Gilberto Mendes será, talvez, o decano dos compositores brasileiros. Mas será um mestre relutante: no final de contas, um iconoclasta deve resistir a tornar-se instituição (como Gilberto resistiu a juntar-se à Academia). Com a mesma candura desarmante com que escreve, confessa-nos que não “sabe sequer que tipo de compositor” é – sendo, no mínimo, três diferentes, divididos entre as várias músicas que ama. Por delicioso que seja ouvi-lo falar, quem quiser saber quem é afinal Gilberto Mendes fará melhor em enlevar-se antes na sua música. A OSESP, com o álbum que lhe dedicou pelos seus 90 anos, dar-lhe-á uma valiosa ajuda.

O álbum principia com o Motet em ré menor (1967), Beba Coca-Cola, sobre o poema concreto de Décio Pignatari, tornou-se na obra mais difundida do compositor. Espantosamente, fê-lo a arrepio de todas as contrariedades: o acorde da (alegada) tonalidade é imediatamente destroçado por dissonâncias; põe às costas massas de clusters e ruídos, dos quais se livra com o mesmo ritmo pulsado incessante; a peça culmina, notavelmente, com aquele que será o único arroto registado na História da Música. O humor é imediatamente saliente e, no entanto, esta é uma peça angular, com arestas. Beba Coca-Cola é mais do que uma showpiece ou um gimmick: é uma síntese elegantíssima — como pode ser uma equação ou um vestido, algo que revele muito com muito pouco — da alma de Gilberto Mendes. O que há de secreto, de pessoal, de emotivo e de genuíno é aberto ao mundo e por ele se deixa permear, com a maior das graças e com humor.

Segue-se a Abertura da ópera Issa (1995), um projecto ainda por terminar, partilhado com Pignatari e inspirado na figura de Kobayashi Issa, um dos mais célebres cultivadores do haiku. Talvez seja por isso que, como num bom haiku, a música viva não do conflito e das tensões ocidentais mas antes através da justaposição. A textura global, sempre feérica, caminha — virada para si mesma, ora mais ora menos pacificamente — através de ostinatos. Quando lhe é adicionada energia suficiente, revela uma verdade e vira a sua atenção para outro lado. A peça termina com um final quase pastoral, imbuído de pentatonicismo.

Partitura: Um quadro de Gastão Z. Frazão (1985), pelo contrário, é uma peça de contradições. Como num prisma, os materiais que servem de ponto de partida são cindidos e enviados em direcções díspares e surpreendentes, num espectáculo caleidoscópico de cor. Mendes explora inspiradamente um contínuo entre as mais profusas paisagens tonais e morfologias plasmadas microtonais, encontrando pelo meio hábeis referências quer ao jazz de Billy Strayhorn, quer aos gestos heterogéneos de Schoenberg e à melodia de timbres de Webern; ao centro, o inclassificável peso do uso bem medido do silêncio. Partitura reúne todas as paixões de Gilberto, numa síntese ecléctica que viria a ser amplamente justificada pelo próprio uma década depois, em Uma Odisséia musical – dos mares do Sul à elegância da pop / art déco (1994). O compositor dedica parte da sua principal monografia — um livro altamente auto-reflexivo, que nasce da sua teoria e prática pessoais — à análise das várias trocas entre a música erudita romântica e moderna (de Wagner, de Schoenberg) e o jazz e música popular do início do século XX (de Cole Porter e Hanns Eisler).

Tudo isto é mediado pela mais expansiva imediatez de empatia e de vitalidade expressiva. A peça que empresta o nome ao álbum, por exemplo, avisa logo ao que vem: “Vamos dançar, (…) shall we dance, shall we?”. Alegres trópicos – Um baile na mata atlântica (2006) parece querer animar a tristeza de Lévi-Strauss. A peça abre com uma fanfarra como a que anunciaria um dos primeiros grandes talkies. Ambiciosos gestos melódicos, com o peso e densidade que lhes confere a harmonia em bloco estilo big band, metamorfoseiam-se em passagens dodecafónicas, que por sua vez se dissolvem de novo para coalescer no piano e vibrafone à la George Shearing. Tudo isto acontece à mesma velocidade das alucinantes montagens cinematográficas de Ruttmann – ou dos Jeux de Debussy. É uma peça fragmentada, mas nunca partida. A paleta de associações e auras é riquíssima, mas nem por um momento atravessa a fronteira em direcção ao kitsch. Nada ocorre como esperamos: as forças capturadas na música compelem o corpo e a expectativa a readaptarem-se constantemente. Gilberto bem nos havia prometido dança. Despede-se gentilmente, de novo através do coro: “adeus, goodbye, adieu adieu”.

A fechar, Rastro harmônico (2003-2004), outra peça referencial na obra do compositor. Na base da sua concepção está um procedimento adoptado pela primeira vez em Um estudo? – Eisler e Webern caminham nos mares do Sul, para piano, uns quinze anos antes (1989). Um fio melódico desenrola-se, em sucessivas notas de duração igual, deixando o ouvido num estado de constante reavaliação das consequências melódicas e harmónicas de tal remoinho. Num intervalo de segundos, é-nos sugerido ora um, ora o outro dos santos do seu altar particular. Aqui Eisler, aqui Webern; aqui Weill, aqui Berg. Em Rastro, no entanto, o exercício ganha outra dimensão: tendo quinze anos de experimentação com a técnica e uma orquestra à disposição, Mendes presta-se a um trabalho admirável sobre a filigrana da orquestração, do qual resultam brilhantes melodias de timbres e – como o próprio nome da obra sugere imediatamente – hábeis jogos de ressonâncias. A obra exibe a cada momento o impecável sentido de melodia do compositor, mesmo quando se trata de um solo de tímpanos. Mesmo quando trabalha em terrenos (julgávamos nós) bem cartografados, a sua invenção não se esgota.

Este registo de 2011 captura Alondra de la Parra, uma das mais empolgantes maestrinas da actualidade, a liderar sem mácula uma orquestra em grande forma. Aliado às comemorações do 90.o aniversário de Gilberto Mendes, o álbum inaugurou também, em 2013, a iniciativa “Selo Digital OSESP”, que disponibiliza gratuitamente ao público gravações da orquestra, contribuindo para a difusão da música brasileira, para a valorização do património e da marca OSESP e para a democratização do acesso à música.

Gilberto Mendes 90

Alegres Trópicos

Selo Digital OSESP: Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo,

Coro da OSESP, dir. Alondra de la Parra, 2013.

Texto publicado na Glosas n.º13, p. 21.

Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Sobre o autor

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Luís Salgueiro é licenciado em Composição pela Escola Superior de Música de Lisboa. Para além da sua actividade criativa, dedica também a sua energia à preparação de partituras e musicografia, primeiro como 'freelancer' e actualmente como coordenador das actividades editoriais do MPMP, Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa.