Muito obrigado, Nuno da Rocha, pelo tempo de que dipuseste para esta entrevista à Glosas. Permite-me que comecemos pela Restart, encomenda da Fundação Gulbenkian. Na apresentação da temporada, ironizavas com as questões que te colocava a apresentação de uma obra ao lado da Sagração da Primavera. Isso influiu directamente sobre a concepção ou sobre a escrita?

No princípio, quando recebi a encomenda, ainda não conhecia o programa, mas soube pouco depois, o que acabou por constituir um choque, a par de uma certa alegria por estar junto daquelas peças. Creio que nos deixa de algum modo orgulhosos, mas, ao mesmo tempo, se formos lúcidos, extremamente preocupados; preocupados por vermos o nosso nome ao lado de uma obra como a Sagração. Foi também interessante perceber que, conhecendo o programa antecipadamente, reconhecia que a minha peça não poderia ser determinada coisa. Digamos que eu não sabia o que iria a peça ser na altura, mas sabia o que não seria: sabia, por exemplo, que não poderia ser frágil. Isto, aliás, relaciona-se com o meu passado, o que vejo também na maioria dos compositores que provêm de outras áreas (eu não me considero, de todo, um especialista no cânone da Música Ocidental: há tanta coisa em que sou quase completamente analfabeto… às vezes, quando se fala em repertório clássico, há tanto que desconheço!). Quando digo que estamos ligados a outras áreas, refiro-me à experiência auditiva. Eu nunca toquei rock, mas a minha experiência auditiva veio daí, o que acaba por influenciar a nossa escrita quando conhecemos a chamada “música séria”, a música escrita. A nossa base, não obstante, nunca deixa de ser a mesma, e não há nada agora que eu possa fazer em relação a isso: boa ou má, é esta, e é interessante percebê-lo em cada compositor de hoje, ouvindo a música que escreve e detectando remissões estéticas para fora daquele mundo. Será porventura essa mais uma das razões pelas quais há uma variedade tão grande na música escrita actualmente e em qualquer lado: se virmos, não há nada que seja unânime em termos estéticos.

Como foi a relação, numa fase de infância artística, que mantiveste com compositores como Vasco Mendonça, com uma experiência prévia na área do Jazz, ou Carlos Marecos, de referências igualmente diversas?

É curioso que mo perguntes, por estarmos ligados de algum modo, mas não por isso. Foi mesmo por eles me terem transmitido, nos tempos, a técnica básica – e mais tarde, na Escola Superior de Música de Lisboa, já com o Luís Tinoco, o Carlos Caires e o António Pinho Vargas –, e permitirem-me desenvolver a minha escrita. Naquele início foi bom ter o Vasco Mendonça, meu primeiro professor de Composição, porque realmente percebia certas coisas que eu talvez só mais tarde tenha vindo a compreender, e acabou por me proteger. Qualquer compositor sem essa sensibilidade olharia para mim, na altura, e teria dito: “Este miúdo das bossas novas quer escrever Música. Não pode!” Mas ele não fez isso e ajudou-me sempre. Ouviu naturalmente coisas muito más, mas ajudou-me a desenvolver-me e acabou por ser um encontro muito feliz, porque teve a sensibilidade de me receber num estado tão bruto, o que foi um dos primeiros passos para que eu pudesse começar a escrever. Não foi há muito tempo, mas parecem-me já coisas muito antigas. Para mim, o Marecos e o Vasco revelaram-se duas pessoas essenciais, principalmente porque não me fizeram desistir. Não foi tanto a ligação com a música popular quanto a sensibilidade que tiveram de me levar por caminhos que, na altura, foram bons para mim, e aprendi imensamente com ambos.

Tiveste oportunidade de experimentar esquissos com o grupo do Estágio de Orquestra Gulbenkian. Que impacte tiveram essas experiências na forma final da peça?

Na forma final da peça…

Sendo que não existe ainda, talvez…!

Não: a forma já está concebida agora [Agosto]; na altura, por casualidade, não estava. Serviu para experimentar coisas que julgava frágeis, para ter certeza de como resultariam. Na verdade, houve coisas que, a meu ver, resultaram bem, enquanto outras houve que ainda pude dizer à Joana [Carneiro] e às secções que queria mudar e que acabaram por ficar como imaginara; outras simplesmente nem vou usar. Acabou por ser importante na forma, porque pelo menos um dos rascunhos que levei tinha definido como o início da peça, mas não sabia que posição viria a ter no resto: e ali soube o que, por fim, seria e que força iria ter para a forma total. Antes do estágio, não saberia se o faria surgir mais tarde, qual seria a força daquela frase (é uma frase, com uma melodia nos trombones e em duas trompas das quatro): tinha a melodia – tinha aquela “pintura” –, mas não sabia até que ponto teria aquilo impacte no resto do que ainda faltava escrever. A partir daquele momento, soube, porque, como naquele trecho a maioria da música não tem alturas definidas, quer queiramos, quer não, será sempre uma grande surpresa nas cores todas de cada uma daquelas colcheias. E será sempre uma surpresa: podemos ter noção da densidade, mas surpreender-nos-á inevitavelmente a interacção de todos os timbres.

De resto, hoje em dia é raríssima a possibilidade de experimentar, ainda para mais com uma orquestra excepcional, que tocou, mesmo numa leitura, com muito ímpeto, força e dinâmica – e eu gosto disso. É uma oportunidade de corrigir, o que faz parte do crescimento da nossa técnica, do nosso próprio crescimento como compositores. Como se diz, “vale mais um ensaio da nossa música do que um ano de aulas de Composição”, e eu sinceramente – e com toda a certeza – considero-me ainda um estudante, um aprendiz. Estamos a começar.

Houve oportunidade de trocar impressões directamente com os jovens do Estágio? Sabes como foram recebidos os esquissos?

Houve, sim, e fui até eu próprio quem mais o procurou. Tentei perceber o que pensavam e, pelo menos, pareceu-me que obtive uma recepção positiva. Naturalmente que, no início, quem nunca leu uma clave sem alturas definidas, com apenas gestos e afins, não consegue ver totalmente o que se vai passar – e mesmo para quem vai dirigir: será sempre uma surpresa para o próprio compositor. Para quem toca e foi sempre habituado a ler apenas o que está escrito, pode ser como se nos tivessem tirado o chão, é como ter de nadar numa direcção que só os próprios conhecem. Não o compositor: eu apenas lancei os dados e são eles quem tem de fazer a música mesmo; mas nos ensaios senti que, a partir da segunda ou terceira vez, se fez Música, se ouviu uma evolução claríssima da sonoridade de todos. Estavam muito mais livres, que é, no fundo, o que aquele tipo de música pede.

Uma coisa interessante é a clave High-Low, dos registos, que vem de Andriessen. Ele próprio, na partitura do Workers Union, diz que os músicos devem tocar aquela linha (não me lembro agora exactamente) como uma espécie de posição política: “têm de tocar como se estivessem a dizer a vossa posição política em relação às coisas” (não de forma frouxa, é o que ele quer dizer, mesmo que a música esteja escrita em piano e mezzo-piano). Lembrei-me entretanto de que a Orquestra de Câmara Portuguesa vai tocar Workers Union agora em Setembro; isto por falarmos no Workers Union, em Andriessen, que creio ser uma das perguntas que ias fazer, por causa das influências… [risos] É sem dúvida uma influência, uma das pessoas que realmente mudaram de forma decisiva a minha escrita. Creio que é um tipo de notação perigoso, mas depois de estudado e depois de experimentar, soa melhor do que qualquer coisa que tivesse antes escrito. Foi justamente uma das conversas que eu tive com o [Magnus] Lindberg.

Sim, porque esse tipo de notação já tinha aparecido em I could not think of thee as piecèd rot, não é verdade?

Sim, e noutras. Essa foi já a segunda peça em que a usei.

Qual foi a primeira?

Foi o Concerto para trompete e acordeão.

A Philippina!

Sim. Lindberg perguntou-me: “Mas temos mesmo de…?” Porque ele gostava daquele som experimentado na orquestra, daquele bloco, e dizia-me que haveríamos de experimentar ainda assim, mas com as alturas escritas. E eu, que estava sempre a contrariá-lo, creio que ele também acabou por acreditar um pouco em mim. Lindberg é a melhor pessoa para tentar uma coisa dessas, mas acho que não conseguiria, porque o que eu imagino é mesmo isto. A cor acaba por ser uma surpresa, mas é mesmo o que eu queria! Até há momentos – e tu, como compositor, sabes – em que estás a ouvir uma peça (e por vezes acontece-me e eu perco a cabeça): “Quem me dera ter escrito isto! Quem me dera ter tido esta ideia. Quem me dera ter escrito este momento tão… mesmo bonito!” E há outros em que foste tu quem escreveu e dizes, ainda assim: “Quem me dera ter sido eu a escrever isto!” É interessante, porque acabaste por ser tu, mas ao mesmo tempo não foste. Musicalmente é muito interessante e, ao mesmo tempo, para quem está afastado da música, se quisermos falar sobre a poética da questão, também é fascinante.

