Abertura

No nº 318 da Rua da Restauração no Porto, com uma localização privilegiada e uma vista desafogada sobre o rio Douro, encontra-se o Palacete Silva Monteiro, considerado como “a casa mais bonita do Porto” no século XIX. Este palacete reflete uma nova forma de habitar, numa lógica burguesa e cosmopolita, expressando um determinado modus vivendi e estatuto social. 

Alçado do Palacete de Silva Monteiro [Plantas de Casas nº XLVI, A.H.M.P.]
Retrato de António da Silva Monteiro no seu obituário. [Jornal Occidente, vol. VIII, nº 220, p. 25.]

O seu proprietário mais ilustre, António da Silva Monteiro (1822-1885), empresário abastado e respeitado filantropo, realizou uma série de alterações ao imóvel aquando da sua aquisição em 1871. À semelhança de outros brasileiros de torna-viagem, procurava que este edifício pudesse ser uma extensão da sua identidade e uma demonstração do poder económico, intelectual e cultural da sua família. Neste exercício de afirmação e representação social, a Música, nas suas vertentes prática e fruitiva, teve um papel importante, refletindo-se inclusivamente nas gerações seguintes, visto que as netas de António da Silva Monteiro – as irmãs Carolina (1889-1948), Ernestina (1890-1972) e Maria José (1892-1973) – fundaram uma escola de música no Porto em 1928, ainda hoje em funcionamento.

Desde 1945 que a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes (CVRVV) funciona neste espaço e embora algumas divisões tenham sido um pouco alteradas, houve o cuidado de manter os espaços principais muito semelhantes no que respeita ao seu aspeto original, tal como se pode verificar no salão de baile do Palacete. Este é um espaço de aparato e de receção cuidadosamente pensado pelo comitente, artistas e artífices, cuja pintura decorativa do teto remete diretamente para as funções da sala: troféus de música e retratos de quatro compositores. A compreensão destes códigos e representações numa perspetiva de conjunto iconográfico permite o correto entendimento e interpretação da temática geral da sala, o que por sua vez remete para estéticas, modelos e protótipos e os seus potenciais significados no contexto das práticas de sociabilidade vigentes.

Ato I – Porto – Paris – Porto

O salão de baile localiza-se no piso nobre do edifício, sendo a divisão de maiores dimensões da casa. As janelas amplas voltadas para a rua principal revelam a preferência por situar as zonas sociais em articulação com o lado mais exposto da casa, nobilitando-se todo o percurso que lhes dá acesso através do recurso a materiais luxuosos, que antecipam a sumptuosidade dos compartimentos. Sabe-se que Silva Monteiro percorreu a Europa numa viagem de recreio antes de se instalar no Porto, tendo contactado com estéticas e ambientes que pretendeu replicar nas suas casas.

Os trabalhos de pintura no salão de baile não contêm nenhuma identificação de autor, mas numa das paredes da sala mais imponente do Palacete, a “sala dourada”, encontra-se a assinatura “C. LEFÈBVRE. DE PARIS. 1873”. Será em publicações do pintor portuense Francisco José Resende (1825-1893) que se esclarece a identidade do artista, consoante se verifica no artigo d’ “O Comércio do Porto” de 17.09.1873: 

Sejamos, pois unanimes em applaudir a feliz e inspirada resolução de monsieur Lefrèvre por haver abandonado a photographia temporariamente; se continuasse a exerce-la, não teria o Porto, como até hoje, quem, sahindo do vulgar, se encarregasse de aformosear as paredes e tectos de alguns palacetes de cavalheiros abastados para se distinguirem de outros não tanto pela riqueza material, como pela novidade e pela phantasia. À delicada condescendência do snr. Monteiro devemos o ter podido ver um d’estes dias o interior do seu novo palacete. (…) No salão de baile da duqueza de Vicence, em Pariz, recebeu Mr. Lefèvre por um trabalho idêntico merecidos louvores dos homens competentes n’aquella epocha. (…) Estamos na sala, estylo Pompadour, sobre o lado do rio; (…) no tecto em ar azul celeste, brilhantes flores ricas de forma e colorido, devidas ao delicado pincel do distincto professor que apresentamos aos nossos leitores.

Casimir Lefèbre (1829-1927?) foi um pintor e fotógrafo francês, professor de pintura e autor de tratados de fotografia. Embora a sua biografia não seja ainda totalmente conhecida, sabe-se que a sua formação de pintor e de operador de fotografia lhe permitiu trabalhar com fotógrafos de renome internacional e também abrir um estúdio no Porto, em 1867. Em Portugal a sua atividade passou por vários projetos de pintura decorativa de interiores no Porto, em Lisboa e em Braga. Face às evidências, é bastante provável que os elementos decorativos do salão de baile sejam de inspiração francesa. O esquema decorativo do teto carateriza-se pela simetria e pelo uso de um vocabulário que remete para o estilo Luís XV, também denominado estilo Pompadour, tanto pelos motivos utilizados como pelos delicados tons pastel e cores suaves. 

