A expressão “barroco” foi utilizada pela primeira vez de forma não pejorativa há pouco mais de um século para designar um conjunto de características morfológicas que teriam vigido num período determinado da história das artes visuais e da arquitetura e foi proposto, em 1915, pelo historiador da arte Heinrich Wölfflin (1864-1945) — Renascença e Barroco, 1888; Princípios de História da Arte, 1915 —, discípulo de Jacob Burckhardt — A Cultura do Renascimento na Itália, 1862. Em 1919, a expressão sensibilizou o historiador da música Curt Sachs (1881-1959), ligado principalmente à organologia, que a utilizou para se referir ao mesmo período na História da Música. A mesma delimitação cronológica adotou Hugo Riemann (1849-1919) que em 1911 o denominara “período do baixo cifrado” (General Bass Zeitalter), hoje tido como uma das características marcantes desse estilo.
Não há unanimidade entre os autores na conceituação e delimitação do barroco musical. Franceses e ingleses procuram discretamente descartar-se até de admitir a existência de tal período, talvez porque a música desses países não tenha cultivado assiduamente esse estilo. A Itália preservou, inexplicavelmente, durante algum tempo, certo sentido pejorativo na expressão, o que proviria, talvez, da própria definição que Jacob Burckhardt dá do barroco como o “dialeto corrupto do Renascimento”. Para Combarieu (Histoire de la Musique, 1914), a primeira metade do século XVIII compreenderia, ainda, a vigência estilística do Renascimento. E assim os franceses também se inserem naquela corrente de prudência relativamente ao barroco. O meu próprio mestre no Instituto de Musicologia de Paris, Jacques Chailley, rejeitava o termo, alegando que não correspondia a nenhuma realidade…
Manfred Bukofzer (1910-1955) — Music in the Baroque Era, 1947 — foi o primeiro musicólogo a tornar o termo corrente em idioma inglês e sobretudo o primeiro a encarar com lucidez o problema. De fato, tanto em Alegoria na Música Barroca (1939-40) como em Música na Era Barroca (Nova Iorque, Norton, 1947), Bukofzer utiliza os termos “renascimento” e “barroco” de forma pragmática para estabelecer uma periodização indispensável ao melhor entendimento das estruturas e diferenças entre ambas as unidades histórico-estilísticas num momento crucial da historiografia musical sobre o barroco. E o faz não sem advertir sobre os perigos de se transpor literalmente para a História da Música termos desenvolvidos pela História da Arte. Claude Pallisca (“Barroco”, em Grove, 1980) observa que, já antes de Bukofzer, Robert Haas (1886-1960) — A Música do Barroco, 1928 — destacara a importância dos cinco princípios de Wölfflin na definição do barroco: 1. do linear ao pictórico; 2. da superfície à profundidade; 3. da forma fechada e forma aberta; 4. da multiplicidade à unidade; 5. da clareza absoluta à clareza relativa. São cinco fases de um mesmo fenômeno, ressaltando, porém, que nem tudo podia ser aplicado corretamente à música, como propunha Sachs em 1919. Bukofzer sustentava, em 1947, que a demonstração sobre a música barroca se desenvolver ou não paralelamente às demais artes deve ser feita não com abstrações comparativas e genéricas e sim com análises técnicas; e que no período chamado barroco predominaria um “espírito do tempo” que também é outra abstração, complicada por conflitos internos e sobrevivências e antecipações de outros períodos. Concluía, porém, indiscutivelmente, que as tendências da música barroca correspondem às da arte e da literatura.
A contribuição de Bukofzer não se resume apenas ao esforço de periodização que, grosso modo, os autores concordam em delimitar entre 1600 e 1750 ou 1775. Sua grande contribuição consiste na definição das características morfológicas do barroco musical. Mas quando falamos em barroco musical no período colonial brasileiro (válido para todos os países hispano-americanos) a confusão se estabelece entre o barroco e o chamado classicismo — onde o barroco abrangeria uma fase em que, na Europa, já predomina o classicismo.
Tudo resulta, exclusivamente, da sobrevivência, entre nós, latino-americanos, do respaldo religioso das práticas musicais. Se algumas definições não forem convencionadas, haverá sempre grande dificuldade para o ordenamento provisório da questão. E mais do que isso:
O discurso musical barroco é fundamentado inteiramente na varietas permanente oferecida pela harmonia sequencial, pela continuidade modulatória. O classicismo, por sua vez, se estrutura na articulação frasística relegando o processo modulatório a segundo plano. Outros parâmetros introduzem-se no discurso para garantir o princípio da varietas que não é, portanto, apanágio exclusivo do barroco, mas do discurso musical como um todo histórico.
É procedimento normal do classicismo o estancar o discurso numa determinada seção que ele quer mais dramática. Compartimenta, assim, os procedimentos modulatórios que instabilizam a seção, concentra a varietas do pathos e estrutura o grande segmento ou andamento, sempre de uma forma ternária que por si só já constitui uma macro-forma sintática e dramática concentrada na sucessão tranquilo-agitado-tranquilo; ela própria constituindo uma macro-forma que expressa a pulsão que é uma sequência de relaxamento-tensão-relaxamento. Ora, ao abandonar os princípios da prática da harmonia sequencial o compositor clássico busca novas possibilidades de expressão do pathos textual litúrgico no caso da música religiosa.
No princípio do século XVII, período de transição entre o Renascimento e o Barroco, consagraram-se as expressões prima e seconda pratica, vinculadas a dois estilos, antigo e moderno (gravis e luxurians) embutidos na equação sociológica musica ecclesiastica, cubicularis e theatralis (ou seja: categorias sociais: música religiosa, de câmara e de teatro). A diferença fundamental entre a primeira e a segunda prática residia nas relações entre texto e música (ou seja: na primeira, harmonia como mestra da palavra; na segunda, palavra como mestra da harmonia).
Na transição entre o Barroco e o Classicismo, no início do último quartel do século XVIII praticou-se, também, uma espécie de primeira e segunda prática: o estilo da música religiosa, contraposto ao da música de teatro e de concerto. Haydn e Mozart ainda obedecem a essa dicotomia; Beethoven a supera com as duas missas em dó, Op. 86, e em ré, Op. 123, no momento exato, como lembra Charles Rosen, em que, por ironia, ressurge o interesse pelo barroco. Mas aqui, a diferença entre prima e seconda pratica não residia mais entre texto e música e sim na sobrevivência de características barrocas na arte religiosa, que foi o derradeiro bastião das práticas barrocas num período em que o classicismo já se desenvolvia plenamente na obra de Joseph Haydn, a partir, especialmente, de 1775.
Em certo sentido, a preservação dessas práticas barrocas na música religiosa resultaria da utilização dos recursos vocais e do órgão, mas também, e sobretudo, dos fatores de inércia estilística, evidentemente muito mais sólidos e monolíticos na música de igreja do que na música de concerto ou de teatro, onde a experimentação e a dramatização, em vez de escândalo, gerariam aplausos. Veja-se que a Missa em dó, Op. 86, de Beethoven, data de 1807. São trinta e dois anos desde 1775. Trata-se do período de projeção total do estilo clássico vienense, da composição de todo Mozart, da quase totalidade de Haydn, e do Beethoven da 6.ª Sinfonia, dos quartetos Op. 59, e do Concerto n.º 5, o “Imperador”, para piano e orquestra. Já estão nascendo então as primeiras gerações de compositores românticos. Entretanto não podemos afirmar que nesse período de cerca de trinta anos a música religiosa da Europa ocidental tenha permanecido integralmente barroca na própria obra de Haydn e Mozart, os dois gigantes do classicismo vienense. O que parece ter ocorrido no período foi, antes de tudo, uma inadequação, um envelhecimento dos conceitos barrocos de dramatização que, partindo do palco lírico, impregna a música de concerto e, com maior retardo, a música de igreja. Mas é no bojo da própria música barroca que surgem as tentativas de incremento da dramatização que vão conduzir a música ao abandono dos fatores incompatíveis com esse incremento. A música barroca se transforma gradualmente para assumir novas configurações até que se identifiquem como clássicas.
Essa expressão dramática no Barroco é praticamente estática, permanente, emocionalmente contínua, não sintática. Ela se evidencia no detalhe, apenas: na configuração isolada de uma linha melódica, na textura harmônica ou rítmica sempre homogênea, sempre igual a si mesma, nos ornamentos excessivos, na expressão isolada de um acorde mais pungente. Rosen, no seu livro, fala de uma arte estática da situação e do sentimento dramático. É claro, o barroco desenvolve um esforço intensivo para catalogar os sentimentos, os estados de alma, e, ingenuamente, até, identifica, com Matheson (1739), a ilusão de dicionarizar estados de alma, até mesmo acordes, e configurações rítmicas, melódicas e harmônicas. A dramatização não podia deixar de permanecer isolada. O esforço, no decorrer de todo o século XVIII, é no sentido da liberação gradual dos aglomerados significativos presos a uma dicionarização até ingênua e simplista para permitir uma estruturação sintática de longa duração, impregnando de caráter dramático toda a estrutura do segmento, movimento ou obra. Ora, a música religiosa é inserida fundamentalmente em momentos litúrgicos que obstaculizam ritualisticamente a descontinuidade emocional. Poderíamos dizer, assim, que o ponto culminante atingido liturgicamente pelo desenvolvimento musical não foi a polifonia palestriniana e sim o barroco tardio, porque só este encontrou os instrumentos próprios e pôde identificar-se idealmente com as situações litúrgicas semanticamente definidas e licitamente manipuladas na sacralização do comportamento pio. É projeto musical barroco a expressio verborum, que visa à representação musical da palavra e que conduz o estilo a situações de extrema ingenuidade e até de ineficácia auditiva quando essa expressão é de efeito meramente visual, na partitura. A música religiosa não podia deixar de ser o derradeiro bastião do barroco. Não por resistências de natureza eclesiástico-administrativa, mas puramente musical, de viabilização de linguagem.
Texto publicado na Glosas n.º 15, p. 51-53.
Imagem: Ouro Preto, Pedro Vilela/MTur
