Tem feito coisas muito interessantes como maestro…
Claro! E é um excelente chefe de orquestra! E em relação às minhas obras é um dos melhores a reger!
Como é que se sente um compositor e maestro a ver a sua música regida por outro maestro?
Há um certo pânico quando o outro maestro não respeita os tempos… O tempo e o ritmo! As notas erradas ainda vá que não vá – não quero parecer o Ruy Coelho – mas a verdade é que as notas erradas ainda o público nota que estão erradas, ao passo que o tempo, o público pensa que é assim que o compositor escreveu.
Escreve sempre o tempo que quer ou uma aproximação?
Eu escrevo sempre o metrónomo mas, mesmo assim, muitos não o respeitam! E é sempre para o mais lento. Se pensarem que uma peça minha está demasiado rápida, acreditem que ainda está demasiado lenta! (risos) Certos efeitos tocados de maneira diferente são um horror! E nesse aspecto o Cassuto sempre respeitou os meus tempos.
A AVA Musical Editions tem editado as suas obras… Mas há dez anos atrás não estavam editadas. Como é que evoluiu esta situação? Já se tocam mais as suas peças?
Para já, eu quase que fui “apanhado na curva” com o surgimento da editora, portanto quero fazer o trabalho de revisão para edição. A maioria das peças era tocada e revista na orquestra e os músicos nem sequer emendavam! Estão a tocar sustenido, mas não escrevem ali o sustenido. Há um longo trabalho que eu estou a fazer – e tenho muito que fazer – para que as peças possam ser editadas. Aliás, as grandes editoras até têm um revisor que é uma pessoa que revê melhor que o compositor! Eu dou sempre o exemplo de um livro: quando um escritor entrega um livro, é óbvio que está convencido que entrega um trabalho iniciado. Depois vêm as primeiras provas e tem seiscentos erros! Depois aquilo é entregue a um revisor, a um especialista, e ainda tem noventa erros! Bem, com a música é mais ou menos isso.
Nota que há mais pessoas a tocar as suas obras?
Acho que sim! Eu vejo muita gente aí a tocar coisas… Há gente a tocar muito bem! As gravações dos músicos da Orquestra de Berlim são excelentes, apesar de duas notas erradas! Mas eu só reparei nelas agora na gravação! Quer dizer, não são coisas flagrantes porque senão eles notavam! Só eu é que sei que aquelas notas não são as que eu escrevi! Não são coisas gritantes, não é? No filme estão as notas erradas…
Foi feito um filme com essa obra?
Pois, foi o filme que eu gravei agora…Chama-se O Tempo e as Bruxas.
E quando é que vai sair?
Bom, agora [Setembro] está em fase de mistura. A montagem já está… Penso que daqui a uns dez dias estará pronto. Depois vou entrar noutro capítulo que é cuidar de um lançamento – que foi uma coisa que nunca cuidei em relação ao A Culpa, ou ao Mesas de Mármore.
Como surgiu o Victorino d’Almeida realizador, e como é que se integra a música nesse trabalho?
Aprendi a realizar à medida que ia fazendo programas de televisão em Viena, porque se não os realizasse eu, contratar um realizador austríaco custava mais que todo o orçamento! Então, houve uma produtora extremamente simpática que disse: “Vá, começamos a realizar, que eu vou-lhe ensinando!”. Isto há quarenta anos! Comecei a aprender, a aprender… É evidente que fazer programas para a televisão não é o mesmo que uma longa‐metragem, mas aprende-se à mesma! E montar um filme é a coisa mais parecida que existe com compor!
O material tem de estar bem composto…
Sim, a montagem só é boa se tudo o que for para a mesa estiver certo. Se não estiver certo, a montagem é um horror, um martírio! Fiquei muito contente quando verifiquei que, para a montagem d’A Culpa, não houve um só problema! Estava tudo certo.Montou‐se em dezasseis dias! Uma vez faltou uma personagem num sítio mas resolveu-se facilmente com outra imagem!
E a relação entre cinema e música?
Eu acho que são duas artes, essencialmente, do ritmo. O ritmo de uma montagem e o ritmo de uma peça de música são exactamente a mesma coisa. Entregar, por exemplo, um material cinematográfico a um mau montador (não sendo o próprio realizador a realizar ou não sabendo ele montar), fá-lo começar a molengar, a molengar, e as cenas começam a prolongar-se… Puccini é que dizia: “O melhor amigo do compositor é a tesoura!”, e é verdade: nunca me arrependi de ter cortado coisas!
Tanto na música como no cinema…
Estou sempre a cortar e nunca se perde nada! (risos) Quando se corta, sabe-se o que se está a cortar! Eu acho que não se deve tirar partido do efeito. “É um bom efeito, é porreiro, é divertido, vamos manter mais um bocadinho…”: errado! Eu, n’A Culpa, cortei muito! Durante um ano, estive sempre a cortar! (risos) O lado mais perigoso, para mim, é o repetir, o tirar partido do êxito. Depois a gente vê isso no teatro e cinema… A pior coisa que existe é quando o público começa a rir menos. É muito mau, isso estraga tudo! A gargalhada tem que ir sempre a subir. E quem diz a gargalhada diz qualquer tipo de emoção! O Adorno é que falava muito a propósito da música do Mahler: o ponto alto da obra não é necessariamente o final ou a parte mais forte. A teoria do Adorno é brilhante, todas as pessoas deviam aprender com ela. E não explorar a emoção das pessoas também é algo que eu considero necessário. Porque, no fundo, há uma certa manipulação da sensibilidade do público…
Acha que é esse o papel do artista, também?
O artista criador ou o intérprete deve ter um grande respeito pelo público, ou seja, não estar a tirar partido dele. Tem de haver um grande respeito pelas emoções que se estão a provocar nas pessoas. Isto é igual na música, no cinema ou na literatura.
É a música a mais importante nos seus filmes? Ou a história?
Neste é importante. A música deu-lhe o carácter. Pelo menos o montador, que foi também o director de fotografia, dizia: “Ah, agora é que eu já percebi tudo, o que você quer, o ritmo que vamos dar a esta coisa, só de ouvir a música que escolheu!”.
Mas, nas obras musicais, baseia-se também numa história?
Não é uma história no sentido de dizer que “às nove da manhã, fulano saiu de casa, desceu as escadas”… Não, não é isso. Mas claro que se desenrola uma história que não é uma história, literariamente falando… E esse guião – de uma sonata, de uma sinfonia, de uma fuga, de uma obra qualquer – é um guião musical, mas é um guião também.
Contaram-me que escreve todos os guiões quando faz televisão. A quem dirigia os seus programas?
Tentava dirigir-me a um público o mais abrangente possível. Mas na televisão há também algumas regras que eu impus a mim mesmo. Se eu faço um filme ou uma peça de teatro, a pessoa paga o bilhete porque lhe apetece. Vai lá e se não gosta vai-se embora. Na televisão eu estou a entrar em casa de uma pessoa.
A pessoa tem de ligar a televisão…
Mas, ainda assim, estou a entrar em casa dela. Eu posso começar uma peça de teatro ou um filme assim: “Vão todos bardamerda!”. Eu não posso fazer isto na televisão. Eu estou em casa deles! (risos) A própria gesticulação não pode ser exagerada. Por exemplo, a Natália Correia, que era minha quase irmã, era uma mulher espantosa a falar. Na televisão ela não era tão boa porque abria os braços de tal forma que saía dum lado e doutro do ecrã! Tinha uma gesticulação que não dá em televisão. A pessoa em televisão tem que ser mais contida, tem que caber naquela caixa. Há aquela eficácia que o [José Hermano] Saraiva tinha, mas ele sabia exactamente os gestos que podia fazer. Temos que saber que há diversos tipos de casas, mas temos de arranjar um denominador comum para todas.
E qual é a fórmula?
A fórmula!… (risos) Uma coisa que eu acho que não se pode fazer em televisão é dizer “Como todos sabem, o Beethoven…”… Ora, eles não sabem. (risos) A pessoa sente-se logo ofendida e incomodada se lhe disserem um nome de que nunca ouviu falar. Quando eu digo o Beethoven, até pode ser que já tenha ouvido falar, mas se eu disser “Hugo Wolf, como todos sabem, foi um grande compositor de lieder…” já posso estar a ofender as pessoas! (risos) Também não se deve exagerar demasiado. Há uma certa forma de explicar as coisas.
Lá está o denominador comum…
É preciso um denominador comum que abranja o mais possível. Por isso não me importo de escrever os guiões. Neste último que saiu é que não escrevi, porque foi o único que não foi realizado por mim. Passava ao Domingo na RTP2. O realizador é que me fazia as perguntas e eu respondia-lhe. Era uma entrevista. Correu bem, mas as entrevistas são perigosas porque muitas vezes os entrevistadores são muito maus…
Maus?
Mal preparados… Há uns que são bons. Por exemplo, o Carlos Cruz era fantástico! A entrevista do Carlos Cruz ao Álvaro Cunhal é uma coisa… É uma obra de arte!
E como é que se define uma obra de arte?
(pausa) É complicado!… (risos) É uma obra que alia os valores que pretende salientar e transmitir a um sentido de eficácia nessa transmissão. Uma pessoa pode ter uma belíssima ideia e não a saber transmitir. Não tem a arte de a transmitir. A obra de arte é uma forma de comunicação. Um pintor comunica, um escritor comunica, um músico comunica, até o entrevistador comunica! Os bons entrevistadores daqui eram o Carlos Cruz, a Maria Elisa, a Conceição Lino (mas musicalmente…). Há outros que são uma coisa horrível…
A pessoa nem sabe como há-de responder…
É que nem se responde! Ficamos parados… A pior que já me apareceu foi a Teresa Guilherme. É inacreditável! Uma vez fez-me uma entrevista em que me pergunta “Então quais são os seus planos para este Verão?”. E depois foi-se embora, eu fiquei a responder para uma cadeira. É claro que ninguém a viu sair na televisão, só me viram a mim sem saber para onde havia de olhar! Esta excedeu tudo, mas há os outros que começam a olhar para o lado. E a gente a responder-lhes, o que é uma coisa horrível! (risos) Depois há os outros que mesmo que estejam a ouvir, a gente sabe que eles não estão a perceber nada, portanto vai dar ao mesmo! (risos) Há um vazio no olhar que é uma coisa um bocado assustadora!
E como é o Victorino d’Almeida escritor?
O mesmo que o compositor! Tenho também a tesoura – sempre a tesoura. Eu acho muito bem, quando se está a compor ou a escrever, que se faça mais – estamos à vontade, não estamos ali com ideias pré-concebidas… Atira-se a massa para cima da mesa. Mas depois vai-se cortando, aparando, até saber que é a conta exacta para não estarmos a manipular o público. Estamos a emocioná-lo, sim senhor, mas não a manipulá-lo!
Ainda em relação a compositores portugueses, aquelas lições que recebeu do Joly Braga Santos terão sido importantes…
Sim, foram muito marcantes para mim. Para além de vir a ser, mais tarde, um grande amigo, foi um grande professor, um grande orquestrador. Eu aprendi muito em Viena, mas já ia com uma boa bagagem de orquestração. Claro que se aprende sempre, ainda hoje se aprende! Mas em termos de técnicas de composição em si, a verdade é que também aprendi muito com ele.
Ao longo da sua vida, quais foram as correntes que foi seguindo? Como é que se define?
Cá em Portugal, na altura, antes de ir para Viena, os compositores que se ouviam mais eram Prokofiev, Chostakovich…, porque não pagavam direitos! (Não havia relações com a União Soviética…) E Bartók também se conseguia ouvir com frequência. Schoenberg não se ouvia – encontrei o dodecafonismo ao ir para fora, quando o Schoenberg já o tinha largado! Não vou dizer que não conhecesse um disco ou outro, mas conhecer mesmo, não. Eram conhecidos também os franceses: Darius Milhaud, Poulenc… (Debussy e Ravel eram já de outro tempo…) Em relação ao Prokofiev e Chostakovich, foram grandes mestres! Conheci depois a 2.a Escola de Viena, o Alban Berg… E também Messiaen…
Sente que a sua obra se pode dividir em fases diferentes?
Eu acho que tenho seguido sempre a mesma linha.
E no que concerne às influências da música não erudita?
É evidente que há algumas coisas que se aprendem e há coisas na música mais popular que são óptimas – as quais eu não me importo nada de aproveitar. Por vezes entram elementos que parece que nada têm a ver com o resto. E até pode ser que não tenham nada a ver, mas todos os dias nos deparamos com situações que nada têm a ver umas com as outras. Há certos flashes!…
E eu gosto de introduzir esses flashes, de uma forma coerente e de uma forma que não seja “a martelo”. Eu gosto, por exemplo, de escrever uma coisa totalmente atonal e de repente estar numa coisa totalmente tonal e ninguém ter reparado! (risos) E quando reparam já estou outra vez noutra coisa! É quase poder seguir por uma linha dentro do mesmo estilo, e não estar sempre a tentar perceber se é tonal ou atonal… É preciso que seja o meu estilo.
O mundo do musical americano também o fascina?
A Sinfonia para um Homem Bom [Op.146] foi dedicada a um amigo meu que era um homem do jazz, mas mais ainda do musical americano: Luís Pio. Era amigo do Sviatoslav Richter, era amigo do Piazzola, e não era músico! Era amigo da Olga Prats, da Maria João Pires, era amigo de todos nós e todos nós nos deixávamos fascinar por ele. Ele morreu e eu escrevi essa sinfonia que tem permanentemente alusões ao musical. Não tenho nada contra! E esforço-me para manter uma linha de conduta, pelo menos formalmente. Não é uma “salgalhada” de ideias! Há substância. Há alusões quase que psicológicas. Mas a gravação é muito fraquinha, era uma orquestra de miúdos de Vila da Feira. Não se pode querer mais. Até é fantástico o que conseguiram fazer, é muito bom! O Concerto para Flauta foi também gravado por eles, com um flautista óptimo, o Paulo Barros.
Pode definir-se o seu estilo como ecléctico?
Podem ser vários estilos, desde que a obra tenha o meu estilo, que tem seguido sempre a mesma linha. E eu fico realmente satisfeito quando o consigo. Mas ainda há algumas coisas que eu quero descobrir! (risos)
E o que lhe falta?
Se eu soubesse, dizia-lhe! (risos) Sei que há qualquer coisa que eu ainda quero descobrir, que ainda me falta descobrir.
Tem sempre esse sentido de busca constante?
Claro, e depois há alguns períodos de repulsa pelo que se fez.
Mas eu acho que isso é saudável. A pessoa faz, apaixona-se pelo que está a fazer e depois diz “Isto é tudo uma grande merda!”… (risos)
Há muita gente a quem isso acontece antes de fazer a obra…
Bom, mas isso é terrível, é quase uma patologia… E quando se escreve uma obra de música deve-se depois ouvi-la (se possível). A escrever também acontece, antes de a obra estrear, eu ir lá cortar umas coisas… Mas no cinema, ainda agora com este filme, disse: “Deixa-me ver esta parte que está montada, ver para não gostar, para criticar!”… É a experiência que se vai ganhando. É preciso ver, também, que eu fiz desde muito cedo música para cinema e teatro. Para mim foi benéfico, porque me deu uma certa elasticidade. O meu espírito é completamente diferente quando escrevo uma sonata para piano, como a 2.a, muito marcada por Chostakovitch, a 3.a ou a 6.a, ou quando faço música para cinema. E isso ajudou-me a estar a fazer uma coisa hoje e, amanhã, fazer outra completamente diferente.
Essas obras complementam-se ou seria impossível conter todo o seu mundo num só estilo?
Isso seria demasiado. Posso ter várias atmosferas diferentes e várias estéticas diferentes… Agora meter todos os meus mundos num só mundo acaba por ser muito difícil. Ficaria uma argamassa…
Mas não se consegue definir numa corrente porque tem muitas correntes…
Não me consigo definir porque não tenho nenhuma!
Nunca se sentiu seduzido pelo dodecafonismo?
Aprendi algumas coisas mas nunca fui grande entusiasta, até porque sabia perfeitamente que o Schoenberg dizia: “Larga isso, o que havia a fazer está feito!”. E era, no fundo, a posição do Webern. Depois do Webern, foi apenas repetir. É evidente que houve uma evolução com o Boulez (muito mais drástico), mas acabou por ser de tal forma rebuscada que, quando digo que as pessoas em Portugal só ouvem música ligeira, há também que pensar nas suas razões… É que já não há paciência para ouvir a chamada “música de vanguarda”! Não há paciência, não há saúde! E não é vanguarda nenhuma: tem setenta, oitenta anos!
Estagnou no tempo?
Tem sempre as mesmas coisas, tem sempre os mesmos efeitos, sempre os mesmos “rodriguinhos”… Não há paciência para aturar aquelas coisas das “semanas da música contemporânea” na Gulbenkian. E cada vez há menos, porque as pessoas não vão!
Quando, na nossa época, se pensa que não há compositores vivos, tem-se realmente a ideia de que todos os compositores bons eram de “cabeleira empoada” ou, quando muito, o Chopin, ou o Liszt… E pensa-se que a nova música é o Quim Barreiros, a nova música é a dos Xutos e Pontapés… Ou a dos Beatles, ou o que quiserem. E, aí, há uma grave responsabilidade dessas correntes fanáticas de vanguarda.
Ou seja, os músicos acabam por ser responsáveis pelos problemas de que se queixam.
Ninguém os quer ouvir, de facto. Imagine um médico…Uma pessoa que chega a casa, cansada do trabalho, que se deita no sofá a ouvir uma peça de Stockhausen. Lamento muito, não acredito que essa pessoa não esteja mentalmente afectada! (risos) Aquilo não é bem feito? Claro que é bem feito, mas está completamente esgotado e, como aquilo não diz nada às pessoas, estas vão à procura daquilo que é a música. Realmente, eu lutei a vida inteira por salvar um conceito de música. Música! E não um conceito de experiência.
E como a define? Qual o conceito de música?
Em Viena, o professor Schiske dizia o que Schoenberg já lhe tinha dito: “substância, não ornamento!”. Ora, há-de reparar que essa música de vanguarda toda são só ornamentos! São giros, são óptimos, os efeitos! Mas deviam ser aplicados à música, à substância! Devia-se fazer música com base naquilo que eles realmente descobriram! E até se descobriram coisas interessantes, incluindo o minimalismo repetitivo. Até esse – o Steve Reich – descobriu coisas interessantes! Mas para serem aplicados em música! Eles não aplicaram música porque não eram tão bons músicos como isso… Eram mais investigadores. Não vou dizer que não foi muito importante esse movimento. O Xenakis, o Nono, também… Stockhausen também entra… Só não posso incluir o Messiaen nesse campo. Tal como o Ligeti, estão noutro patamar. Esses continuaram na música. Bem, o Boulez também, as sonatas estão na música… Todavia, compôs muito poucas coisas – e é muito hipócrita…
Boulez que, como Victorino d’Almeida, é também compositor e maestro…
Ele é um grande maestro!
Mas acaba por não compor tanto, comparado consigo…
Bom, a quantidade também conta alguma coisa mas não é um critério… Simplesmente o Boulez, se reparar, diz que aqueles netinhos todos que ele tem são todos geniais, mas não os grava nem osrege! (risos) Ele grava Stravinsky, ele grava Ravel, ele grava-se a ele próprio, ele grava Messiaen, ele grava Webern, mas não grava os netinhos! (risos) Todos os países do mundo têm três ou quatro compositores que são discípulos do Boulez…
Então, hoje em dia, que outros compositores considera como exemplares?
Houve uma boa surpresa quando apareceram os russos de que ninguém tinha ouvido falar: o Schnittke e a Gubaidulina. Mas já antes tinha havido um movimento de esperança com o Penderecki e o Lutoslawsky. Agora o Penderecki acho que fez um recuo muito grande… O que eu defendo é que não se deve voltar para trás, deve-se ir em frente!…
E a nova geração?
Em Portugal há gente muito boa! Há gente a compor e a entrar novamente nos carris da música e não nos dos efeitos, com coisas muito interessantes. Mas não queremos coisas interessantes, queremos coisas com substância! O [Nuno] Côrte-Real, o [Eurico] Carrapatoso… O Alexandre Delgado… Há toda uma série. Não quero sequer estar aqui a citar… Pode-se pensar que estou a preferir uns aos outros. São compositores que estão a ter um trabalho muito louvável… Eu que o diga: sei o que era aguentar sozinho o esforço de manter a música de substância em vez da do ornamento. E agora já são muitos mais os que o estão a fazer. E penso que, se os há em Portugal, há-de passar-se o mesmo pelo mundo inteiro, há-de haver um movimento da nova geração…
Nunca pensou ser professor de Composição?
Não, nunca me passou pela cabeça ser professor de Composição. Quer dizer, eu já fui professor de Composição. Tive já uma vez um aluno! (risos) Actualmente não compõe nada… Gosto muito de ensinar História da Música, mas não Composição.
Mas nunca foi convidado?
Não. Mas eu acho que devia ter sido, para ser professor de Orquestração. Isso eu acho que devia.
Talvez se deva ao facto de não estar inserido em nenhuma das correntes?
Isso é de certeza. Quem não tem partido político está lixado! (risos) Político ou qualquer partido. Quer dizer, não está completamente lixado, mas tem muito menos onde se agarrar.
Seguir um caminho próprio, não se apoiar nem nuns nem noutros, é uma opção de vida um bocadinho arriscada, mas é onde me sinto melhor.
Na busca do seu estilo mais pessoal, acaba eventualmente por conseguir os seus seguidores… Vai acontecendo?
Claro!… Sabe que há uma grande diferença entre aluno e discípulo. O discípulo é aquele que segue, é mais difícil. Por isso é que não me cativa muito o ensino da Composição. Agora Orquestração, sim! A Orquestração é uma coisa concreta, quase matemática. É onde me considero mais à vontade, é a orquestrar. De facto, sei orquestrar e é estúpido não ser professor.
E acha que se vêem bons orquestradores hoje em dia?Não havendo orquestras, as pessoas acabam por não compor. Mas o meu mundo sempre foi a orquestra, é onde me sinto bem. Não há nada que goste mais na vida do que estar com uma orquestra, ensaiar com uma orquestra, ouvir uma orquestra, escrever para orquestra e a própria atmosfera de uma orquestra. Eu devia ser director de uma orquestra. Não a reger! Devia ser director artístico, e não tenho dúvidas nenhumas a dizê-lo. Eu seria seguramente um grande director porque sei exactamente o que é uma orquestra e não vejo por aí mais ninguém que seja melhor nisso. É como se viu agora neste filme: estavam vinte e cinco pessoas a trabalhar comigo e, de facto, houve uma boa liderança. É o que se pretende: tirar o maior partido possível daquelas pessoas e saber que “vamos parar agora porque eles já não aguentam mais”. Isto não tem nada a ver com o vulgaríssimo que sou como compositor.
Fotografia: Sara Gameiro
Transcrição: Ana Atalaya, Duarte Pereira Martins, Filipe Martins e Philippe Marques
Texto publicado na Glosas n.º4, p. 26-41.