Segundo James Triling, o maior propósito da ornamentação nas artes visuais é provocar deleite no olhar, o que sob o escrutínio dos referenciais atuais pode ser tido com algo supérfluo ou dispensável. Esta visão não era necessariamente partilhada na cultura oitocentista, na qual a beleza como função e como afirmação social podia estar alocada ao mais prosaico dos objetos do quotidiano. A integração e a aceitação do ornamento, quer na Música, quer nas artes visuais, varia com o tempo e encerra questões complexas: o equilíbrio entre convenção e inovação, entre aquilo que se entende por tradição local e a influência externa e ainda a dialética entre a visão do artista e a idealização do comitente. A pintura do salão de baile do Palacete convida à reflexão sobre estes equilíbrios, visto que dialoga simultaneamente com convenções iconográficas anteriores e com fórmulas coevas como a fotografia, resultando da encomenda de um portuense cosmopolita e viajado a um artista francês instalado no Porto.

Ato II – Troféus

Troféus são elementos ornamentais que consistem em composições de vários objetos. Podem ser alegóricos, representando as estações do ano, continentes e países, eras e reinados, de temáticas mitológicas ou, frequentemente, de temáticas militares e de caça. Durante os séculos XVIII e XIX, os troféus foram frequentemente utilizados com temáticas musicais em aplicações decorativas em diferentes meios e suportes, tais como estuque, madeira e pintura, sendo referidos como “troféus de paz e não troféus de guerra” pelo arquiteto francês François Blondel na sua obra de referência “Cours d’Architecture” (1698). Os troféus eram aplicados em frisos, medalhões, lareiras, monumentos, fontes, mobiliário, candeeiros, painéis, superfícies parietais, entre outros.

No teto do salão de baile do Palacete Silva Monteiro, destacam-se três troféus musicais em grisaille, dos quais pendem três lustres. À primeira vista, são apenas aglomerados de instrumentos musicais e objetos diversos, mas uma observação mais cuidada revela outros significados que transcendem as aparências, apontando para um programa decorativo erudito e complexo. Os elementos que constituem os troféus remetem para a iconografia das Musas, do Poema Lírico e do Poema Pastoral, da Comédia e da Ópera, seguindo a lógica apresentada na obra “Nouvelle Iconologie Historique” (ca. 1771), de Jean-Charles Delafosse, escultor, arquiteto e ornemaniste francês de grande influência.

Pintura do teto do salão de baile do Palacete Silva Monteiro

O troféu central, de composição circular, acompanha a oval delimitada pelo estuque. Observam-se quatro liras e quatro conchas num plano ortogonal, cada uma envolta numa moldura circular. As folhas de acanto (símbolos de imortalidade) funcionam como elementos de preenchimento e conduzem o olhar à coroa de rosas ao centro da composição que marca o lustre. Para além de ser um objeto presente na iconografia do Poema Lírico, a lira é um atributo de Apolo e também do seu filho Orfeu, remetendo para as artes, para a beleza, para o encantamento da música e das “canções enfeitiçadas”. Juntamente com a lira, a coroa de rosas em destaque ao centro é também um dos atributos de Erato, musa da lírica coral.

O troféu do lado sul, de composição triangular, apresenta uma combinação de atributos de várias musas. Observa-se ao centro a máscara trágica e a clava de Melpomene, musa da Tragédia; ao lado, a máscara cómica, as folhas de hera e um bastão de Tália, musa da Comédia. No meio delas observa-se uma guirlanda de pérolas, atributo de Polímnia, musa da poesia, da dança e da pantomima; por sua vez, as rosas e o cordofone da família dos alaúdes são alguns dos atributos da já referida Erato. A partitura ao centro reforça e identifica a função do espaço, sendo igualmente um dos símbolos do Poema Lírico, segundo Delafosse. Verifica-se também a presença da flauta de pã, símbolo do Poema Pastoral e presente no troféu “Ópera”, do mesmo autor. Estão presentes ainda instrumentos de percussão, triângulo e tamborim (este último integra o troféu “Comédia”), e ainda instrumentos de sopro da família dos metais.

    Por sua vez, o troféu do lado norte apresenta também uma combinação de atributos de musas: a harpa ao centro em primeiro plano é o atributo de Terpsicore, musa da dança, e a flauta um atributo de Euterpe, musa da música. O livro de partituras é novamente convocado nesta composição, símbolo do Poema Lírico, assim, como o alaúde, o triângulo, o tamborim e instrumentos da família dos metais, aos quais se juntam baquetas. À esquerda, um cordofone que aparenta ser um contrabaixo acentua a formação triangular deste troféu, sendo um dos elementos presentes no troféu “Comédia” (Delafosse). As folhas de acanto estão também novamente presentes, elemento neoclassicizante por definição. 