Quando estive no Festival de Aix-en-Provence, em fins de Junho e no início de Julho, estavam lá muitos criadores – entre compositores, escritores, encenadores – e houve uma colega nossa, alemã, que, não obstante esta questão da ausência de altura definida não ter para nós, músicos, nada de extraordinário, achou poeticamente incrível o facto de um músico criar na altura a música. Gostava do princípio de ausência de rigidez na relação entre o compositor, a peça e os músicos. Ficou fascinada, com muitas ideias, mesmo para coisas que nada têm a ver com Música. Até poeticamente é notável essa liberdade dentro de uma prisão: eu defino as durações, intensidades, articulações; tudo, excepto a altura exacta. Digo mais ou menos onde quero: que seja uma nota por ali – mas nunca esquecendo que isso parte de uma ideia essencialmente musical, porque, como te disse há pouco, cheguei a um ponto em que pensei que, se era isto que procurava, deveria, então, usar e experimentar.

E na reacção dos músicos sentiste diferença entre os jovens do Estágio Gulbenkian de Orquestra e os músicos da Orquestra Gulbenkian? Sentiste uma clivagem geracional na abordagem à Música?

Pela minha parte, e com a experiência que tenho, tenho visto bons e maus exemplos em todas as gerações. Acabo por não conseguir dizer-te que os jovens estejam mais predispostos a isto. Há jovens que não estão: não estão mesmo. Mas, ao mesmo tempo, há pessoas de uma geração anterior, como naquele exemplo de Setembro, na peça em que Lindberg dirigiu a Orquestra Gulbenkian, que se sentem muito à vontade com aquele tipo de notação, em que têm de decidir quase tudo o que fazer. Estas orquestras cada vez mais percebem que não podem tocar só o passado; e só por aí, já é importante. Não é a resposta à tua pergunta, mas acaba por se relacionar: pelo menos, têm noção de que não podem tocar só o Cânone, porque não é o que vai acontecer no futuro, de certeza absoluta. Mas em termos de aceitação, depende mesmo de pessoa para pessoa, e há músicos com mesmo muito mais idade que recebem melhor estas coisas do que outros com vinte anos. Não creio que tenha a ver com a idade das pessoas. Por vezes é até o contrário: as pessoas já viveram tanto que realmente precisam de lavar um pouco…

De um estímulo novo…?

Claro que sim, e o nosso papel enquanto compositores também passa por uma experiência sonora nova, por regras diferentes, porque uma partitura é uma coisa muito fechada, muito quadrada – os nossos compassos –, muito quadrada! Isto falando de música para orquestra, porque está claro que com um ensemble é possível fazer coisas muito bem feitas e fora de uma partitura.

Mas obviamente que, para juntar oitenta pessoas, é muito difícil senão através de uma ligação de compasso. Pode não ser o compasso, podem ser referências ou chamadas.

Outro recurso que tens vindo a empregar é o canto de dentro do ensemble (ou da orquestra, neste caso). Como foi que isso surgiu?

É um recurso inesperado. Tu, que estiveste nos ensaios de Julho da Restart, apercebeste-te de que assim é realmente. Eu adoro a transição de cordas para a voz, bem como aquele contexto sonoro de um não-cantor, aquela imperfeição na voz de quem não é, de facto, um cantor, efeito (chamemos-lhe assim) que eu tento combinar, como uma imagem não rigorosa, nos meus ambientes musicais. Outro motivo que me faz usar esse recurso é estabelecer uma relação de intimidade com os instrumentistas, que é uma das coisas mais importantes que pode existir quando se está a fazer Música: a ligação entre as pessoas. Obviamente não estou à espera de que isso seja logo bem recebido, porque um instrumentista que estudou décadas e chega a um ponto em que, na partitura, tem de cantar o que está a tocar creio que tem toda a legitimidade para dizer que não foi aquilo que estudou. Todavia, eu tento, com muita calma, mostrar-lhes que é parte daquele mundo sonoro e, quando experimentam, sinto que gostam de o fazer e que acaba por ser confortável, porque eu obviamente nunca peço que cantem notas que não estão a tocar e serão sempre passagens muito lisas. É, em suma, um contexto de intimidade com o músico e com a Música em si que gosto de explorar.

