Entrevista a Eduardo Fragoso M. Soares

Fundou e preside à Associação com o nome do seu Tio-Avô. Como foi o caminho até à criação da Associação António Fragoso?

Devo em primeiro lugar esclarecer que eu e os meus irmãos não somos sobrinhos-netos de António Fragoso: somos, sim, sobrinhos, filhos de Maria Fernanda de Lima Fragoso, a única irmã que não foi afectada pela pneumónica. Fazia 19 anos de diferença do António e, mal se soube que a doença fatal tinha entrado no concelho de Cantanhede, foi levada para o Porto pelo seu tio José de Oliveira Lima. 

Respondendo agora à pergunta, direi que o caminho até à criação da Associação António Fragoso consistiu numa sequência de três ciclos desde a sua morte. Um primeiro deve-se ao seu pai e nosso avô, que – mesmo que lhe tenha custado horrores – organizou todo o espólio e o colocou num daqueles malões de couro, tendo um especial cuidado com as partituras. Como era advogado, coseu à linha as partituras – como os processos judiciais –  e encapou-as, criando o Livro dos Manuscritos. Também existia um Livro de Família, onde ele colava religiosamente todas as menções sobre o António: críticas a concertos em que se tocava a sua música ou depoimentos de figuras gradas do meio musical e até dos seus professores do Conservatório. Infelizmente, este Livro de Família está desaparecido, mas eu próprio passei tardes a lê-lo, onde bebi muitas informações sobre e de António Fragoso. 

O segundo ciclo foi um dos objectivos de vida de minha mãe, principalmente depois de ter ficado viúva, com apenas 34 anos, e tendo seis filhos para educar. Dois objectivos que foram cumpridos, pois os filhos adquiriram ferramentas para singrarem na vida, e o seu irmão António teve quase todas as suas partituras publicadas, mesmo depois de a Casa Valentim de Carvalho ter perdido, no fogo do Chiado, todas as cópias que tinha feito para cumprir o contrato da edição da sua obra completa que tinha assinado com minha Mãe. Apenas as obras para piano puderam ser impressas antes do fogo, que inutilizou todas as cópias de Fragoso e não só. Isso originou que a Valentim de Carvalho deixasse de publicar edições musicais. Mas a minha mãe não se deixou abater e foi à luta. Falou com muitas pessoas ligadas à Cultura, e finalmente o Instituto de Alta Cultura patrocinou não só a publicação das obras fragosianas, como contratou músicos ou compositores para efectuarem revisões técnicas e musicais dessas obras. A minha mãe faleceu cumprindo os dois objectivos a que se propôs, e todos nós achamos que só uma pessoa com a fibra que ela demonstrava poderia atingir tal desiderato. 

Vivia connosco uma tia-avó, Maria José Fragoso, que era a madrinha de António Fragoso e a quem ele confidenciava os seus problemas e os seus êxitos. Era a tia Maria José que ele chamava quando tinha em mente uma nova música ou um tema para uma futura composição. Ela, regra geral, aconselhava-o a escrever de imediato essas notas ou compassos, para que não os esquecesse. Foi essa tia Maria José que me respondeu ao que me perguntava: como escrevia alguém tão alegre música tão nostálgica e tão triste? Ela dizia-me que, para além do da música, António vivia em dois mundos: o bucólico, pobre e triste – de que a Pocariça, aldeia onde ele nascera, era um exemplo –, e a vida meio louca que ele vivia na grande cidade que era Lisboa. Essas duas vivências estão hoje estudadas, mas não conseguimos saber qual venceria, tivesse António vivido mais anos!

Nós, os seis sobrinhos, fomos educados por estas duas extraordinárias figuras, ambas inteligentíssimas e com uma enorme devoção pelo legado de António de Lima Fragoso. E, enquanto viveram, eram como uma extensão da sua vida – ou seja, não permitiram nunca que Fragoso fosse eternamente esquecido. 

E entrámos no terceiro ciclo, com a terceira geração (e até também parte significativa da quarta). A nossa mãe faleceu em 1990; nessa altura, estávamos todos envolvidos nos nossos trabalhos, com os nossos filhos, e, no fundo, vivendo mais ou menos intensamente as nossas vidas. O legado do nosso tio António vivia quase no limbo do esquecimento. Era um desconhecido: tinha deixado de ter peças obrigatórias no Conservatório, as partituras foram-se esgotando; por vezes, só no dia do seu aniversário, 17 de Junho, ou no dia 13 de Outubro, dia do seu falecimento, é que se ouvia na rádio. A ter continuado assim, António Fragoso tenderia a ser apagado dos anais da cultura portuguesa. Porém, quase num repente, deram-se três factos que reverteram essa situação – chamo-lhes as “três bofetadas” que a família Fragoso recebeu e que a fizeram despertar. Resolveu, por isso, criar a Associação António Fragoso, a 28 de Janeiro de 2009. Resolvidos os problemas burocráticos com a sua criação (ou não vivêssemos em Portugal…), só em Junho ficámos “legalizados” e começámos então a lutar pelo justo lugar do tio António, que, segundo o grande maestro Pedro de Freitas Branco, “tinha a envergadura para se tornar no maior compositor português de todos os tempos…”. Foi assim que a Associação António Fragoso foi criada, tendo então toda a Família estado envolvida no redespertar de António Fragoso. Dez anos volvidos, podemos e devemos afirmar veemente que António Fragoso não morreu, porque se toca cada vez mais a sua música – quer nacionalmente quer, até, internacionalmente.

