Quem conheceu José Guerra Vicente nunca mais esqueceu sua figura delicada e sua personalidade marcante. Apesar de ter chegado ao Brasil com apenas onze anos de idade, sempre manteve um leve sotaque português. Mas seu espírito era brasileiro e sua alma a de um verdadeiro artista. Verdadeiro porque a música, para ele, era uma atividade essencial, antes de ser uma simples obrigação profissional.
Ricardo Tacuchian
José Guerra Vicente nasceu em 12 de março de 1906, na localidade de Almofala, situada no Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, Província da Beira Alta, Portugal. Em 1939, naturalizou-se brasileiro.
Pressionado pela grave situação econômica por que passava Portugal, no início do séc. XX, seu pai, Arnaldo, emigrou para a cidade do Rio de Janeiro à procura de novas possibilidades de trabalho.
Arnaldo, que era excelente alfaiate, logo prosperou e teve condições de, em 1917, trazer a esposa Margarida e os três filhos para morar na cidade.
José, o mais velho dos irmãos, aprendeu o ofício e ajudava o pai no movimento da alfaiataria, instalada numa das vias mais movimentadas do centro do Rio de Janeiro. Atravessando a rua, quase em frente à loja, existia uma espécie de clube frequentado por imigrantes portugueses, que recebia, à época, a denominação de “tuna”. Ali, reuniam-se para fazer música, por entre outras atividades de cunho social. Na “tuna”, José teve o seu primeiro contato com o violoncelo. Cativado pela sonoridade desse instrumento, teve despertada, de forma contundente, a sua vocação para a música. Imediatamente fez amizade com um violoncelista de nome Gabriel Loureiro, que lhe ensinou os primeiros rudimentos da técnica violoncelística.
Através de Gabriel conseguiu, emprestado, um violoncelo, que passou a levar para a alfaiataria, sem que ninguém ali soubesse da sua existência. Tinha medo de que o pai fosse proibi-lo de estudar música. Ficava, então, sob a justificativa de fechar a loja, até mais tarde, estudando junto ao balcão de atendimento. Era impossível, no entanto, manter essa situação por muito tempo. Logo que o pai soube dos pendores do filho para a música, ficou decepcionado, pois que naquela época essa atividade ainda nem era reconhecida oficialmente como profissão. Assim, tudo que acontecia de errado na alfaiataria era culpa do violoncelo. José, no entanto, era um obstinado e já havia decidido que rumo tomaria na vida.
Do alto do morro da Conceição, onde morava a família Guerra Vicente, José avistava o prédio do Theatro Municipal e, embora ainda estivesse engatinhando na técnica do violoncelo, já sonhava em algum dia vir a fazer parte da sua orquestra. Esse sonho seria concretizado em 1934, quando foram criados os Corpos Estáveis da referida casa de espetáculos, e José Guerra Vicente, através de concurso, passou a integrar a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, posto que ocupou durante vinte e cinco anos, até à sua aposentadoria.
Embora desde o começo dos seus estudos musicais tenha demonstrado vivo interesse pela composição, José Guerra Vicente, premido por necessidades mais urgentes de sobrevivência, permaneceu, durante algum tempo, restrito à atividade de violoncelista de orquestra e de pequenos conjuntos musicais. Somente em 1932, aos vinte e seis anos de idade, começaria a revelar de modo mais efetivo o seu grande talento de compositor, através da bela Elegia para violoncelo e piano, dedicada à memória do pai. Essa primeira fase composicional, que se prolongaria até à década de 1950, pode ser considerada “pós-romântica”. Dessa época, destaca-se a criação da Sonata para violoncelo e piano (1940). É obra de grande envergadura e de suma importância dentro do repertório brasileiro para o violoncelo. Sua primeira audição esteve a cargo do grande violoncelista Aldo Parisot. São ainda dessa fase a primeira sinfonia, “Ressurreição”, escrita entre 1942 e 1944, e a segunda sinfonia, “Israel”, em 1952, para cordas e timbales, composta sob encomenda da Sociedade Cultural Hebraica do Rio de Janeiro.