Encontras-te neste momento numa posição privilegiada: em diálogo simultâneo com as duas maiores instituições do País neste campo. Como decorrem os trabalhos no Porto e que espaço te é dado como Jovem Compositor Residente da Casa da Música? Que peças vão resultar da residência?

A residência decorre durante este ano de 2015, mas na verdade eu começo-a agora, entre Setembro e Outubro. Quando digo que começo, refiro-me a trabalhar no terreno. As peças já foram entregues, mas os ensaios começarão só em Setembro, altura em que estarei realmente na Casa da Música. Vão resultar daqui três estreias, todas obras encomendadas. Curiosamente, serão todas em Outubro: três peças na Casa da Música, que com a Restart na Gulbenkian, também em Outubro, perfazem quatro estreias num mês, o que é algo realmente invulgar nos dias que correm. Creio mesmo que nunca mais me acontecerá!

A primeira peça é para o trio que ganhou o Prémio Jovens Músicos em Música de Câmara de nível superior no ano passado, o Trio Portucale: flauta, viola e harpa. Eu fiquei feliz quando soube que uma das encomendas seria para aquele trio, porque de facto me agrada a formação: ligará sempre muito bem, não é preciso fazer muito para que resulte! A verdade é que, das três peças para a Casa da Música, foi aquela que maior trabalho criativo me deu, porque foi difícil sair de uma ideia horizontal de música melódica. Aliás não saí, tanto que a peça se chama Cinco Melodias em Dó! [risos] É uma peça que também usa o recurso da voz: começa com um grande solo de harpa, em que ela canta… mas de facto digo que foi a peça que me foi mais difícil escrever das três.

Na semana seguinte, dia 20, estreia a peça para o Remix Ensemble, que foi a segunda encomenda: Passacaglia. Como o nome indica, tem a forma, ou quase, de uma passacaglia, mas aqui o estranho é que a linha que determina este ostinato melódico grave é feita nos tímpanos. E portanto serão oito minutos a ouvir tímpanos a fazer sempre a mesma coisa! [risos] Eu espero que resulte. Creio que gosto: vamos ver agora nos ensaios e no concerto. Foi uma ideia que tive para usar esta forma, que me interessava há muito.

Depois, tenho a sorte também de ter tido uma terceira encomenda para a Orquestra Sinfónica da Casa da Música: uma peça que se chama Pitch, de altura. E, como eu tenho vindo a explorar nas últimas peças, praticamente nunca usa alturas definidas. É, portanto, uma obra para grande orquestra que raramente tem alturas definidas. Eu não tenho muito a dizer sobre peças sem texto porque é para mim difícil falar de Música pela Música: eu gosto de sentir esta abstracção; ela não tem de dizer nada, não tem de significar nada – e é por isso que eu a considero a maior das Artes.

Reflectindo após este ano particularmente intenso, sentes a formação de um projecto artístico emergente? Ainda procuras uma direcção – ou é desejável uma direcção – para apontares o teu foco criativo?

Uma coisa que aprendi recentemente e que pode até parecer uma ideia poética, mas que creio que só a idade traz (a Cristina, minha mulher, está sempre a dizer-me o mesmo), foi que não devemos querer ser mais do que aquilo que somos ou podemos ser; isto é, tudo o que façamos deve ser tão honesto quanto possível. Quando digo isto, refiro-me, por exemplo, à escrita de uma melodia. Por vezes preciso de uma frase, vejo-a e penso que parece a coisa mais lírica-chapada-já-inventada-há-duzentos-anos possível, mas ao mesmo tempo tenho de respeitar isso, não posso fazer alguma coisa com que depois não me identifique. Não se trata de deixarmos de ser críticos com a nossa música, mas de não criticarmos a base daquilo que fizemos. De facto, por mais que outros gostem ou não (não é isso que me faz escrever, e creio que ninguém), temos o dever de ser o mais honestos possível – sempre críticos com o que fazemos, mas sempre honestos e não querermos ser outros.

Aliás, o próprio ensino da composição incute-nos isso: o estudo das peças, do repertório… uma das principais coisas que aprendi com o Vasco Mendonça foi não sacralizar: “Não penses nisso como se fosse a Bíblia.” Isto foi uma grande lição, que só agora estou a perceber, ou pelo menos a aplicar, ao mesmo tempo que, evidentemente, é inescapável que tenhamos de aprender com os grandes.

Agora, todavia, percebo exactamente o que ele queria dizer: não podemos olhar para um objecto e querermos ser o mesmo objecto: nós somos um objecto próprio. Melhoremos o que for possível, tendo em conta observações de outros, mas não pretendamos ser outro. Eu continuo obviamente a olhar para peças, continuo a estudar, mas já não da mesma maneira: estudo alguma coisa, mas tento perceber como aquilo que ouço, e no que quero, me vai ajudar, o que creio que é essencial. Sinto muitas vezes, principalmente quando estou a lidar com compositores de outros países, ligados aos IRCAMs, às grandes instituições, que vão a Darmstadt, por exemplo, que quando ouço quatro, ouço um! Quase não é possível perceber qualquer individualidade, o que creio que é uma pena, que é a morte deles, e que tem a ver com isso de se sacralizar.

Penso que nós, compositores, somos habituados a querer sempre – lá está, tem a ver com a Sagração – ver em tudo um monumento, quando às vezes o monumento é aquilo que há dentro de nós e que nunca vamos escrever, simplesmente porque nos vemos sempre como pobrezinhos à beira de um repertório pesado. Foi essa uma das maiores lições que aprendi enquanto estudante do Vasco.

Outro dos meus grandes ensinamentos, neste caso do [António] Pinho Vargas, foi também que “um compositor tem sorte ou tem azar”. É mesmo verdade: e eu também tenho tido consciência disso. Isto, claro, se formos sempre tão honestos quanto possível. Há sempre coisas que correrão mal, porque não somos perfeitos… portanto, se lançarmos tudo cá para fora, haverá coisas de que não iremos gostar, mas só assim conseguiremos fazer o melhor daquilo que inicialmente imagináramos. Estas são duas ideias que eu guardo sempre.

Ao mesmo tempo, em termos de objectivos, creio que os compositores mais novos devem olhar sempre para cima. Assim: não sacralizar, mas ao mesmo tempo ter sempre objectivos, sobretudo dar a ouvir a nossa música no estrangeiro; e, muito sinceramente, a nossa música contemporânea está muito bem representada: uma das provas disso foi esta última Tribuna Internacional de Compositores, em que, dos três compositores que levámos, o único que não levou uma recomendação fui eu…! [risos] Temos de acreditar nisso, lançarmo-nos lá fora e conhecermos estes festivais. É um facto que instituições como a Fundação Gulbenkian e a Casa da Música têm de ter esse papel de nos pôr a circular, porque nós também, a partir de casa, não conseguimos fazer esse trabalho. Por aí, tenho a dizer que estou muito grato para com esta rede ENOA [European Network of Opera Academies], porque tenho circulado e feito esse percurso, que me deixa contente, por me abrir caminhos para fora. Portugal é um país muito pequeno – e então na nossa área…! É como antes dizias: “a Casa da Música e a Gulbenkian constituem uma situação privilegiada.” Sim, de facto… mas no próximo ano? Tenho de ir para outros lados, não posso estar parado à espera de que, uma vez mais, a Casa da Música e a Gulbenkian me convidem. Obviamente quero que aconteça, mas temos de olhar para cima, sempre como objectivo e não como miradouro, não como olharmos para cima para os grandes e acharmos que estas peças são magníficas e que vamos simplesmente estudá-las.

Mesmo se pensarmos nos grandes compositores do Cânone, mesmo no séc. XX, eram sobretudo pessoas livres, honestas.

Fizeram o melhor que puderam, temos esses nomes todos, que são brilhantes, mas creio que também não podemos cair no erro de olhar para essas obras como para um palácio. Não pode ser: temos de estudar, sim, mas não, como disse o Vasco, sacralizar; não olhar para as obras que são objecto do nosso estudo como se fossem a última coisa a ser feita no mundo, ou então nunca seríamos compositores!