Não raras vezes a família é instada pelo meio musical a envolver-se no espólio de um compositor, especialmente quando este dista a poucas gerações: é procurada para pedir partituras pelos intérpretes ou documentos pelos estudiosos. Foi o caso? Como era a sua relação com a obra de seu tio antes da criação da Associação?

Entre a morte de minha mãe e a criação da Associação que tinha o nome de seu irmão mais velho distaram quase 19 anos – uma eternidade para um compositor. As partituras foram-se paulatinamente esgotando, as suas obras eram cada vez menos interpretadas e difundidas. Este hiato entre a extraordinária acção de nossa mãe e a fundação da Associação ia provocando um esquecimento generalizado da obra musical de nosso tio. Alguns intérpretes trocavam entre si as partituras de Fragoso que não conseguiam encontrar. Outros melómanos buscavam maneiras de nos encontrar… até que se deram as “três bofetadas”: o disco, interpretado pelo pianista Miguel Henriques, com a que ele considerava a “integral de piano de Fragoso”; o convite à família para se envolver numa homenagem que o Município de Cantanhede, presidido pelo Prof. Doutor João Vidaurre Pais de Moura, se propunha levar a efeito em 2008, comemorando os 90 anos da morte de António Fragoso; e, finalmente, o Colóquio Internacional António Fragoso e o seu pensamento, promovido pela Universidade Nova de Lisboa, e que teve como principal obreiro o Prof. Doutor

Paulo Ferreira de Castro. Foi levado a efeito na Culturgest a 21 de Outubro de 2018. E, se os três eventos foram igualmente importantes, o colóquio foi o que fez realçar um novo olhar sobre António Fragoso, e teve o mérito de, com o Auditório cheio de pessoas interessadas, dar a conhecer essa personalidade que dava pelo nome de António Fragoso. Os seus sobrinhos estavam obviamente na primeira fila, e um deles apresentou, juntamente com um primo, uma palestra sobre as suas raízes familiares. Lá estava reunida a maioria dos musicólogos portugueses, e alguns estrangeiros. No fim desse dia, ficámos com a certeza de que teríamos de fazer algo, tais foram as “novidades” sobre o nosso tio que aprendemos durante cada palestra e durante o concerto que teve lugar nessa noite. Só nesse dia é que António foi, enfim, redescoberto.

Como sentia a receptividade ou a procura do meio pela música de Fragoso antes de 2009, quando a Associação foi fundada?

Sempre existiu uma minoria que revelava muito interesse na música de Fragoso. E esses intérpretes, musicólogos e historiadores, por acção da nossa Mãe, foram os que não deixaram cair o legado de Fragoso no esquecimento total. Mas não deixava de ser uma minoria, e por isso é que  sentimos que havia necessidade de fazer não só como homenagem a nosso tio, mas também a nossa mãe, que serviu de exemplo a todos nós.

E de 2009 em diante? E como perspectiva a implantação cultural de António Fragoso após a intensa divulgação e reflexão resultantes do programa das comemorações do centenário da sua morte?

Em 2009, depois de termos organizado vários jantares-leilão para nos financiarmos, sentimos que havia a necessidade de tornar visível a Associação, o que fizemos através de concertos e palestras em Lisboa, Coimbra, Cantanhede e Porto.

E resolvemos editar um vídeo intitulado António Fragoso, uma antologia, que continha duas peças de piano, duas de câmara, duas de canto e piano e uma de orquestra. Esse vídeo acabou por ser lançado com o livro de actas do Colóquio Internacional acima referido, e foi um bom sucesso de vendas. Queríamos que os portugueses não só conhecessem a música de Fragoso, mas também quem era na verdade essa figura de culto dos inícios do século xx. Depois foram quase dez anos de trabalho, e orgulhamo-nos de constatar que hoje, no ano do centenário da sua morte, Fragoso tem já uma pequena multidão de fãs, que aos poucos se foi interessando pela sua música – multidão essa que foi engrossando ao longo desse ano. E falamos de pessoas que nunca tinham ouvido uma peça de Fragoso, mas que foram a um dos 72 concertos que promovemos durante o ano 2017–18. Essas pessoas passaram a ir a todos os eventos que podiam. Cabe aqui dizer que foram poucos os concertos dedicados exclusivamente a Fragoso, pois era importante que o público pudesse assimilar que, apesar de “morrer ao 21 anos é quase não ter vivido” (isto nas palavras de Pedro de Freitas Branco), Fragoso faz parte dos compositores geniais que agora ouvimos com assiduidade.

