Dias da Música em Belém 2018

Infernos e castigos, pecados e tentações terrenas, graças divinas e a reconquista do paraíso deram o mote para a última edição dos Dias da Música, tendo o universo de Hieronymus Bosch (ca. 1450-1516) como pano de fundo. Da Idade Média à actualidade, a programação do festival procurava reflectir o ambiente de algumas das obras de Bosch, como o conhecido tríptico Tentações de Santo Antão (que faz parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga), e da época em que o pintor viveu. O resultado foi uma série de concertos bastante sugestivos e que agradaram, quer pelo repertório variado que pude escutar, quer pelos seus intérpretes.

Um dos programas que mais me agradaram foi o reencontro com o Auto da Barca do Inferno, numa concepção de Sara Barros Leitão e com música de Fernando Lapa (a quem foi igualmente encomendada a música para o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória, apresentados nos dois dias seguintes). Esta leitura do Auto da Barca do Inferno conseguiu fundir sem esforço o texto de Gil Vicente e a música de Lapa, marcada por uma grande vivacidade. Para o êxito do espectáculo contribuíram também a encenação simples de Sara Leitão e o à-vontade dos intérpretes nos seus duplos papéis de músicos e personagens – tanto os dois actores, Sara Leitão e João Castro, como os elementos do Toy Ensemble (pianista, violinista, violoncelista, clarinetista e percussionista). O cenário estava reduzido aos adereços que identificam o rol de personagens que vão tentando a sua sorte em trocar a barca que segue para o Inferno, e que lhes está destinada, pela que vai para o Paraíso (sem qualquer sucesso, como se pode adivinhar). Os diferentes papéis eram trocados entre os dois actores, detentores de uma energia contagiante, e passavam também pelos músicos. De lamentar apenas que alguns diálogos mais apressados tenham sido difíceis de acompanhar e que a sala não estivesse mais cheia.

©CCB/Marisa Lourenço

A figura do Diabo continuou à solta no dia seguinte, primeiro no concerto de António Carrilho e, depois, no recital de piano de Artur Pizarro, ambos músicos dotados de um virtuosismo diabólico (passe o pleonasmo). O concerto do agrupamento La Paix du Parnasse, com direcção musical de António Carrilho, encheu o auditório de um espírito galante e intempestivo em peças de muita exigência técnica de W. F. Bach, Gluck, Boccherini e Haydn, marcadas por passagens de velocidade, muito cromatismo e dissonâncias. Carrilho e o agrupamento destacaram-se em particular nos brilhantes e fascinantes Concerto para flauta transversal (na versão para flauta de bisel) em Mi menor de Giovanni Battista Ferrandini e na Sonata para violino, em Sol menor, Il trillo del Diavolo, de Giuseppe Tartini, transcrita para flauta de bisel. Com bravura, Carrilho conseguiu arrancar silvos verdadeiramente infernais da flauta no final da sonata de Tartini.

No concerto seguinte, Artur Pizarro apresentou um programa igualmente agitado de sentimentos: Dois episódios do Fausto, de Lenau, de Liszt, e a Sinfonia Fantástica, de Berlioz, numa versão para piano solo escrita também por Liszt. A transcrição da Sinfonia Fantástica é um exercício de fôlego. Embora tenha apreciado escutar assim a obra, e apesar das faculdades orquestrais do piano e da interpretação de Pizarro (ataques certeiros, variações de dinâmica, silêncios enfatizados), senti alguma falta dos timbres da orquestra que contribuem muito para a narrativa desta sinfonia. O carácter expressivo e de concentração de Pizarro esteve presente na execução das duas obras.

©CCB/Marisa Lourenço

Num ambiente mais tranquilo decorreu o concerto do Orlando Consort, que se dedicou com conhecimento à interpretação de peças de um conjunto de compositores contemporâneos de Bosch e que trabalharam em s’Hertogenbosch, cidade holandesa onde o pintor habitou grande parte da sua vida. O programa misturava canções de temas sacros e canções de temas amorosos e cómicos, procurando demonstrar um pouco do tipo de música que era escrita e ouvida no tempo de Bosch e na Europa central nos séculos XV e XVI. Interpretaram peças de Pierre de la Rue, Thomas Crecquillon, Heinrich Isaac, Johannes Ockeghem, Josquin des Prez e Matthaeus Pipelare. As vozes dos membros do Orlando Consort fundem-se, sem que, no entanto, se deixe de perceber a identidade tímbrica de cada uma e as linhas melódicas que constroem a harmonia das canções. Infelizmente, não consegui obter o programa de sala, pelo que não pude acompanhar melhor os textos das canções.

O concerto pelo grupo laReverdie transportou os ouvintes para um tempo ainda mais recuado, apresentando um conjunto de peças de autores dos séculos XIII e XIV, a maioria dos quais anónimos, numa representação alegórica dos sete pecados mortais e da entrada no Paraíso. Concerto sedutor, tanto pelo repertório executado, muito expressivo, como pela interpretação, que demonstrou boa união e compreensão dos textos por parte dos músicos, e pela utilização de instrumentos próprios da época, como a sanfona, a viela e o corneto. Saliento a execução do hino gregoriano Dies Irae, de Tommaso da Celano (c. 1185-1265), que atravessou gerações e foi usada por diversos compositores, encontrando-se, entre outros exemplos, no andamento final da Sinfonia Fantástica, de Berlioz.

O último dia dos Dias da Música completou-se com a escuta do Requiem, de Fauré. O Coro Ricercare e o agrupamento Melleo Harmonia, com direcção de Joaquim Ribeiro, interpretaram o Requiem com emoção e, no geral, equilíbrio, desejando-se apenas mais subtileza ao violino no Sanctus. Dora Rodrigues tem voz madura e bem projectada, mas para este papel preferia-a mais fresca; por seu lado, o barítono André Baleiro exibiu uma voz bem colocada, maleável e profunda.

©CCB/Marisa Lourenço

Como em anos anteriores, também nesta edição dos Dias da Música se registaram algumas mudanças. Algumas são positivas, como a abolição do limite imposto à duração dos concertos (habitualmente fixado em 50 minutos), que concede maior liberdade aos intérpretes na construção dos programas e permite a apresentação de obras mais longas, e também a programação de mais obras anteriores ao período romântico. Outras são negativas, como a constante subida dos preços dos bilhetes, que naturalmente provoca o afastamento de público – nos dias do festival apenas o recital de Artur Pizarro estava anunciado como esgotado. E outras ainda levantam algumas dúvidas quanto ao futuro dos Dias da Música, como a acentuada descida do número de concertos programados. Algumas destas situações podem ter sido circunstanciais, pelo que, como sempre, será preciso aguardar pela próxima edição para saber o que virá a acontecer.

Sobre o autor

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Mariana Calado encontra-se a realizar o Doutoramento em Ciências Musicais Históricas focando o projecto de investigação no estudo de aspectos dos discursos e das sociabilidades que caracterizam a crítica musical da imprensa periódica de Lisboa entre os finais da I República e o estabelecimento do Estado Novo (1919-1945). Terminou o Mestrado em Musicologia na FCSH/NOVA em 2011 com a apresentação da dissertação "Francine Benoît e a cultura musical em Portugal: estudo das críticas e crónicas publicadas entre 1920's e 1950". É membro do SociMus – Grupo de Estudos Avançados em Sociologia da Música, NEGEM – Núcleo de Estudos em Género e Música e do NEMI – Núcleo de Estudos em Música na Imprensa, do CESEM. É bolseira de Doutoramento da FCT.