“Sei que este convite poderá parecer algo insólito, mas a reflexão é livre e pode escrever sobre o que mais achar interessante ou pertinente — ou, se não achar interessante ou pertinente falar sobre um polifonista do século XVI, também pode escrever sobre isso.” Assim me respondeu às minhas reservas perante tal convite o director desta revista: “Sei perfeitamente que não é ‘musicólogo no sentido clássico do termo’ [expressão minha] (e, de certa forma, ainda bem)! O objectivo com esta nossa ideia foi, de facto, de propor a compositores que escrevessem algo acerca do que esta música lhes pode suscitar, de forma livre, sem quaisquer constrangimentos musicológicos ou outros”.
E eu perguntei-me, neste “diálogo improvável”: “como vou escrever sobre um compositor que não conheço? Nem os musicólogos consultados o conhecem ou citam…”.
Gaspar Fernandes está presente na monumental Portugaliae Musica da Fundação Calouste Gulbenkian que tantas vezes folheei! (E voltei a folhear, nos meus livros, para este texto!). Como tantos outros, que ficam ignorados…! Habituamo-nos a deixar-nos envolver pelas figuras aceites como paradigmas dos tempos e das culturas e passamos ao lado de grandes músicos, como é o caso de Gaspar Fernandes, cuja música venho ouvindo, fascinado e surpreendido através da Internet, encaminhado pelo director de Glosas.
Costumo dizer, sorrindo, que o compositor português de hoje (como o de há séculos!) não se pode queixar de as suas obras não serem trazidas a público, pois se uma obra com L’Orfeo de Monteverdi, composta em 1607, contemporânea de Gaspar Fernandes, só foi apresentada em Portugal cerca de quatro séculos depois, em 1973, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian…! (“J’étais là!”, como gritava, na televisão francesa, o rapaz do anúncio!…). Se o nosso compositor aqui evocado está longe do lugar de Monteverdi no mundo musical ocidental, isso pode explicar o silêncio de musicólogos e de gentes ilustres de Portugal…
“Livre pensar é só pensar!”, lia eu de Millôr Fernandes na primeira página do Diário Popular nos meus tempos lisboetas de “menino e moço”. A liberdade que me foi concedida levou-me à página de música que fui convidado a escrever para a rubrica da revista “Glosando: a convite da Glosas, uma peça inédita”. Após ler e ouvir Gaspar Fernandes, surgiu-me um Gaspar la nuit para a página de música, e um Gaspar, esse desconhecido para o texto, glosando os títulos célebres Gaspard de la nuit de Ravel e O homem, esse desconhecido de Alexis Carrel.
Obras de mundos infinitos diferentes, tocando-se e afastando-se na obscuridade e na claridade poética de um músico, pela arte, nos segredos e nos mistérios do mundo real, pela ciência, em ambos, O fenómeno humano (Theilhard de Chardin) como centro. Os “nós e os laços” diversos com que uni estes dois momentos são a minha homenagem ao compositor, em quem encontrei profundas afinidades com as minhas vivências de jovem estudante: do órgão da Sé Catedral de Braga às passagens por África e México, das experiências monásticas das iluminuras medievais em cópias manuscritas da adolescência a milhares de obras litúrgicas e profanas em intercâmbios de colegas que as recolhiam também das Américas através de familiares emigrantes. Os meus “programas” concertísticos e litúrgicos recorriam a repertórios de organistas de catedrais europeias com linguagens vindas do canto gregoriano, mas também de escolas “profanas”, como o impressionismo, o romantismo, a modernidade. Estou a imaginar-me na Catedral da Guatemala, entre o sagrado e o profano de Gaspar Fernandes (em diálogo naquela página de música).
De entre as pérolas em vernáculo do compositor, vi este vilancico do seu Cancioneiro, “Lá, Sol, Fá, Mi, Ré”: “Lá, sol, fá, mi, ré/ Se el pan se me acaba/ o que comere?/ ré, mi, fá, sol, lá/ que non se le acabará”. De um conjunto de quatro peças para vozes de crianças, que tem como título Canções para sorrir e pensar, escrevi uma, para idades de oito anos, com o título de Tabuada em dó maior, “texto” de Guido d’Arezzo (do, ré, mi, fá, sol, lá, si), “texto” de Pitágoras e outros matemáticos (dois vezes dois, quatro, etc.)… Quem diria que em 2016 encontraria um antepassado com uma música glosando com as mesmas notas da escala? Senti essa música e texto como se tivessem sido escritos hoje nas nossas escolas.
Santiago Kastner, decano dos musicólogos portugueses, comentava, assim, a minha intervenção no II Encontro de Musicologia, em 1984, na Fundação Gulbenkian, a propósito da pergunta “Xenakis, musicólogo?”: “Estou de acordo consigo, porque tenho lido análises de música antiga por compositores contemporâneos, e vejo que o fazem com outra lucidez e com outra perspicácia, diferentes de nós, musicólogos”. Escrevi na Revista de Musicologia desse ano: “À divulgação do património, a criação de património”. Hoje, aqui, escrevo: “À criação de património, a divulgação do património”.


PORTO, 26 DE AGOSTO DE 2016
Texto publicado na Glosa nº 16, p. 56-57.