Escrever música pode ser uma de duas coisas, e eu tenho um pouco de ambas: algo naïf – porque, ao querermos ser compositores, é como se disséssemos que poderíamos ter alguma coisa a dizer por entre tudo o que já existe, o que pode, por si só, ser uma ilusão inevitável. Ao mesmo tempo, temos de partir para esse campo sem sequer percebermos que o mundo é tão vasto que não somos mais do que uma migalha. Essa naïveté é, todavia, o que nos faz ir para o campo: se não, acabaremos por nem sequer ir. E depois, como Pinho Vargas me dizia, é uma questão de sorte ou de azar. Como nestas oportunidades de trabalhar com a Casa da Música ou com a Gulbenkian, temos de ter alguma consciência e perceber que é um grande risco. Pode ser quase sempre um jogo de sorte ou azar; agora, nós temos, sim, de saber viver com isso.

Não podemos pensar que somos o pior dos compositores se vier a correr mal, mas também não podemos pensar que somos o melhor por termos sido escolhidos para escrever uma peça para a Gulbenkian – de todo, porque dentro do grupo que ali estava em Setembro, eu admiro quase todos: ouço de facto e gosto de ouvir a música deles – não é só dizer que está bem: está bem escrito. Faz parte da música que ouço em casa; e é muito raro ouvir em casa uma peça de um compositor, por exemplo, do Romantismo: em primeiro lugar, porque desconheço a maioria do repertório, em segundo, porque também não tenho interesse. A minha experiência musical é esta. Ali eu era admirador pelo menos de todos os portugueses que conhecia. Assim, acaba por ser uma questão de sorte ou azar: não há compositor que não faça peças más. Ouvi uma vez Martijn Padding dizer que o único compositor que nunca escreveu uma coisa má foi Ravel. Eu não acredito, mas do repertório que nós conhecemos, talvez tivesse razão. Ainda mais quando somos novos, não é possível…

Não há corpo para julgar…

Por amor de Deus! Nós escrevemos meia dúzia de peças: como é que podemos…? Tudo o que é possível é gostarmos do que fazemos, sermos honestos e querermos descobrir quem somos realmente, sem copiar outros, o que só se descobre escrevendo, escrevendo, escrevendo… é por isso que talvez só agora eu perceba o que o Vasco me disse já há cerca de nove anos.

E para além de influências musicais directas, como as que já abordaste, há na tua produção artística influências extra-musicais explícitas?

Lembro-me de inicialmente ser muito poético, de conceptualizar tudo… num espectáculo, durante as Peças Frescas1, dava ao público papéis para rasgar – a peça, para dois percussionistas e um piano, chamava-se Desassossego. Os espectadores tinham um papel, com uma palavra, que podiam rasgar durante a peça.

Na altura talvez o não quisesse admitir, mas o conceito seria tanto ou mais importante do que a própria música; e o que fui aprendendo ao longo destes anos é que, por muito interessante que possa ser associar à música outras ideias, o pensamento musical tem de ser o pilar fundamental: nunca o contrário.

Mesmo, por exemplo, aquela peça em Setembro, na Gulbenkian, com Lindberg, acabou por ser quase dramática, mas esse peso não surgiu antes da ideia musical. Nada foi pensado como motivação da personagem; foi, sim, o texto, que continha uma história muito interessante, sobre morte, e todo o peso que a música veio depois trazer acabou por o transformar quase numa cena de ópera. Em primeiro lugar, surgiu a ideia de escrever o solo, depois o texto, que reforçou essa ideia, e em seguida a música, acabando por se tornar um conjunto exponencial, uma combinação de ambos. Não é, todavia, uma questão que me preocupe extraordinariamente.

No entanto, tiveste intenção de lidar com elemento teatrais – teatrais no sentido de uma estratigrafia de significação – no teu trabalho com a Dança, pelo que convives bem com a explicitação de elementos extra-musicais.

