Curioso no Tratado de Harmonia de Luís de Freitas Branco é o modo como, apesar de construir uma obra com que pretende fundamentalmente sistematizar a teoria e, de modo mais ou menos imparcial, fornecer conhecimento sobre harmonia ao seu leitor, o autor acaba por transparecer de modo claro pontos de vista individuais profundamente relacionados com a sua própria visão da história, evidenciando juízos acerca da elevação e decadência de técnicas ou períodos históricos concretos: “O primeiro resultado do sistema da cifração dos baixos foi a simplificação da harmonia pelo exagerado emprego do acorde de sétima da dominante” (ibid.:159). Este ponto de vista, aqui expresso de modo passageiro e resumido, será das ideias mais repetidas por Luís de Freitas Branco noutros artigos, quando, assumindo o barroco como início do período romântico, identifica um dos motivos da decadência da composição no romantismo com a técnica do baixo cifrado e a consequente banalização da utilização da sétima de dominante.
Nos anos 1940 Freitas Branco continua a colaboração no jornal O Século, iniciada na década anterior, e a dedicação à revista Arte Musical; publica a História Popular da Música para a Biblioteca Cosmos de Bento de Jesus Caraça; e escreve programas de rádio que se prolongam até ao início da década de 1950, sobre história da música ou “O compositor da semana”, exemplos onde surgem as mesmas ideias sobre a oposição entre o classicismo e o romantismo, entre outros pensamentos comuns em Luís de Freitas Branco. Na década de 1950 observa-se uma intensificação da escrita sobre pedagogia, sobretudo da denúncia do estado a que o ensino musical em Portugal havia chegado. A revista Gazeta Musical foi fundada em 1950 por iniciativa de Fernando Lopes-Graça e João José Cochofel, preenchendo a lacuna que a Arte Musical acabou por deixar aquando do momento em que Luís de Freitas Branco deixou de ser seu director. Pretendia-se, simultaneamente, uma revista diferente, dedicada a vários temas, incluindo crítica de concertos, de edições musicais, de bibliografia musical e de discos, dimensões antes inexistentes. Apesar de Fernando Lopes-Graça e João José Cochofel terem pensado e dinamizado os números da Gazeta, é Luís de Freitas Branco o primeiro director da revista, talvez dando aos mais jovens a segurança necessária para a fundação de um novo periódico especializado, validado pela presença de um nome conhecido e bem estabelecido na praça pública.
Embora a colaboração com Luís de Freitas Branco rapidamente revele tensões e desentendimentos estéticos, filosóficos e até relacionais, este mantém-se na direcção até à data da sua morte, em 1955, e o responsável pelos editoriais, quase todos profundamente vincados pelo descontentamento com o ensino musical nacional, demonstrando, vinte anos depois de uma reforma que contrariara as suas ideias, um eterno ressentimento. A pedagogia ou, como é colocado por Luís de Freitas Branco, o seu esclarecimento, é desde longo anunciada como um dos principais temas da revista:
Outra tarefa que a Gazeta Musical se propõe realizar é a de esclarecer a primordial questão da pedagogia da arte dos sons, especialmente a que diz respeito ao actual momento em Portugal, questão intimamente ligada a essa outra das ideias sobre a música, à qual se aludiu no parágrafo anterior. Para tanto é indispensável implantar de vez entre nós, nos domínios da arte, o hábito de pensamento contrário à aceitação do efeito sem causa, e promover o conhecimento cada vez mais largo e mais exacto do que sejam as causas pedagógicas a criar, a organizar, e a pôr em acção, para que surjam os efeitos ardentemente desejados por todos os portugueses de boa vontade e de boa fé, ou seja: que tenhamos um público musical de nível elevado, em número cada vez maior, e produzamos compositores e intérpretes musicais, capazes na qualidade, e suficientes na quantidade, para corresponder às exigências desse público e da vida de uma nação culta, como, por direito e tradição, deve ser a nossa. (FREITAS BRANCO 1950:1)
A perpetuação do discurso acerca de um ensino validado através da sucessão de mestres e discípulos está patente em vários dos escritos de Luís de Freitas Branco, seja na referência ao mérito dos seus discípulos como resultado dos seus próprios ensinamentos, ou seja, como validação do seu próprio mérito, seja colocando-se a ele próprio numa linhagem de mestres anteriores, como Viana da Mota. Os seus editoriais supriam essencialmente a necessidade de, finalmente, esclarecer o que de errado acontecia no contexto musical português. Não se limitando à descrição dos malefícios da reforma de 1930, Luís de Freitas Branco enraíza os ideais dessa mesma reforma no ensino obsoleto que era praticado no Seminário da Patriarcal, contra o qual Viana da Mota e ele próprio se revoltaram em 1919. Ao mesmo tempo, e anunciada como símbolo da pedagogia moderna, a teoria dualista é por Freitas Branco defendida do mesmo modo como o tinha sido nos anos 1930 no seu Tratado de Harmonia: justificando-a através da enumeração de tratadistas anteriores, e reiterando a existência de um ensino outrora baseado nesse sistema, em tempos levado a cabo por si mesmo. Os artigos de fundo dos primeiros números da revista têm, portanto, como intenção o esclarecimento do leitor acerca do (mau) estado da pedagogia musical em Portugal, estado que poderia ser revertido pela elevação intelectual do músico, e pelo afastamento do amadorismo das instituições de ensino.
Os restantes artigos de Luís de Freitas Branco para a Gazeta Musical são dedicados, por exemplo, a figuras como Tomás Borba, Viana da Mota, Fernando Lopes-Graça ou Joly Braga Santos, uma vez mais eternizando o discurso acerca de uma passagem de um certo património de ideias de mestres para discípulos, garantindo assim a grandeza do pensamento e da criação musical nacional mediante uma determinada facção intelectual de que o próprio fazia parte. Outros artigos focam-se nas temporadas de concertos em Lisboa, não deixando o autor de salientar a falta de serviço cultural oficial e a pouca relevância que o Estado conferia à cultura, mais concretamente à música. Outros focam, de novo, sob várias temáticas, a oposição entre as dimensões apolínea e dionisíaca da música, afirmando-se Luís de Freitas Branco, nitidamente, partidário da ideia de rejuvenescimento de uma música apolínea, racional e clássica, devedora do espírito renascentista latino e intrinsecamente português, nas suas palavras eternamente perdido com a introdução do barroquismo na música. Ao mesmo tempo, serve a Gazeta para Freitas Branco tornar a referir a sua importância enquanto primeiro autor de manuais de Ciências Musicais, relevando o seu papel não apenas a nível nacional, mas destacando o impacto que a organização dessa disciplina parece ter tido a nível internacional, para lamentar, de novo, a extinção do curso por ele idealizado, e para repetir as alterações negativas levadas a cabo na reforma de 1930:
Extinguiu-se em 1930 a cadeira de Ciências Musicais no Conservatório, e nenhum inconveniente daí teria resultado, se, na ocasião, se tivesse organizado com essa secção (de ciências musicais) o nosso ensino universitário da música em moldes modernos, a exemplo do que há muitos anos se pratica nos países de língua alemã. No caso dessa organização universitária das Ciências Musicais, teriam evidentemente continuado no Conservatório as cadeiras de acústica, de história da música e de estética musical, esta última especialmente destinada a intérpretes (cantores e instrumentistas) que precisam de saber analisar e marcar o fraseado para interpretar conscientemente, ficando estas três disciplinas com o carácter de ensino secundário que ao Conservatório pertence. Ficou, e está, a acústica,mas privada de uma das suas mais importantes funções que é a de introdução a um ensino científico da harmonia. Assim temos a acústica, nos nossos Conservatórios, ao lado da harmonia empírica do método de Durand. De que serve uma tal misturada? (FREITAS BRANCO 1953:67)
Da análise das críticas, dos escritos pedagógicos e de divulgação de Freitas Branco, publicados sensivelmente desde o seu maior envolvimento no ensino oficial da música até aos últimos momentos da sua vida, quando ainda produzia textos com o mesmo intuito de publicação, embora alguns tenham surgido na esfera pública já postumamente, as ideias do autor e compositor sobre pedagogia ficam claras. A par com uma carreira longa e variada está uma visão que pouco se alterou ao longo das décadas: um pensamento baseado numa organização sistemática da história, através de divisões estanques entre períodos clássicos e românticos, dicotomia que é replicada, respectivamente, nas ideias de racionalismo, polifonia e equilíbrio, por um lado e, por outro, nos conceitos de irracionalismo, harmonia e desequilíbrio. Para Freitas Branco, o período barroco e o que chama de época do baixo cifrado teria iniciado uma época romântica caracterizada por uma banalização da sétima de dominante que urgia ser contrariada com a criação e consolidação de um novo período clássico. Uma mentalidade clássica seria a mais adequada à sua contemporaneidade, uma época que se queria fundamentalmente racional e que, no contexto português, deveria passar por uma reapreciação de momentos passados como a Idade Média e o Renascimento.
Se este pensamento já se verificava nas ideias de Freitas Branco sobretudo a partir da sua ligação com o Integralismo Lusitano na segunda metade da década de 1910, continua inegavelmente presente nos escritos do compositor publicados nos anos 1920, destacando-se a edição dos seus Elementos de Ciências Musicais e a sua produção no contexto da semelhante Acção Realista Portuguesa, nos anos 1930 e 1940 na revista Arte Musical, órgão de propaganda do seu nacionalismo neoclassicizante, e em textos de objectivo pedagógico como a História Popular da Música, e nas vésperas do seu falecimento, quando a mesma sistematização da história é repetida no suplemento do Comércio do Porto.
A simples insistência de Luís de Freitas Branco no ensino e divulgação da história não se altera nem esmorece no decorrer das décadas, mantendo o autor uma produção relativamente constante de textos de cariz pedagógico com esta mesma filosofia, que passava também pela organização da história universal e da história nacional através das acções de grandes génios, algo que tanto se percebe na narrativa sobre figuras como Duarte Lobo, Beethoven ou Wagner, como na perpetuação da sua própria imagem enquanto mestre de discípulos que, finalmente, se propõem à alteração do panorama musical nacional, ou seja, construindo ele próprio uma ideia de genealogia.
Revela-nos essa insistência, possivelmente, uma angústia ou um sentimento de incompletude. O que Luís de Freitas Branco via como inevitabilidade nos anos 1910 — a criação de uma nova época clássica —, continuou a seu ver sem se cumprir nos anos 1950, algo que de certo modo confessa nos vários artigos em que menciona ainda a necessidade de abandono do romantismo; do mesmo modo, a sua visão histórica e a palavra que tentava propagar através do seu ensino pareciam não se concretizar devido a uma reforma que negou o avanço do ensino musical e contrariava as suas ideias, inclusivamente a própria relevância do ensino da história. Ou seja, tanto o modo de exposição da história da música como o lamento acerca do incumprimento dos objectivos por si definidos na reforma de 1919 manter-se-ão até à sua morte. •
BRAGA SANTOS, Joly
1960 “Luís de Freitas Branco — compositor”, Arte Musical, n.º 10, Abril de 1960, pp. 297-301.
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2007 Luís de Freitas Branco, Lisboa, Editorial Caminho.
FREITAS BRANCO, Luís de
21931 Elementos de Ciências Musicais, Rio de Janeiro, Sassetti e C.ª, 1922.
1947 Tratado de Harmonia, Lisboa, Edições Sassetti.
1950 “A que vimos”, Gazeta Musical, n.º 1, 15 de Outubro de 1950, p. 1.
1953 “Há trinta anos”, Gazeta Musical, n.º 30, Março de 1953, pp. 67 e 72.
FREITAS BRANCO, Luís de & Augusto MACHADO
1923 “Secção do Conservatório Nacional de Música: Reforma do ensino”, Eco Musical, n.º 467, 15 de Julho de 1923, pp. 5-7.
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2016 “O enquadramento da disciplina de Canto no Ensino Artístico Especializado em Portugal desde o século XVIII até à actualidade”, dissertação de mestrado em Docência e Gestão da Educação, Porto, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Fernando Pessoa.
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2014 “Ensino da música em Portugal (1868-1930): Uma história de pedagogia e do imaginário musical”, tese de doutoramento em Educação, Lisboa, Instituto de Educação, Universidade de Lisboa.
PINA, Isabel
2016 “Neoclassicismo, nacionalismo e latinidade em Luís de Freitas Branco, entre as décadas de 1910 e 1930”, dissertação de mestrado em Ciências Musicais, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.
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2010 “Escola de Música do Conservatório Nacional”, Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX (Salwa Castelo-Branco dir.), vol. 4, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 415-7.
VIANA DA MOTA, José
1941 Música e músicos alemães, Coimbra, Instituto Alemão da Universidade de Coimbra.
Texto publicado na Glosa nº21, p.130-140