De referir que a principal prioridade estratégica do In memoriam de António Fragoso era deixar o seu legado acessível para as gerações vindouras. Esse plano atravessou algumas vicissitudes, mas tudo irá estar pronto em 2019. Falamos nas indispensáveis partituras, sem as quais a divulgação de Fragoso não é possível; falamos nos quatro ou cinco discos com as suas integrais; falamos de vídeos dos concertos mais grandiosos; falamos da publicação de seus dois livros (que estão já no prelo), e de uma nova biografia escrita pela Prof.ª Doutora Barbara Aniello. Temos consciência de que este intenso ano de programação, a cujos frutos se juntarão os produtos atrás referidos, vai fazer com que António Fragoso seja reconhecido como um dos maiores compositores portugueses da primeira metade do século xx. 

Hoje, recebemos pedidos diários de partituras, e já se toca Fragoso um pouco por toda a parte, incluindo no estrangeiro. Também achamos que os livros dele, bem como a nova biografia, vão mostrar que António Fragoso era uma pessoa com uma cultura muito acima da média.

À data da doação do espólio fragosiano à Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a veia literária do compositor era inédita e conhecida apenas pela família. Em que consistem esses escritos?

Desde que nos apresentámos publicamente que existiram algumas pressões para que o legado de António Fragoso fosse doado a esta ou àquela instituição. Mas essa doação só podia ser feita depois de digitalizarmos todo o seu espólio, incluindo o literário. Para informação daqueles que esperam este legado literário, hoje sabemos que, na semana em que compôs a sua primeira peça musical, aos doze anos de idade, escreveu igualmente o seu primeiro conto. A sua paixão era indubitavelmente a música, mas era um devorador de livros quando estava mais livre das suas tarefas musicais. 

O seu legado literário é baseado em 650 cartas, que, depois de terem sido transcritas, estudadas, seleccionadas e prefaciadas, deram origem a um interessantíssimo volume que vamos intitular simplesmente Correspondência. Além deste livro – simplesmente factual, mas muito interessante –, lançaremos também as Cartas a Maria e outros escritos, um livro ficcional, pois acreditamos que “Maria”, ao contrário do que António Fragoso pretendia, era uma correspondente ficcional, mas as cartas que lhe são endereçadas são muito importantes para o conhecimento da cultura portuguesa. Nos outros escritos estão os tais contos que atrás referimos e algumas cartas isoladas: a descrição de viagens e de factos ocorridos na sua aldeia natal, como a última que escreveu, que tinha por tema uma esfolhada numa eira de milho da Pocariça. A nova biografia, elaborada por Barbara Aniello, conta-nos (com palavras do próprio António) como foi a sua curta vida.

Quais são os planos da Associação António Fragoso após estas comemorações? Como celebrará a Associação o ano em que cumpre uma década de actividade?

A AAF continuará com a divulgação de António Fragoso, enquanto músico e compositor, tentando demonstrar que, apesar do pouco tempo de vida que teve, as suas composições têm um nível de um imortal, tal como os compositores que nós ouvimos todos os dias. Para que isso se realize, a estratégia que vamos seguir aposta na sua consolidação internacional. Mas os corpos gerentes da Associação acabam o seu mandato em Janeiro de 2019, pelo que iremos aguardar que seja eleita uma nova direcção para se aprovar toda a estratégia e, quanto antes, pô-la em marcha. Temos um plano já definido ponto por ponto, mas só o iremos desvendar após a posse da nova direcção. Mas podemos informar que outro dos objectivos definidos como muito importantes é o ensino, através da abertura de novas academias de música e, para o ensino iniciático, com equipas que visitarão escolas do ensino básico. Para além de se ministrar educação musical, tentaremos descobrir possíveis novos talentos. 

Por último, interessa-nos lançar o “António Fragoso, homem de uma cultura invulgar”. Para além da faceta de compositor e virtuoso do piano, ele tinha, desde cedo, o dom da escrita, como homem das artes que era. Serão estes os tópicos da continuação de uma estratégia que permitirá aos portugueses (e não só) admirar este homem de cultura. 

Em 2019, teremos nova efeméride a comemorar: os 10 anos da Associação António Fragoso. Não terá obviamente a dimensão do In memoriam de António Fragoso. Não queremos desvendar o plano dessa comemoração, dado que, como frisámos atrás, em Janeiro toma posse uma nova Direcção que poderá (ou não) alterar ou pôr em marcha as ideias que temos. Teremos sem dúvida um plano de realizações, e a nossa temporada incluirá concertos que estão na linha dos objectivos acima referidos. Nós gostamos de surpresas, principalmente se elas forem sobre António Fragoso!

O que falta ainda fazer?

Infelizmente, o ambicioso plano elaborado para o In memoriam de António Fragoso não foi totalmente cumprido. Desde logo – e talvez o item mais importante – foi o enorme atraso na revisão de todas as partituras que Fragoso nos deixou. Há quatro anos e meio encomendámos essa revisão a um compositor e intérprete reconhecidamente competente. O objectivo era ter essa revisão pronta durante as comemorações. Depois de se terem completado cinco revisões das partituras de piano, fomos recentemente informados de que estariam prontas dentro de pouco tempo. As restantes – principalmente as de câmara, bem como as de canto e piano – estão numa fase muito adiantada. Por fim, as de orquestra só estarão concluídas em 2019. Os livros estão no prelo, acreditando nós que estarão impressos e no mercado no primeiro quadrimestre de 2019. Neste domínio, teremos também duas surpresas literárias fragosianas, que serão lançadas no âmbito dos dez anos da Associação António Fragoso. 

Os planos de edição das quatro integrais – piano, canto e piano, música de câmara e de orquestra – também se atrasaram. Saiu o álbum de canto e piano; está pronta a edição do cd duplo das obras de piano e o de música de câmara está gravado e em edição. Estas três integrais estarão – pensamos – no mercado ainda este ano, ficando o cd com a integral de orquestra para 2019.

Entretanto, a nossa estratégia de comunicação passa por lançar publicamente estes cds e estes três livros – as Cartas a Maria e outros escritos, a Correspondência e a nova biografia – no princípio de 2019. Neste domínio, haverá no próximo ano duas outras novidades sobre António Fragoso. Assim o cremos.

Na mesma epidemia de gripe pneumónica, faleceram também três irmãos de António Fragoso. Como foi passada intergeracionalmente a história desse ano devastador na família?

Essa epidemia – que matou em Portugal 120 000 cidadãos – teve uma particular incidência no seio da nossa família. Em cinco dias morreram quatro dos cinco filhos de meus avós: o António e a Isabel no dia 13 de Outubro; a 15, faleceu a Maria do Céu; a 17, o Carlos. Sobreviveu a nossa mãe, com apenas dois anos e meio, porque foi retirada rapidamente para o Porto pelo tio José de Oliveira Lima, o médico que tinha acolhido António em sua casa. Com isso, permitiu a sobrevivência da família e a divulgação da música de Fragoso. Além destes quatro filhos, os nossos avós viram morrer também uma cunhada, duas sobrinhas e uma empregada. 

Este drama mantém-se dentro da nossa Família. A nossa mãe tornou-se o arauto desse pesadelo: ficando filha única, soube acompanhar os seus Pais nessa dor incalculável. Transmitiu-nos essa dor a nós, seus filhos; por nossa vez, passámos, um pouco mais atenuadamente, esta dor aos nossos filhos. Foi uma perda de difícil compreensão. Perder quatro filhos em tão pouco tempo deve ter causado uma dor atroz naqueles pais. Hoje, na terceira geração, perguntamos: como terão reagido os avós a este episódio tão cruel? E a grande questão que se levantou sobre António, ou seja: até onde iria com a sua fantástica música e o seu nível cultural? Que caminho seguiria António nas suas composições? Continuaria a escrever? São perguntas que fazemos a nós próprios, mas que ficam sem resposta. Apenas imaginamos, através do riquíssimo legado que nos deixou, que António Fragoso viria a ser um enorme vulto da cultura mundial. 

E as fantásticas manifestações que se nos deparam por parte de todos aqueles que neste ano do centenário tomaram, pela primeira vez, conhecimento do valor da sua veia artística ainda nos dão cada vez mais vontade de, em todos os anos que aí vêm, conseguir mais e mais torná-lo num verdadeiro imortal e um ícone da cultura mundial.

Fotografias @Jorge Carmona

Texto publicado na Glosas n.º 18, p. 26-42.

Sobre o autor

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Luís Salgueiro é licenciado em Composição pela Escola Superior de Música de Lisboa. Para além da sua actividade criativa, dedica também a sua energia à preparação de partituras e musicografia, primeiro como 'freelancer' e actualmente como coordenador das actividades editoriais do MPMP, Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa.