Ao sabor das cordas e do vento: poético, religioso, sensual, com expressão, com ironia, com humor, enérgico, melodioso, granítico, livre. A propósito de uma das minhas obras mais recentes, para violino, violoncelo, guitarra e piano, a ser brevemente estreada pelo Performa Ensemble.

Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão…”*

A esses trabalhadores das pedras, dos campos e dos mares,

A esses trabalhadores de templos e de montanhas,

A esses escultores da pedra “tosca, bruta, dura, informe”,

A esses cinzeladores dos cantos de granito, da viola e do bandolim,

A esses cantadores de ado, dedilhadores de cordas e de vozes inesquecíveis,

A esses antepassados de sangue, artistas de outros mundos,

Aqui ficam, para eles e para elas, estas páginas do outro mundo…*

de O estatuário do Padre António Vieira

Em lugares de fragas e de casas de granito de que guardo memórias indeléveis, nasceram e viveram meus pais, avós, tios e tias. Alguns, imigrantes e emigrantes dos anos 40 e 50 e décadas seguintes, em Lisboa, em França e mais tarde na Argentina, traziam do Parque Mayer e do cinema português os fados clássicos da Severa, de Alfredo Marceneiro, da Amália Rodrigues, de Carlos Ramos, de Júlia Barroso.

Das músicas que ouvia na infância e juventude, e que invadiam os meus dias, a memória guarda as cantorias dos campos e dos montes, das estradas (coros nocturnos das mulheres da seca do bacalhau), das desfolhadas, dos marcadores do tempo no trabalho da pedra, das músicas litúrgicas (com órgão de tubos!), das músicas dos ranchos e dos zés-pereiras, das canções de roda, das música clássicas em aparelhos de rádio das tabernas, das músicas latino-americanas em jazz band, de uma grafonola, em dezenas de discos trazidos de França por um desses tios emigrantes. Memórias ao mesmo tempo de privações e de encantamento em tempos de guerra…

Fazem parte dessas memórias as reuniões de família, os fados clássicos cantados e tocados por esses trabalhadores das fragas, canteiros de Santa Luzia e de terras minhotas, mistura de um mundo proletário e rural, pobre e luminoso. Bandolins misturavam-se com vozes e violões de tios e primos fadistas da aldeia. Canções da segunda Grande Guerra em literatura de cordel faziam as minhas delícias sem consciência da tragédia colectiva.

A um vizinho que emigraria em breve para o Brasil, eu, com a idade de onze anos, pedi-lhe, apontando sem medo, pousado num banco da mercearia: “D-me aquele violão!” – “Talvez!… Depois… Quando for!”… Regressou passadas décadas e o violão sobreviveu à ausência (dizem…).

Aprendi nesse meio a tocar bandolim (“banjelim”, assim se dizia, o que também sobrevive ainda!), ensinado pelos “virtuoses” da família: um primo e uma prima, bem mais velhos do que eu. Na pequena casa de meus pais, onde, num milagre de sociedade matriarcal, chegaram a viver doze pessoas – entre irmãos, pais e avós paternos – estudava o meu banjelim em corridinhos e músicas de repertório das “olds band” da terra: as tunas. Cantava às vezes, e um fiozinho de voz soa-me na memória ainda hoje; e ouvia, deliciado, debaixo de uma vinha, as fábulas de Esopo e de La Fontaine contadas por uma exímia contadora de histórias: a minha avó de outras fragas, dos montes longínquos e vizinhos da minha aldeia. Neste ambiente anónimo e inóspito, ao lado de um tear, andou por ali um violino, um banjo, um violão e, mais tarde, já na “idade da razão”, o meu piano velhinho (como cantaria o fado da Mouraria…), comprado por subscrição familiar a velhas senhoras da aldeia, e que me havia de acompanhar em África nos tempos de guerra colonial.

Em todas estas manifestações e expressões musicais, mulheres e homens da família, tocadores e tocadoras, cantadores, cantadeiras e cantoras (de igreja), pais, tios, tias, irmãos, irmãs, primos e primas, desempenharam um papel social, individual e colectivo de cultura popular, memorável e indescritível.

Logo que recebi convite para escrever uma obra cuja temática era o fado, com a liberdade para qualquer interpretação que dele o compositor quisesse fazer, foi meu propósito trazer à memória, como homenagem, esses familiares (todos no reino dos deuses!) que me prodigalizaram na minha infância e juventude momentos de profunda emoção e fascínio musical.

Evocações semelhantes, da família, já existem noutras obras: Momentos-Memórias I e II (guitarra portuguesa e guitarra clássica), Cori Memori, Monda-coro para 8 instrumentos, Mare-a-Mare, ETHNON, Cantorião, Le chanteur du Val, Músicas de Villaiana, antepassados directos de Cantos das Fragas, dos seus simbolismos musicais e laços de sangue.

