Sinfonia?
A 5ª Sinfonia foi um drama. Foi uma encomenda do governo, através da Emissora Nacional, para a comemoração do 40.o aniversário da Revolução Nacional. Quando o Pedro do Prado falou pela primeira vez ao meu pai, falou-lhe na hipótese de ir a África, a Angola e Moçambique, fazer uma espécie de viagem de estudo para incluir temas africanos na referida sinfonia. O meu pai ficou entusiasmado com essa hipótese mas não ficou entusiasmado com a origem do pedido. E, de facto, quando chegou a casa e contou à minha mãe com um ar algo atrapalhado, ela ia tendo um ataque, e teve mesmo um ataque de fúria. Tentou demovê-lo de todas as maneiras e feitios de aceitar a encomenda. O problema é que a Emissora Nacional pô-lo entre a espada e a parede, pura e simplesmente chantageou-o.
Joly também não estaria à larga de dinheiro…
Não, ele precisava daquele ordenado, como é evidente. Ele tinha um ordenado na altura como Maestro Assistente de Captação, que era uma coisa ridícula, simbólica, mas dava para pagar a renda, a água e luz, e depois tinha de sustentar a mulher e as filhas o resto do mês. Portanto, em primeiro lugar, ele precisava do dinheiro das encomendas, não podia viver sem ele, e em segundo lugar não podia ficar sem o lugar na rádio. A alternativa era emigrar, pura e simplesmente. Coisa que ele não queria fazer porque desde miúdo que era um patriota, ele admirava o Pedro de Freitas Branco por ter voltado e fundado a orquestra da Emissora Nacional e não ter aceitado naturalizar-se francês. Fosse qual fosse o regime, ele nunca viraria as costas à Pátria. É uma coisa que ainda há pouco tempo a minha tia me confirmou, ele gostava verdadeiramente do seu país num sentido antigo, num sentido de amor à Pátria que nós agora já não sabemos muito bem o que é, a verdade é essa. E, portanto, não queria emigrar. E dizia que se era músico e se era artista tinha direito de o ser na sua terra, fosse de que maneira fosse. Toda a gente passou dificuldades naquela época, a verdade é essa.
E acabou por aceitar a encomenda…
Acabou por aceitar porque o Pedro do Prado disse-lhe muito claramente: «Se você não aceita, amanhã está na rua». Ele tinha ido ao Brasil no ano anterior. A minha mãe ainda telefonou para dois ou três amigos brasileiros através até do Manuel Ivo Cruz, que era um grande amigo, mas o meu pai recusou-se terminantemente a ser obrigado a fugir daqui por causa de uma encomenda, dizia ele que «daqui a 50 anos ninguém quer saber da encomenda e a obra está cá».
E teve razão. Mas ‘passou as passas do Algarve’ por causa dessa sinfonia…
Sim, porque, como se sabe, a crítica musical, sendo um dos poucos domínios em que o regime não interferia, estava nas mãos de gente de esquerda e, nomeadamente, gente do Partido Comunista. E mesmo gente de esquerda ficou indignadíssima por um homem com a integridade do meu pai ter aceitado aquela encomenda infame. Portanto, toda a crítica lhe caiu em cima. Havia pateadas sempre que se tocava uma obra dele, fosse ela qual fosse, até a 4ª Sinfonia foi pateada no Tivoli.
Tudo isso antes do 25 de Abril, numa altura que coincidia já com a fase da vanguarda.
Sim, estamos a falar em 66-68. Portanto ele tinha sido chantageado pelo regime e levava pateadas da oposição. Não era que ele se preocupasse demasiado com isso, aquilo a ele não o incomodava particularmente, mas como é evidente incomodava a família.
E não lhe criou dificuldades a nível de encomendas?
Não, não. Na altura a Gulbenkian encomendava-lhe praticamente uma obra por ano, portanto ninguém ligou a isso, excepto, obviamente, a oposição. O que, aliás, me parece uma coisa natural. Um tipo que escreve uma sinfonia a comemorar o 40º aniversário da Revolução Nacional deve estar à espera que o pessoal de esquerda lhe caia em cima, que foi exactamente o que aconteceu. O meu pai não se preocupava com isso, mas para a família era um bocado desagradável. Para a minha mãe, coitada, que era uma pessoa liberal e democrata, e que detestava o regime, aquela contemporização foi uma coisa que lhe custou a engolir, quase se divorciaram por causa disso. Mas a verdade é que a obra ficou e é das mais importantes.
É marcante e foi premiada…
Não recebeu o prémio mas ficou entre as 10 melhores classificadas dos prémios da UNESCO desse ano, ficou em quinto ou sexto lugar. Os jornais puseram isso em parangonas e fizeram-nos entrevistas aos quatro, tiraram-nos fotografias, e a minha mãe cada vez mais furiosa com o chinfrim.
Quando é que foi a classificação pela UNESCO?
Foi logo em 66, porque o Pedro do Prado, sem o meu pai saber, enviou para o concurso. E de repente aparecem aquelas parangonas nos jornais e o meu pai chega à Emissora e diz: «Mas o que é que aconteceu? Eu não percebo nada. Eu não entrei neste concurso…», «Ah, eu mandei a obra!». (risos)
Fotografia: No restaurante “Cozinha Velha”, em Queluz, com o compositor brasileiro Camargo Guarnieri. No sentido dos ponteiros do relógio, Maria de Freitas Branco (mulher de João de Freitas Branco), Maria José Braga Santos, João de Freitas Branco Paes e Helena de Freitas Branco Paes, Joly Braga Santos e Camargo Guarnieri. Meados dos anos sessenta.
Artigo publicado na Glosas nº 3, p.18-30.