Troféu lado norte, pintura do teto do salão de baile do Palacete Silva Monteiro
Nove Musas (recorte), J. Delafosse (1771).

Ato III – Compositores 

Entre as molduras de estuque ovais que contêm os troféus anteriormente descritos, verifica-se a existência de quatro painéis triangulares de arestas curvas. Os elementos iconográficos presentes nestas quatro secções, não só acompanham a temática da sala, como também a transportam para a cronologia dos seus proprietários e frequentadores. Estes elementos, de compreensão mais direta por serem representações retratísticas de quatro prestigiados compositores, não foram colocados ao acaso, como se procurará demonstrar nos parágrafos seguintes. 

Tratando-se de retratos, propôs-se encontrar elementos sólidos que permitissem apontar com algum grau de certeza a identificação dos compositores, visto que para além dos bustos a três quartos não há quaisquer outros elementos pictóricos, tais como atributos ou assinaturas, que possam esclarecer a identidade dos retratados. Muito embora a bibliografia sobre o Palacete seja considerável, no que respeita a informações sobre a iconografia musical presente é bastante diminuta. Verifica-se que existe apenas uma breve nominata numa brochura da CVRVV e na sua página web identificando os compositores representados, e que a maioria dos autores consultados se refere a estas representações em termos generalistas. 

Sendo este espaço um salão de baile e por inerência lhe estarem alocadas funções de aparato, receção e entretenimento, seria habitual ouvirem-se os grandes êxitos operáticos através de arranjos e transcrições para diversos ensembles sob a forma de fantasias, potpourris, mélanges, entre outros. Observando a iconografia dos troféus e o significado dos seus elementos, coloca-se como hipótese que o leitmoitiv desta sala seja a Ópera. Nesse sentido, propõe-se que os compositores representados na pintura de teto sejam alguns dos autores da música que ecoaria pelas festas e soirées dançantes do Palacete, compositores esses sobretudo conhecidos pelo seu repertório operático. 

Com o intuito de se confirmar a hipótese enunciada e para se chegar a uma proposta de identificação, procuraram-se então as fontes e os protótipos a partir dos quais Casimir Lefèbvre se terá baseado para realizar as pinturas decorativas. Uma das fontes é profícua em informação, visto que inclui semelhanças claras com três dos quatro retratos da pintura de teto: a gravura de Nicolas Maurin-Eustache “Compositeurs dramatiques” publicada na Gazette Musical em 1844. Esta gravura inclui os compositores Daniel Auber (1782-1871), Giachino Rossini (1792-1868) e Giacomo Meyerbeer (1791-1864). 

    A fonte de Casimir Lefèbvre para a representação do quarto compositor é, possivelmente, um registo fotográfico da década de 1840 do compositor Giuseppe Verdi (1813-1901). É possível que o motivo pelo qual Verdi não conste na gravura de N. Maurin seja porque à data da sua produção (1844), Verdi era um jovem compositor cujo reconhecimento internacional era ainda incipiente. Embora os registos fotográficos não tenham autor conhecido, foram usados como modelos para a emissão de selos-postais da Cidade do Vaticano, assinalando o centenário da morte do compositor (2001).

Quatro Poemas (recorte), J. Delafosse
Compositeurs Dramatiques, N. Maurin (1844).

Cena final 

O programa iconográfico da pintura decorativa do teto do salão de baile do Palacete Silva Monteiro foi o mote para uma investigação transdisciplinar que convocou os contributos da História da Arte e da Musicologia. Tanto na Música como nas artes visuais existem códigos, convenções e significados que, ao serem compreendidos, ampliam as leituras dos objetos e dos seus contextos. Neste caso particular, a iconografia transporta uma carga simbólica antiga que dialoga no mesmo espaço com figuras coetâneas do comitente e do artista. Estas imagens ainda hoje comunicam entre si e com os diferentes públicos que acedem ao salão de baile: que possamos ouvi-las.

Daniel Auber, Gioachino Rossini, Giacomo Meyerbeer, Giuseppe Verdi, pinturas do teto do salão de baile do Palacete Silva Monteiro
Selo-postal Giuseppe Verdi, 2001
Fotografia Giuseppe Verdi, década de 1840

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Texto publicado na Glosas n.º23, p. 120-137.

Sobre o autor

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Ana Ester Tavares nasceu em 1984 e é formada em Composição pela Universidade de Aveiro e em História da Arte pela Universidade do Porto. Desenvolve actividade docente no ensino artístico especializado desde 2012 e é colaboradora do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa desde 2020. Na investigação, os seus principais interesses contemplam a iconografia musical, a pintura portuguesa do século XIX e as possibilidades de transdisciplinaridade entre as diferentes artes.