Domenico Scarlatti, sexto filho de Alessandro, também músico e compositor, iniciou as suas actividades como compositor teatral, embora a sua produção alcance os valores mais elevados nas obras de música religiosa e, especialmente, nas sonatas para cravo. Estas sonatas constituem, no total, mais de quinhentas obras (558 ou 5591). O conjunto das fontes manuscritas e impressas de Scarlatti é uma questão complexa: existem trinta volumes de sonatas, escritos com caligrafias diferentes (embora seja claro que há um copista principal em ambos), copiados a pedido da própria Maria Bárbara de Bragança, no fim da vida do compositor (mais precisamente entre 1742 e 1757).
Seguramente o próprio Scarlatti terá supervisionado a cópia, plena de indicações pormenorizadas. Estes volumes são constituídos por dois grupos diferentes e o primeiro grupo de quinze volumes, ricamente encadernado e decorado com as armas reais de Espanha e de Portugal, pertenceu à Rainha, que mais tarde o ofereceu a Farinelli, não se sabendo como foi parar, em 1835, à Biblioteca Marciana de Veneza. O segundo grupo, que tem, apesar de tudo, algumas diferenças de cópia de sonatas repetidas, está conservado na Biblioteca Palatina de Parma desde o final do século XIX. Todavia, nenhum dos conjuntos tem todas as 555 sonatas (este é o número total dos dois conjuntos de manuscritos), havendo algumas de cópia única num ou noutro. Consideram-se, no entanto, para a tradição textual de Scarlatti não apenas estes manuscritos mas também as edições de Londres (1738, trinta sonatas), de Roseingrave (também de Londres, 1739), os dois volumes impressos em Paris em 1742, a transcrição de Charles Avison (Londres, 1744) e diversas cópias manuscritas de sonatas individuais ou de conjuntos, mas genericamente de menor valor. A edição de Londres, que se intitula Essercizi per Gravicembalo, foi dedicada por Scarlatti ao rei D. João V, que lhe concedera o título nobiliárquico de Cavaleiro da Ordem de Santiago.
O compositor terá despertado, porventura, a atenção do monarca português quando, no cargo de mestre da Capela Giulia, no Vaticano, compôs obras teatrais e sacras (os dois Miserere ainda se conservam no arquivo do Vaticano), das quais se destaca o magnífico Stabat Mater. Nesta época, Scarlatti tinha uma segunda ocupação, como mestre de capela em casa do Marquês de Fontes, embaixador de Portugal em Roma. Nessa qualidade, a 6 de Junho de 1714, fez representar uma obra de circunstância, o Applauso genetliaco del signor infante di Portugal, tendo, talvez, esta obra influenciado decisivamente a sua vinda para Portugal.
Com efeito, em 1716, D. João V tinha conseguido que Lisboa fosse elevada à categoria de Patriarcado e, para corresponder a tal honra e magnificência, o rei fez vir para Portugal cantores, músicos e compositores de excelência. Em 1720 Domenico Scarlatti mudou-se para Lisboa, para o serviço da corte, com os principais deveres de compor e de dar aulas de música ao irmão mais novo do rei, D. António, e à filha do rei, Maria Bárbara.
A relação entre o compositor e Maria Bárbara viria a perdurar desde os tempos de juventude da princesa, em Lisboa, até aos tempos de rainha, no país vizinho, tendo Scarlatti seguido no seu séquito para Espanha. Até 1746 Scarlatti esteve exclusivamente ao serviço dos príncipes das Astúrias, ou seja, de Maria Bárbara e de Fernando VI.
Curiosamente Kirkpatrick (1982) identifica dois retratos de Domenico Scarlatti. Um deles, onde não é totalmente certo (embora bastante provável) de que seja o compositor e do qual apenas sobrevive a gravura de Charles Joseph Flipart (1721-1797), feita a partir de pintura de Jacopo (ou Iacobus) Amigoni (também Amiconi). Neste retrato, à direita do observador, em segundo plano e numa tribuna, estarão Farinelli e Scarlatti (figura mais à direita do observador).

Fernando VI e Bárbara de Bragança com a sua corte. Gravura de Joseph Flippart (1721-1797) a partir de pintura de Jacopo Amigoni (1682-1752).

Domenico Scarlatti (?). Detalhe da gravura de Joseph Flipart.
O outro retrato, que serve de capa a este número da revista glosas, foi vendido pela família de Scarlatti em 1912 e adquirido a Mariano Hernandez por José Relvas, em Madrid, quando foi embaixador de Portugal em Espanha, a 19 de Janeiro de 1913, por 250 pesetas2. Actualmente continua na Casa dos Patudos, agora Casa Museu, sendo um dos ex libris da colecção. Está atribuído ao pintor italiano Domingo Antonio de Velasco e datado de ca. de 1739.
No retrato vemos Domenico Scarlatti, em pé, junto a um instrumento de tecla, possivelmente um cravo. Pela posição das teclas pretas do registo grave é possível verificar que o instrumento não possui oitava curta. Scarlatti apoia aí a sua mão esquerda, transmitindo ao observador a importante condição de músico e instrumentista. A escolha do instrumento não terá sido aleatória, uma vez que a maioria da sua produção como compositor foi para instrumento de tecla. Na outra mão segura duas folhas, numa das quais é possível ler ‘Ao Senhor D. Domenico Scarlatti’. Poderá ser este documento que simboliza a comunicação da condecoração dada por D. João V (a cruz da Ordem de Santiago), que o músico exibe ao peito? Indica-nos Marshall: “In 1738, perhaps as a compensation for the favors that were being showered on Farinelli by the king and queen, Scarlatti was made a knight of Santiago by Maria Barbara’s father. (Domingo Antonio de Velasco’s portrait of Scarlatti commemorates this halcyon period in Domenico’s life.) In return, Domenico dedicated to João V the handsome volume of thirty Essercizi per gravicembalo issued at London or Venice in 1738, with a title page by Jacopo Amiconi” (2003: 161). Poderá também a carta significar o convite para ir para Madrid, acompanhando a princesa, sua aluna, Maria Bárbara de Bragança, assumindo novos cargos na corte espanhola?
No retrato da Casa Museu dos Patudos Scarlatti veste casaco (aparentemente, veludo), casaco este que se sobrepõe a um magnífico colete, com o dourado (fios de ouro?) como cor de fundo e com padrão floral. A camisa e as mangas são em linho com renda fina. Em baixo (à direita do observador) é possível ver parte de uma espada (ou punhal) que completa o traje do músico. É de realçar que poderá ter havido uma autorização de D. João V para a utilização de traje tão fino (linho, seda, fios de ouro) com a insígnia, uma vez que os estatutos da ordem de Santiago impunham o austero hábito de cor negra como utilizou, por exemplo, o pintor D. Velázquez.
Serve de fundo ao retrato um panejamento verde que deixa a descoberto uma parte de um relógio que, por sua vez, assenta em coluna. Este relógio, extremamente ornamentado e decorado com figuras mitológicas, marca uma hora exacta: duas horas e vinte e um minutos. Permanece um mistério o porquê da indicação de uma hora tão exacta e propositadamente visível ao olho do observador. O relógio, em si, poderá ser uma simples alusão ao tempo que passa de forma inexorável simbolizando a enorme quantidade de afazeres do músico, compositor, professor e mestre de capela.
Resta ainda lembrar o facto de a figura de Scarlatti ter seduzido o prémio Nobel da literatura, José Saramago, ao introduzi-lo como personagem (secundária)3 no livro Memorial do Convento: “É homem, italiano de nação, está há poucos meses na corte, e é músico, mestre de cravo da infanta, mestre da capela real, o nome dele é Domenico Scarlatti, Escarlate, Não é bem assim que se diz, mas a diferença é tão pouca que podes chamar-lhe Escarlate, afinal, é como toda a gente lhe chama, mesmo quando julgam estar a dizer certo”. Sobre o encontro no Paço entre Scarlatti e outra personagem, o Padre Bartolomeu de Gusmão, findada a lição de música da infanta, Saramago descreve:
“O italiano dedilhou o cravo, primeiro sem destino, primeiro como se estivesse à procura de um tema ou quisesse emendar os ecos, e de repente pareceu fechado dentro da música que tocava, corriam-lhe as mão sobre o teclado como uma barca florida na corrente, demorada aqui e além pelos ramos que das margens se inclinam, logo velocíssima, depois parando nas águas dilatadas de um lago profundo, baía luminosa de Nápoles, secretos e sonoros canais de Veneza, luz refulgente e nova do Tejo, já lá vai el-rei, resguardou-se a rainha na sua câmara, a infanta debruça-se para o bastidor, de pequenina se aprende, e a música é um rosário profano de sons, mãe nossa que na terra estais […]”.
Notas
1 Existem algumas dúvidas referentes à catalogação das obras. Por exemplo, a sonata K. 52 subsiste em duas versões muito diferentes, catalogadas como A e B na nova edição Fadini e não contadas como duas sonatas diferentes. A autora agradece as indicações de José Carlos Araújo.
2 Indicação da ficha de inventário da Casa dos Patudos. Por sua vez, Noro (1993: 100) indica o ano de 1913 como data de compra do retrato, sendo muito generalista no que toca ao anterior proprietário, referindo-se a ele apenas como “um certo Dr. Hernando, de Madrid”.
3 Na obra de Saramago a música de Scarlatti aparece como força espiritual (e também terapêutica, quando aplicada a Blimunda) para a concretização do sonho de construir e de fazer voar a passarola. Na hora de partida e de fazer voar a máquina, o cravo é esquecido, sendo depois destruído por Scarlatti, por receio da Inquisição.
Texto publicado na Glosa nº 12, p. 4-5.