A década de 1950 foi de atividade intensa. Os ensaios da Orquestra do Theatro Municipal transcorriam pela manhã e à tarde. As longas temporadas de balé e ópera também eram exaustivas. Havia as aulas de harmonia, que José ministrava com sucesso no Conservatório do Distrito Federal (mais tarde EPEMA e Instituto Villa-Lobos)…
No entanto, imbuído de férrea vontade de compor, José Guerra Vicente não perdia um só minuto livre. Enquanto os colegas da orquestra descansavam tomando o indefectível cafezinho, ele escrevia algum tema novo. Mesmo quando levava o filho Antonio, cedinho, para o colégio, dava um jeito de escrever em algum pedaço de papel disponível. Muitas vezes, no verso das contas de água e de luz, que levava para pagar. Uma febre.
Ainda na década de 1950, a família Guerra Vicente morou, durante três anos, em Rocha Miranda, subúrbio do Rio, próximo de Madureira. Ali, o compositor teve contato com os famosos “serviços de alto-falantes”, que divulgavam notícias e avisos para a comunidade adjacente, mesclados por anúncios de uma infindável lista de patrocinadores. Nos intervalos tocavam músicas do agrado popular. Uma das mais executadas era o baião Delicado, dos mais famosos na época. Nos finais de semana, o que predominava eram os ensaios noturnos da escola de samba “Unidos de Rocha Miranda”, com sua ruidosa e frenética bateria, preparando-se para o carnaval.
O carnaval em Rocha Miranda era forte. O seu coreto, erguido na Praça 8 de maio, concorria em tamanho e beleza com os seus similares de Madureira e Cascadura. À sua volta circulavam os blocos carnavalescos, entoando “marchinhas”, tão em voga na época.
Todas essas experiências se misturaram num verdadeiro cadinho cultural e influenciaram diretamente a criação musical de José Guerra Vicente, levando-o à sua segunda fase composicional, que vai de 1960 a 1971. É a denominada “fase nacionalista”. Já aposentado da orquestra do Theatro Municipal e livre de outros afazeres cotidianos, o compositor passou a ter mais tempo e tranquilidade para escrever. A fase nacionalista encontra um compositor maduro e seguro de suas convicções musicais. É, também, a mais profícua.
Em 1960, José Guerra Vicente concorreu ao “Prêmio Brasília”, instituído pelo MEC (Ministério da Educação e Cultura) a fim de criar uma “Sinfonia Brasília” em homenagem à fundação da nova capital do país. Sua obra foi uma das escolhidas. Foi estreada em 13 de novembro de 1963, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, executada pela Orquestra Sinfônica Nacional, sob a regência do maestro Mário Tavares. Foi aplaudida de pé. Sobre a criação dessa que é a sua principal composição sinfônica, o próprio autor escreveu: “A elaboração foi salpicada de episódios curiosos. Por exemplo: dado o pouco tempo de que dispunha, pois estava me preparando para um concurso na Escola, trabalhava de manhã na Sinfonia e de tarde para o concurso. De vez em quando ia a São Paulo (dormia de noite na condução) levar ao copista mais um movimento que havia terminado. Como a cópia do 4.o movimento estivesse muito atrasada em relação à data de entrega no Ministério, tive de incomodar alguns amigos lá mesmo, em São Paulo, para me ajudarem a terminar a cópia. À última hora um dos copistas não apareceu e perdi o primeiro horário do avião, vindo no segundo. Resultado: a partitura foi entregue na Praça da República quinze minutos antes da repartição encerrar o expediente.”.
No biênio 1963-1964, participou do Movimento Musical Renovador, integrado por jovens compositores brasileiros que visavam a criação de uma estética menos conservadora na composição musical do país. São dessa época a Toccata, para piano solo; Cenas cariocas, para violoncelo e piano; Cenas cariocas – 2.a suíte, para clarinete e piano; Concerto, para trompete e orquestra; o Trio de cordas e o Quarteto de cordas.
Foi, também, membro da Sociedade Internacional de Música Contemporânea (fundador da Seção Brasil).
Em 1964-65, escreveu o Carnaval carioca, uma suíte sinfônica em três quadros. Segundo o próprio autor, “trata-se de um carnaval elaborado, não no sentido prosaico da palavra, mas sim como uma festa de sonho, na qual a realidade aparece apenas subjetivamente”.
Em 1968, ganhou o Concurso Nacional Francisco Braga, promovido pelo Conselho Regional da Guanabara da Ordem dos Músicos do Brasil, com a obra Abertura Sinfônica.
