O presente artigo corresponde aos resultados de nossa pesquisa de pós-doutoramento, desenvolvida entre 2010 e 2011 no Centro de Estudos de Sociologia e Estética da Musical (CESEM) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) e no Museu da Música Portuguesa. Dentre seus principais objetivos, interessava-nos investigar a forma como os movimentos musicais produzidos no Brasil durante a primeira metade do século XX dialogaram com a música portuguesa, a partir da trajetória dos compositores César Guerra-Peixe (1914-1993) e Fernando Lopes-Graça (1906-1994), bem como as motivações estéticas, políticas e culturais que conduziram este diálogo. Partimos do pressuposto de que durante os anos 1940 e 1950 estes dois compositores, juntamente com outros músicos brasileiros, protagonizaram um intenso trânsito cultural que tinha como temática central o debate vivenciado no Brasil daquela época entre o dodecafonismo e o nacionalismo.
Este pressuposto foi forjado, na verdade, ao longo da minha pesquisa de doutoramento sobre a produção dodecafônica de Guerra-Peixe, que culminou na tese Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliações estéticas e culturais na produção musical de César Guerra-Peixe (1944-1954). O conjunto documental principal que subsidiou esta pesquisa de doutoramento foi a correspondência trocada entre Guerra-Peixe e Francisco Curt Lange num período de cerca de trinta anos1.
Durante a leitura desta correspondência, por diversas vezes deparei com o nome de Lopes-Graça:
“FERNANDO LOPES-GRAÇA: Já temos contato com este musicólogo ‘semi-patrício’ meu. Respondeu, a uma carta nossa, de uma maneira muito simpática e enviou-nos livros seus” (Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange no dia 26 de agosto de 1947).
“PORTUGAL: O Lopes Graça fez executar algumas peças do VI BOLETIM2, em Concerto do grupo SONATA3” (Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange no dia 14 de julho de 1948).
“LOPES GRAÇA: enviei para esse musicólogo e compositor português o meu artigo sobre o Dodecafonismo no Brasil […]. Lopes Graça respondeu-me imediatamente, pondo-se de acordo com meu ponto de vista – que é o ponto de vista do músico de um país de escola em formação e que, portanto, ainda não tem tradição na música culta” (Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange no dia 05 de novembro de 1951).
“Preciso do endereço de Lopes Graça. Peço-lhe de me escrever a Montevideo, Casilla de correo 540, do Instituto Interamericano de Musicologia”
(Carta de Curt Lange a Guerra-Peixe no dia 20 de janeiro de 1952).
“Dr. Lange, o compositor português Fernando Lopes Graça me escreveu dizendo que o governo português invalidou o seu diploma de professor, ficando, assim, o Graça, impossibilitado de lecionar em Portugal. Ele deseja sair de sua terra e não sabe como. Pensava vir para o Brasil. Mas aqui as coisas não andam bem, pois a política facilita os seus “afilhados”. Mesmo em São Paulo nada consegui, nem para Graça dar concerto, fazer conferência ou lecionar. Pensei, então, que talvez se pudesse arrumar alguma coisa para ele aí na Argentina ou no Uruguai. Seria pelo menos um meio dele sair de Portugal, pois não está, no momento, prevenido economicamente. Seria possível arranjar-lhe um contrato, curto que seja? Muito eu lamento não ter podido arranjar nada para ele, pois seria um elemento muito interessante para o Brasil”
(Carta de Guerra-Peixe a Curt Lange no dia 11 de agosto de 1954).
Numa leitura preliminar dos livros Disto e Daquilo, Reflexões sobre a Música e Escritos Musicológicos, todos escritos de Lopes-Graça, pude perceber um pouco a razão do interesse de Guerra-Peixe por Lopes-Graça, exatamente no período em que ele, Guerra-Peixe, desenvolvia seu projeto da “cor nacional”, o qual explicarei oportunamente. Foi então que decidi elaborar o meu projeto de pós-doutoramento e ir trabalhar junto ao espólio de Lopes-Graça no Museu da Música Portuguesa. Para minha surpresa, lá encontrei um conjunto documental extremamente vasto que diz respeito à música brasileira, praticamente desconhecido da nossa historiografia musical.
Como exemplificação, apresento um quadro que nos possibilita visualizar quem foram os músicos brasileiros correspondentes de Lopes-Graça, o período e o número de cartas recebidas pelo interlocutor português4:
músicos correspondentes* | n.o de cartas recebidas por lopes-graça | período |
Guerra-Peixe | 25 | 06/12/1947 a Dezembro de 1975 |
Arnaldo Estrella | 33 | 24/07/1948 a 06/12/1978 |
Cláudio Santoro | 15 | 02/08/1948 a 01/08/1974 |
Hans-Joachim Koellreutter | 1 | 29/12/1948 |
Francisco Mignone | 3 | 12/05/1948 a 04/12/1959 |
Luiz Heitor Correa de Azevedo | 14 | 09/08/1949 a 28/10/1980 |
Mozart de Araújo | 9 | 25/04/1951 a 22/08/1971 |
Francisco Curt Lange | 4 | 04/06/1952 a 25/08/1969 |
Oneyda Alvarenga | 4 | 08/03/1954 a 10/04/1967 |
Camargo Guarnieri | 11 | 20/02/1957 a 05/01/1968 |
João da Cunha Caldeira Filho | 5 | 02/03/1959 a 10/12/1960 |
Edino Krieger | 1 | 29/04/1969 |
José Maria Neves | 1 | 01/03/1970 |
Helza Cameu | 5 | 10/03/1973 a 05/08/1974 |
Andrade Muricy | 1 | Sem data |
*Correspondência dos músicos brasileiros encontrada no Espólio de Lopes-Graça
Durante a década de 1950, período que focalizo na minha investigação justamente por corresponder ao estreitamento das relações entre Lopes-Graça e os músicos brasileiros, a temática central da correspondência era, como já mencionado, o debate brasileiro entre a música nacionalista e a música dodecafônica, que culminou, em dezembro de 1950, na célebre “Carta Aberta aos Críticos e Músicos do Brasil”, assinada pelo compositor Camargo Guarnieri. A “Carta Aberta” – historicamente considerada um marco para o fim do dodecafonismo no Brasil – bem como outros documentos publicados no país, eram enviados a Lopes-Graça que, por sua vez, também os publicava no periódico A Gazeta Musical e de todas as Artes5 , tornando conhecida em Portugal a polêmica vivenciada no Brasil. Da mesma forma, documentos originalmente publicados na Gazeta referentes à música brasileira eram enviados ao Brasil.
Dentre os documentos apresentados aos leitores da Gazeta, no período entre 1951 e 1958, relativamente aos assuntos brasileiros, estão:
1) “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”. Gazeta Musical, fevereiro de 1951. Originalmente publicada no Brasil em dezembro de 1950. (O compositor Camargo Guarnieri, discípulo direto de Mário de Andrade – mentor intelectual do nacionalismo brasileiro –, defendia veementemente a música nacionalista e o fez publicamente ao escrever esta carta. Nela, o compositor acusa a música dodecafônica de se ser, dentre outros aspectos, cerebralista, pouco intuitiva, um experimento de laboratório, e de corresponder a uma arte degenerativa. Voltarei a falar dela posteriormente.)
2) “Conversa com Fernando Lopes-Graça”. Gazeta Musical, abril de 1952. Trata-se de uma entrevista do compositor português concedida e publicada por Mozart de Araújo no Jornal de Letras do Rio de Janeiro, em 1951, reimpressa na gazeta portuguesa6. Esta entrevista foi realizada através das cartas, não uma entrevista realizada pessoalmente e, como veremos, foi decisiva para estabelecer o intercâmbio entre os músicos brasileiros e Lopes-Graça.
3) “Que isso é esse Koellreutter?”. Gazeta Musical, abril de 1953. Artigo escrito por Guerra-Peixe, originalmente publicado na revista Fundamentos, em 1953. Neste artigo o compositor brasileiro denuncia Hans-Joachim Koellreutter, o introdutor do dodecafonismo no Brasil e seu ex-professor, de copiar trechos do livro Música e Músicos Modernos (1943) de Fernando Lopes-Graça, e publicá-los como sendo de sua autoria no artigo Música Brasileira, de 1946, lançado pela revista Música Viva.
4) “Carta Aberta ao Compositor Brasileiro Guerra-Peixe”. Gazeta Musical, junho de 1953. Trata-se de uma resposta de Lopes-Graça ao artigo anterior, sobre plágio, escrito por Guerra-Peixe.
5) “Conversa com Camargo Guarnieri”. Gazeta Musical, março de 1958. Entrevista de Guarnieri concedida a Lopes-Graça e João José Cochofel (secretário da redação da Gazeta Musical), por ocasião da passagem do compositor brasileiro por Lisboa.
6) “Inquérito aos Compositores Brasileiros”. Gazeta Musical, outubro-novembro de 1958; janeiro de 1959; fevereiro de 1959; março de 1959. Trata-se de um inquérito realizado por Lopes-Graça, quando de sua turnê ao Brasil em 1958. Foram entrevistados Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Cláudio Santoro, Guerra-Peixe e Luiz Cosme.
Além das cartas e dos documentos impressos, um número significativo de obras musicais brasileiras, cerca de vinte, fora enviado a Lopes-Graça na década de 1950, com a finalidade de integrar a programação da Sociedade de Concertos Sonata. Dentre as obras que tiveram estréia mundial em Portugal constam as Trovas Alagoanas e Trovas Capixabas de Guerra-Peixe, apresentadas em 9 de abril de 1957.
Fotografia: Guerra-Peixe na Rua Souza Franco,Petrópolis, 1934.
Texto completo publicado na Glosas n.º 11, p. 22-26.