Catástrofe, tragédia, perversão, deformidade, incapacidade, limitação, agressividade, crueldade, exclusão, malvadez, irregularidade, demissão, fraude, escândalo… Longa é a lista de nomes com que designamos coisas que correm mal. É disto que se fala na esmagadora maioria das notícias da televisão e dos jornais. Como não somos anjos, é claro que já todos nos confrontámos com algumas histórias que andam por esses registos. Mas é óbvio também que não é esse o retrato exclusivo daquilo que somos e fazemos – ainda que se constate que não evoluímos muito desde o tempo das cavernas, sobretudo na forma como nos relacionamos, como gerimos recursos, como resolvemos situações e conflitos. (Veja-se a forma como o recurso à guerra ainda é uma realidade comum e dramática. E como o mais longo período de paz na Europa vai sendo paulatinamente ameaçado por instabilidades e divisões, quando não mesmo por fantasmas de dominação e de poder.)

Mas, por muito que custe aos fazedores de notícias, análises e opiniões, ainda há muita coisa que não corre mal. E muita gente que vive num outro planeta, habitado por seres humanos, que se preocupa com outras coisas, que valoriza outras formas de ser, de estar e de fazer. Claro que a vida destas pessoas, tantas vezes anónima e discreta, não é notícia. Mesmo quando realiza obra importante. Quando muito merece uma notita de rodapé num resto de telejornal ou numa nota breve do jornal, ali ao fundo, em letras pequeninas, a ocupar umas linhas que ficavam em branco…

(Não sei se ainda existe algum exemplar por vender ou se já destruíram as sobras, mas o Joaquim Fidalgo, um jornalista e professor com letras bem grandes, publicou aqui há uns anos um livro curioso, A surpresa dos instantes, em que reunia alguns dos pequenos textos que assinava semanalmente no Público, o jornal que ele ajudou a fazer nascer e crescer. Ora esses textos saborosos falavam quase sempre de coisas que não são notícia na maior parte dos jornais ou televisões. Satisfaziam pouco aquela necessidade quase doentia de querer saber o mal do vizinho; de alimentar as invejas; de, da crítica, conhecer apenas a parte do “bota abaixo”. Ainda gosto de os ler, pequenos e simples. Sempre muito bem escritos, claro. Eles falam quase sempre de coisas que se fizeram bem; coisa pouca, sim, mas que faz toda a diferença.)

É numa espécie de quase anonimato que se cria verdadeiramente grande parte de tudo o que é importante, daquilo que nos faz melhores e que faz mudar alguma coisa. Demora vidas, bem sabemos, mas é nessa coragem diária, silenciosa e discreta, mas atenta e eficaz, que se vai mudando a face das coisas. Este arsenal escondido de competência, engenho, criatividade e humanidade vai servindo de contraponto aos instintos egoístas, dominadores e prepotentes que estão na cara de todas as tiranias, chamem-se elas Hitler, capital, mercados, ou outras palavras igualmente obscenas.

As contradições do tempo presente andam expostas, há muito, inevitavelmente, no mundo da arte. Mas as linguagens artísticas também são, em última análise, formas de ler e interpretar o mundo: tanto o que ele foi e vai sendo hoje, como aquilo que está para além dele. Não admira portanto que a arte respire as mesmas ambiguidades e perplexidades. Admira é que persista tanta vez num registo que se compraz “naquilo que corre mal”, porventura em consequência da busca desesperada de um nicho de originalidade. Por vezes, parecendo mesmo que valoriza o acessório, convertendo irregularidade, complexidade gratuita, ininteligibilidade ou incapacidade de comunicação, numa espécie de novas qualidades… Em contrapartida, vamos lendo cada vez mais referências explícitas à dificuldade que alguma arte de hoje revela em assumir de forma natural o lado das “coisas que correm bem”. Ou a sua dificuldade em lidar com o épico, em produzir heróis, em corporizar narrativas “exemplares”.

Mas estas são apenas as consequências do “estado do planeta”. Se a informação e o conhecimento que vemos difundidos trazem demasiadas vezes a marca da excepção, da tragédia e da perplexidade, isso marca também e inevitavelmente o mundo da arte. Ela o assume, interrogando e provocando a leitura dos acontecimentos. Inventando a realidade.

É por todas estas razões que expressões tão liminares de artistas tão genuínos quanto Torga, Lopes-Graça, Sophia, Resende, Siza ou Oliveira – a despeito da sua diversa repercussão junto do grande público – se vão constituindo como vozes inspiradoras, tanto na singularidade das suas propostas diversas, como e sobretudo na universalidade das suas expressões depuradas.

A arte vai-se constituindo como laboratório da mudança. Da invenção. Como sempre foi. Infelizmente não temos hoje, na condução dos destinos dos povos, vozes inspiradoras que saibam ler a realidade com liberdade, com projecto e com destino, como a arte ensina. Como Luther King ou Mandela. Como esperávamos de Obama. Mas o papa Francisco, acabado de chegar de longe, vai deixando uns sinais. Surpreendentemente. Falava a jornalistas sobre a sua missão e a sua busca, sintetizando-as em três palavras essenciais: verdade, bondade e beleza. Sophia, numa das suas notáveis Arte Poética coloca a questão exactamente nos mesmos termos. O conceito da arte também como justiça, na perfeita relação da forma com a função e da aparência com a essência. Por aí andaram os gregos.

Verdade, bondade e beleza. Não podia ler melhor síntese daquilo que eu vejo como destino da arte, principalmente no tempo de hoje. Continuo a acreditar que algo nos levantará acima das tragédias anunciadas. E trabalho confiadamente nessa convicção. Pois é isso que tenho estado a tentar dizer desde o princípio…

Porto, 12 de Abril de 2013

Texto publicado na Glosa nº 8, p. 73.

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