A terceira e última fase composicional de José Guerra Vicente inicia-se em 1971. O próprio autor chamou-a de “livre, mas com brasilidade”. É um período fértil, porém curto, interrompido por sua morte em 1976. São dessa época as Quatro peças e a Toccata ponteada, para violão solo; a Sonata, para violino e piano e as Quatro peças para piano solo.
Já havia algum tempo, o compositor morava em Santa Tereza, bairro bucólico do Rio de Janeiro, próximo da floresta da Tijuca. Os pássaros, em grande quantidade, cantavam sem cessar, aguçando os ouvidos do compositor, que passou a grafar as melodias de vários deles. Como consequência dessa pesquisa, José Guerra Vicente compôs, em 1973, o Improviso, para flauta ou oboé ou clarinete solo. No frontispício escreveu: (…o pássaro, como todos os seres, nasce, vive e morre…).
José Guerra Vicente foi casado com Giselda Baptista Guerra, nascida Giselda Nicéa Baptista. Ainda estudante e colega de Giselda, na Escola Nacional de Música, dedicou-lhe, em 3 de março de 1936, o seu Noturno, para violino e piano: “À Senhorita Giselda Nicéa Baptista, talentosa violinista e ilustre colega, dedico meu Noturno, como prova de amizade e afeto”. Casaram-se três anos depois, em 3 de fevereiro de 1939. Mais tarde, Giselda formou-se também em canto, e o marido dedicou-lhe todas as peças que compôs para canto e piano. Giselda Guerra fez a estreia mundial de todas elas.
José e Giselda tiveram dois filhos: João Arnaldo, nascido em 1939 e Antonio de Padua, em 1942. Ainda bem pequenos foram colocados em contato com a música, através de frequentes seções de ditado e solfejo, que a mãe lhes proporcionava, ao lado das aulas de piano. João Arnaldo, embora mais tarde tenha seguido carreira técnica, como engenheiro eletrônico, tinha grande sensibilidade musical e gostava de improvisar ao piano. Sua preferência era pelo Jazz. Em determinado momento encantou-se pelo tema de Lullaby of birdland, do compositor norte‐americano George Shearing. João chegava em casa e logo colocava-se a improvisar, durante horas, sobre esse tema. José Guerra Vicente, que compunha na sala ao lado, acabou escrevendo a obra Introdução e fuga utilizando esse tema jazzístico. Dedicou-a ao filho João Arnaldo, em 1959. Mais tarde fez uma versão para orquestra de cordas. João Arnaldo faleceu no início da década de 1990, vitimado por grave acidente de trabalho.
O filho Antonio de Padua tornou-se violoncelista profissional, tendo tocado como solista e camerista em mais de trinta países pelo mundo. Atualmente é professor aposentado da Universidade de Brasília. José Guerra Vicente dedicou-lhe o Concerto, para violoncelo e orquestra.
Quatro são os netos de José Guerra Vicente. Luís Antonio e Margarida Maria, filhos de João Arnaldo. Helena e Augusto, filhos de Antonio de Padua. Em 1975, o avô escreveu e dedicou‐lhes uma série de quatro peças para piano solo: 1. Contemplando, dedicada à Margarida; 2. Num é? Num é?, dedicada ao Augusto; 3. O violãozinho na rede pequena, dedicada à Helena; 4. Dança festiva, dedicada ao Luís Antonio. O Augusto foi o único a seguir a profissão de músico. É excelente violoncelista e integra a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, em Brasília.
Na tarde de 5 de maio de 1976, José Guerra Vicente estava sentado, junto da esposa, em um banco da Praça da Matriz, na cidade de Vassouras, estado do Rio de Janeiro, onde gostavam de passear. Comentava sobre o estilo do casario local, quando seu coração deixou de funcionar, em consequência de uma embolia fulminante. Sem dor, sem queixa. Como um pássaro de Santa Tereza. A cabeça apenas pesou no ombro da querida Giselda.
Brasília, 18 de março de 2013
A obra de José Guerra Vicente está, em grande parte, editada e gravada. As partituras podem ser encontradas em www.abmusica.org.br e www.sesc.com.br/sescpartituras. Para mais informações, sugerimos a consulta de Higino, Elizete, José Guerra Vicente – o compositor e a obra, Academia Brasileira de Música, Rio de Janeiro, 2006.
Texto publicado na Glosa nº 8, p. 70-72.