Compor música: porquê?
Porque é maravilhoso! Apercebo-me de que vou indo… e poucas vezes páro para pensar numa questão como esta. Diria que há o prazer da música em si, enquanto fenómeno, e há o prazer de criar relações e me relacionar, interna e externamente, com as emoções, com um texto, com uma imagem, com uma situação, com uma memória, com o/um corpo, com uma ideia, com uma — ou com as — pessoa(s), com o espírito… Eu gosto de criar em geral, mas fazer música toca e preenche-me mais do que qualquer outra coisa. Muitas vezes é um processo de cura e exteriorização. Se calhar também é onde me sinto o mais honesta e verdadeira comigo própria e, por consequência, com o meu redor.
Para quem?
Motiva-me conseguir expressar algo que provoque e que anime uma experiência emocional nas pessoas, tentando servir sempre a música o melhor que me é possível. Gosto de sentir o ouvinte mais como companhia, não tanto como público-alvo. Depois, o resto é como a pedrinha que cai num lago e provoca uma série de ondas circulares. Podes escolher mais ou menos onde vai cair, mas depois já não depende de ti (e ainda bem)…
Desde quando?
Se estás a falar puramente de registo, acho que o primeiro momento foi quando escrevi uma peçazita de piano quando estava no segundo grau do conservatório. A vontade, depois, começou a materializar-se quando estava no liceu e tinha uma banda rock. Mas acho que, no geral, sempre gostei mais de deambular no instrumento do que estudar o que devia…
Até quando?
Não penso num “até quando”. Continuo enquanto fizer sentido, enquanto der prazer e a vida o permitir.
Uma folha em branco: como nasce o primeiro som?
Quase nunca começo com uma folha em branco. O mais frequente é vir em ricochete de algo. Quando face ao vazio, fico a ouvir em silêncio, sem estímulo visual, e espero.
Ritual diário ou manifestação ocasional?
Sou tendencialmente da turma do ritual diário, mas celebro muito o espontâneo, faz-me sentir viva.
Compor ao piano, ao papel, ao computador?
Varia consoante a fase do processo. A ideia e/ou material nasce(m) quase sempre num instrumento, na voz, num gesto, etc., onde o papel entra como apanha-ideias, organizador e mapa formal. O desenvolvimento e construção acontece depois, em grande parte ao computador, com o qual uso maioritariamente a voz para compor (daí precisar de estar sozinha, hehe).
Que tal um concerto para gaita-de-fole e orquestra?
E que outra obra concertante?
Bom, se calhar perguntaria ao Nuno Côrte-Real o que é que ele achou da experiência, hehe… Acho que, se algum dia compor um concerto, será pela/para a pessoa e não tanto pelo instrumento.
Há “música portuguesa” na tua música?
Se for responder literal, ou melhor, folcloricamente, sim, há música portuguesa em certas peças que já escrevi. No entanto, não busco conscientemente um estilo ou objectivo nesse sentido.
Modos de escuta no quotidiano:
Principalmente ao andar na rua ou de transportes.
Géneros musicais:
Epa, isto das categorias é ingrato… alternativo, rock, MPB, artpop, erudita, electrónica, jazz, tradicional, músicas do mundo, pfff…
A ter de ouvir um concerto inteiro: uma dupla sertaneja ou Maria Leal?
Venha a dupla sertaneja.
Ludovico Einaudi ou Rodrigo Leão?
Rodrigo Leão.
Das Märchen ou Opus Clavicembalisticum?
Das Märchen.
Proposta para André Rieu:
Um concerto intimista na ZDB.
Ópera ou teatro?
Tenho dificuldade em pensar nesses termos. Estatisticamente vejo mais teatro que ópera (também não é difícil perceber porquê). Talvez também porque, como criadora, olho para a ópera menos como género e mais como um campo musical aberto, que pode ir para qualquer lado. Se calhar isso já não é ópera… portanto… vou-te responder com dança.
Cinco compositores de eleição e cinco obras musicais:
Chostakovich, Bernardo Sassetti, Björk, Meredith Monk, Ligeti (isto não tem nenhuma ordem).
Concerto para violino n.º 1, Prokofiev
Missa em si menor, BWV 232, “Agnus Dei”, J. S. Bach
The Unanswered Question, Charles Ives
A Bird in the Garden, Fátima Fonte
A sagração da Primavera, Stravinski
Music to Hear, Mark Anthony Turnage (Oops, olha, pus 6!)
Cinco pintores e cinco telas:
Mark Rothko, Nadir Afonso, Frida Kahlo, Paul Klee, Artemisia Gentileschi.
A dança, Paula Rego
Campo de trigo sob um céu de tempestade, Van Gogh
Guernica, Picasso
Horizonte com névoa, Carlota Monjardino
Reclining Nude, Suzanne Valadon
Cinco escritores e cinco livros:
José Saramago, Tolstoi, Adília Lopes, Lewis Carroll, Italo Calvino
Buru Quartet, Pramoedya Ananta Toer
The Grapes of Wrath, John Steinbeck
The Waves, Virginia Woolf
Livro do desassossego, Bernardo Soares
Beloved, Toni Morrison
Cinco realizadores e cinco filmes:
Alice Rohrwacher, Céline Sciamma, Almodóvar, David Lynch, Kiarostami
O segredo de um cuscuz, Abdellatif Kechiche
Dancer in the Dark, Lars von Trier
Caramelo, Nadine Labaki
Les uns et les autres, Claude Lelouch
Offside, Jafar Panahi
Roma, Alfonso Cuarón (Não sei contar até cinco…)
Campo ou cidade?
Campo. Mas adoro a efervescência da cidade.
Praia ou montanha?
Venho dos Açores onde os dois coexistem, hehe. Mas vá, praia…
Neve ou deserto?
Neve.
Jornal ou rádio ou televisão ou internet?
Normalmente, internet. Não tenho televisão e, excepto quando no carro, (infelizmente) não tenho hábito de rádio. Mas nada como se sentar num café com o jornal.
Sons insuportáveis:
Garfo a arranhar o prato, ou do género. Motos, que tudo abafam ao passar na rua.
Sons idílicos:
Mar. E aquele dó sustenido da trompa no 2.º compasso d’A sagração da Primavera.
Sonhos por concretizar em geral:
Não sei que voltas a vida vai dar… mas sempre quis tirar um ano de caravana por aí fora. Ou ir de barco para os Açores. Viver no campo com um estúdio para compor não seria nada mau. Estou a pensar simples.
Sonhos por concretizar enquanto compositora:
Estabilidade financeira e ter mais tempo para fazer outras coisas dava jeito, haha. Bem, há tanto que gostava de fazer… mas o que será, será. Eventualmente fazer edição fonográfica de alguns trabalhos… No fundo, tudo quanto faça, desde que tenha algum significado, desde que me permita conhecer melhor o mundo, e contribuir para algo, então é tudo jóia.
Composições em curso:
(Em curso como quem diz, é mais o que está programado nos próximos tempos…) Estou agora a preparar os arranjos para Songs for Shakespeare, um ciclo de canções dos OGRE Electric (Maria João, João Farinha e André Nascimento) que será lançado em disco no início do próximo ano, em dois concertos no Porto (Casa da Música) e Lisboa (Capitólio), 2 e 5 Fevereiro, respectivamente. Com o Ensemble MPMP! Estou também a preparar um episódio da série televisiva de ficção operática Cortina vermelha, de Catarina Molder, com rodagem em 2022. Canções para um trabalho discográfico com previsão para 2022. Peça para piano, encomenda de Jill Lawson e do Musicamera, com estreia em 2022. Uma nova ópera com estreia prevista para 2023, encomendada no seguimento do Prémio Carlos de Pontes Leça do OperaFest Lisboa.
Texto publicado na Glosa nº 21, p. 23-29.
Fotografia: Jennifer Lima Pais.