Figuras lendárias, estes fadistas de família, são as suas vozes e os seus instrumentos que eu quis evocar, de forma directa e simulada, cruzando vivências de memórias e de afectos, actualizando ormas e gramáticas, entrecruzando idiomatismos instrumentais e de escrita, com o irrigar invisível de bandolins e violões na alma dos instrumentos…

Conciliar uma cultura tradicional com a cultura contemporânea sem as desfigurar, elevando-as a um outro nível de arte, foi um atravessar de fragas ao compor esta obra. Mais ainda quando a expressão popular assenta numa estrutura gramatical elementar, em conflito com a complexidade e ineditismo das sonoridades da contemporaneidade erudita, de hoje ou de outros tempos.

A pulsação no seu estado puro, o diatonismo primordial, o vocabulário básico e algumas constantes estilísticas do fado coexistem, absorvidas, nesta partitura, por outras estruturas de tempo e de alturas, entre outras fórmulas oriundas das mesmas fontes linguísticas e culturais. As músicas e as culturas de onde terá tido origem, como expressão musical, o fado tradicional, foram assim o apoio para a abordagem deste projecto insólito e provocador. O resultado deste processo de fusão de diversas fontes é uma espécie de palimpsesto (pergaminho sobre cujos escritos os antigos escreviam novos textos).

Também a afinação das cordas do bandolim, do violão, das guitarras portuguesas e da guitarra clássica (viola dedilhada), foram o alicerce de alturas e de intervalos sobre os quais se estruturam estas páginas. A ornamentação, o continuum dos intervalos, o salmodiar da música árabe, o cantar das Beiras, entre outras fontes, configuram este “fado contemporâneo”, recriado com roupagens mais sosticadas, sublimando-se nas fórmulas dos filósofos, na “coincidência dos opostos” e nos arquétipos como resposta última.

Expressão musical rejuvenescida por músicos, poetas, cantores e cantoras de novas gerações, o fado contém, nesta música, além de reminiscências das cantigas de escárnio e de mal-dizer e das cantigas de amigo, melodias de amor, de humor e de ironia, num mundo novo imaginado, regenerado, libertado e aberto a outros sentidos – da “moira” grega (destino) ao fado lisboeta e coimbrão (balada coimbrã…), ou ao lado de outras terras…

O desafio a volta desta espécie de fado assumido pelo compositor consistiu em balouçar-se entre presença e ausência, identidade e transgressão, submissão e desfiguração, ambiguidade e incompatibilidade em jogos de sorriso e humor, ironia e diálogo, revisitação e transfiguração. A expectativa de achados num jogo de conflito de alma e de atritos de coração, numa manipulação de heterodoxias, hibridismos, eufemismos, idiomatismos e até de guralismos, entre antagonismos de sangue e de arte, entre simplicidade de ritmos, de harmonias e de melodias artísticas face a um universo por natureza marcado pela sosticação do gesto criativo, pela busca do desconhecido, pela procura da alma individual – essência daquilo a que se chama arte contemporânea –, esses conflitos interiores, dúvidas e incertezas, estéticos e culturais, conduziram a caminhos abertos e a respostas sem dúvida insólitas.

Fazer ouvir no violino o bandolim, no piano as guitarras, no violoncelo e no piano o violão foi uma aventura; explorar as estruturas originais de afinação das cordas dos próprios instrumentos foi outro risco; olhar diferentemente o instrumento, a melodia, o ritmo, a harmonia, as formas melismáticas antigas e intemporais de diversas culturas, alargar processos, técnicas e vocabulários, num diálogo entre o lúdico e o lírico, o insólito e o reconhecível, o sentimental e o cerebral, a profanação e a sacralização – eis a viagem fascinante pelas memórias do meu fado. Deste calcorrear sinuoso de caminhos de fragas, íngremes e tortuosos, nasceu esta espécie de fado imaginário sob forma de minúsculos interlúdios e minúsculas variações.

Da ideia original para a obra, Cantos das Fragas (“cantos” no sentido de cantar e no sentido dos cantos da pedra cinzelados no granito pelos homens ou pela natureza), podiam dar-se os títulos Fado dos Canteiros, Fado da Cantaria (parafraseando fados da Mouraria…), Fado Leandrino (de Leandro, tio, émulo de Marceneiro) ou Fados de Guerra, Balada Coimbrã, Trovas do Minho

As vozes cantadas por bandolins, guitarras portuguesas e violões das fragas das minhas origens são o legado de gerações e gerações, o arquétipo e a essência, em música, talvez, para além do fado, da terra portuguesa.

Fotografia: Rimas e Batidas

Publicado na Glosas nº10, p. 34-35.



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