Quando fui recentemente para Aix-en-Provence, tive oportunidade de conviver com todos aqueles criadores e o meu objectivo foi sobretudo apresentar trabalho, falar sobre Ópera e conhecer pessoas do mundo da Ópera (e falamos de Katie Mitchell, Peter Sellars e de tantas outras pessoas que eu não conhecia). Uma das primeiras coisas que lá disse foi que eu devo estar no fim de uma lista das pessoas no mundo que gostam desse género musical. Fundamentalmente, considero a Ópera um conjunto de componentes que, uma vez que eu gosto muito de Música – realmente dos sons –, se perdem excessivamente uns por entre os outros, com o texto, etc… tem de ser mesmo alguma coisa muito bem feita. Há, todavia, outras justaposições de áreas que considero felizes, que é o caso da Dança. Ainda não a explorei como gostaria, mas no futuro fá-lo-ei seguramente.

Para mim, a Dança é uma espécie de Música impossível: há, a meu ver, demasiados limites impostos à Música, enquanto na Dança há uma expressão mais livre. São absolutamente distintas, claro: uma é visual, outra parte da experiência sonora. Eu gostaria, não obstante, de que a Música fosse por vezes como o gesto de um braço… tem tantos pontos no espaço e é algo tão livre como a Música nunca conseguirá ser. Nunca poderá ser tão sublime… portanto, eu vejo na Dança uma espécie de Música sublimada: o corpo tem uma liberdade que um instrumento não pode ter, com uma tão grande quantidade de pontos móveis, de uma maneira tão ligada, articulada. A voz, por seu lado, é já parte do nosso mundo: pode dizer palavras, o que é quase musical.

Em Setembro, vamos estar outra vez em Aix-en-Provence, com Martin Crimp, autor dos libretos para o [George] Benjamin, a trabalhar com o Nicholas McNair: eu, o Igor [Silva] e o Pedro Faria Gomes em Gent, no Estúdio de Ópera. Vamos trabalhar sobre o mito de Orfeu, de forma plural, com vários criadores.

Será a minha primeira experiência integrada com encenação, que eu penso sempre – lá está – que fragiliza. 

E ainda veremos a Philippina dançada?

Não sei. Eu imaginei-a coreografada, mas não sei se terei essa oportunidade. Creio que verei a Philippina tocada em Zurique nos próximos tempos, graças aos esforços do Marco [Silva], que a estreou. Em nenhuma das nossas conversas, contudo, sobreveio a ideia de que viesse a ser dançada. Mas mesmo que não venha a ser, serviu à concepção musical, o que já foi importante.

Consideravas no início, todavia, que não davas primazia a influências extra-musicais…

No caso desta peça, tenho de mentir, sim… aliás, houve momentos em que imaginei primeiro duas pessoas no palco e só depois a música, como uma coreografia acompanhada. A minha intenção não era tanto explorar ideias extra-musicais, mas perceber como o que eu imaginara viria a ser compreendido por alguém como um coreógrafo, e o que o meu gesto daria ao gesto dele. A ideia nem era tanto artística, mas antes estudar a ideia de gesto musical, que para mim é a única que tem sentido estudar-se em Música. É claro que o gesto musical, como sabes, pode ser interpretado de maneiras diferentes; mas é a primeira coisa que eu componho: é a resposta à pergunta “O que é que eu quero?”, o gesto que quero no momento em que escrevo. Muitas vezes digo a colegas do meio musical, e tenho praticamente a certeza de que é verdade, que é muito fácil encontrar uma melodia bem escrita no contexto da música popular, enquanto num contexto de música escrita, do Cânone, é mais difícil. Questiono-me sempre porque será. Na minha perspectiva, e falando agora da invenção melódica, o gesto de criar uma boa melodia está mais próximo da honestidade da música popular do que da música mais pensada e cerebral. Creio que a combinação perfeita seria a do pensamento horizontal popular com o pensamento tendencialmente vertical da música escrita.

É por vezes difícil, pelo menos para mim, encontrar uma melodia excepcionalmente bem construída num qualquer compositor do nosso Cânone. A organicidade e a honestidade do gesto são essenciais à escrita de uma linha para que faça sentido musicalmente, o que é muito natural para a música popular, em cuja base se encontra já impressa esta construção. Nesse sentido, as harmonizações de Berio nas Folk Songs são onde encontro algumas das coisas mais bonitas alguma vez feitas em Música!

Ali está presente o tratamento horizontal característico do pensamento popular, a par com a estruturação harmónica do compositor, conjugando todos aqueles timbres num grupo e resultando na melhor das combinações possíveis.

Regressemos, então, à questão da Dança. A Ópera, embora integre uma narrativa no seu âmago, é um trabalho de compositores e pertence-lhes muito mais enquanto obra artística, geralmente, do que aos libretistas. No bailado é o oposto: há muitos desafios à colaboração, subalternizando-se por vezes o papel do compositor à concepção da coreografia. Não sendo tão natural a Ópera para ti, já experimentaste abordar a criação de algo teatral no bailado?

Mesmo que à semelhança de Andriessen: tendo ele anti-óperas, fazer um anti-bailado, que se expresse através da linguagem no espaço de um corpo com alguma paridade entre a Música e o gesto da Dança?

Não sei se é exactamente aquilo a que te referes, mas já existem algumas experiências nesse sentido, como o recurso a instrumentistas no palco. Para mim é interessante e imagino fazer alguma coisa desse género.

Mas referia-me ao bailado na sua acepção própria.

Na verdade, não sei como irei começar esse percurso, pelo que ainda o não imagino… isto é, imagino-me a trabalhar com coreógrafos, mas não consigo perspectivar o primeiro projecto.

A verdade é que os grandes projectos carecem da mediação de uma instituição, o que é à partida limitador…

Naturalmente, mas eu próprio não tenho tido tempo, pelo menos no último ano, para pensar nesse caminho. Ainda assim, e mesmo pelos meus meios, da mesma forma como falei academicamente com o coreógrafo e os bailarinos e trabalhei com eles, conseguirei chegar a apresentar trabalhos meus em público. Antes disso, preciso, todavia, de perceber o que quero e de que forma… mas é importante o que dizes a respeito do anti-bailado. Já em 2017 haverá um projecto que me obrigará a reflectir sobre isso, uma espécie de ópera infantil que o Conservatório do Montijo vai fazer, com crianças e adultos, mas com uma história de temática infantil. Como também a Escola de Dança do Conservatório do Montijo intervirá no espectáculo, será uma oportunidade para pensar essa relação.

Como Monster in the Maze, de Jonathan Dove?

Foi, por acaso, uma das coisas de que falámos em Aix. Esta ideia em 2017 será escrever música para os graus em que as crianças estejam, juntando-as aos adultos e associando-lhes um coro infantil. A encenação estará a cargo do Conservatório de Dança.

Claro que isto é apenas um projecto de que me lembrei porque se insere na problemática que discutíamos. São coisas que levam muito tempo e eu tenho algumas a fazer no próximo ano no que se refere apenas à música instrumental; além disso, também quero lançar o disco do Coro Infantil do Instituto Gregoriano…

Que já começou a ser gravado, mas resta uma peça por escrever…

Não uma, mas quatro ou cinco…! É um ciclo de canções. Interrompi-o há cerca de meio ano, mas em mais dois meses estará pronto. Esse será um grande disco: com o coro da Filipa [Palhares], e estas últimas peças são para piano preparado e doze vozes. A juntar depois à Missa que escrevi para coro infantil [Assim, do tempo em que me falavas, 2011] e à outra peça de Natal [De novo, um assim, 2012], pretende-se, em Agosto ou Setembro, lançar o CD. São esses os projectos para o próximo ano. Mas passando esta fase da Casa da Música e da Gulbenkian, acabo por ter mais disponibilidade mental para pensar neste assunto da Dança. Ainda não sei que tempo terei em 2016, mas acredito que vá pensando, porque me interessa realmente. Como te disse, sinto que a Dança é tal qual a Música, no expoente máximo de liberdade: é o que eu gostava de exprimir. Se fossem sons, seria extraordinário: a melhor música do mundo!

Muito obrigado, Nuno!

Obrigado.

notas:1 O projecto Peças Frescas foi desenvolvido pela Escola Superior de Música de Lisboa desde 2002, em parceria com o Teatro Municipal de São Luiz, prevendo a apresentação em concerto de obras de estudantes de Composição da ESML e a promoção do estabelecimento de novos vínculos com o público interessado na criação musical contemporânea. (Nota do transcr.)

Texto publicado na Glosa nº 13, p. 46-49.

Sobre o autor

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Luís Salgueiro é licenciado em Composição pela Escola Superior de Música de Lisboa. Para além da sua actividade criativa, dedica também a sua energia à preparação de partituras e musicografia, primeiro como 'freelancer' e actualmente como coordenador das actividades editoriais do MPMP, Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa.