A entrevista teve lugar a 6 de Outubro de 2016. A Glosas agradece profundamente a Elisa Lamas ter acedido à realização desta entrevista.
Muito obrigada, Senhora Professora, por se disponibilizar a receber-nos para esta entrevista. Gostaria de lhe perguntar, em primeiro lugar, como surgiu o seu interesse pela música, em particular pelo piano e pelo ensino.
Bom, isso foi algo de muito natural, porque descendo de músicos. O meu trisavô era o compositor Francisco António Norberto dos Santos Pinto, que viveu no século xix e morreu bastante novo. Nasceu, penso, em 1815 (não tenho a certeza), e era do lado de meu Pai: bisavô de meu pai, portanto, meu trisavô. Meu avô paterno, António Lamas, era coleccionador de instrumentos antigos, instrumentista. Primeiro, tocou só violino, depois passou para a violeta, e, mais tarde, viola-de-a-mor, que era realmente um instrumento muito pouco tocado naquela época. Depois, todos na minha família – digamos, principalmente as irmãs de meu Pai – estudaram Música. Meu Avô, além de ser coleccionador de instrumentos, quando morreu estava a escrever uma história da Música: era uma pessoa realmente muito interessada. Foi um dos fundadores da Sociedade Nacional de Música de Câmara, veio a morrer ainda novo, e, poucos dias antes de morrer, tinha estado no Conservatório Nacional, a presidir a um júri, embora não fosse professor da escola. Mas convidavam pessoas que consideravam de mérito musical para presidirem a júris. Foi exactamente no Conservatório Nacional que já não se sentiu bem – deveria ter tido alguma coisa de coração – e veio a morrer pouco tempo depois. Morreu novo, com 53 anos, uma coisa assim, o que era habitual nesta época, morrer-se novo. Já Santos Pinto também morreu novo…
Quer dizer, então, que começou a aprender música muito nova.
Comecei a aprender com uma professora que era, realmente, talvez melhor na questão do solfejo. Era muito competente. Na questão do piano, não seria talvez uma pessoa com tantas possibilidades. Depois, aos 13 anos, comecei mais a sério, com o Prof. Botelho Leitão, com quem estive vários anos, mesmo depois de ir para o Conservatório, para o curso superior, que fiz com a Prof.a Maria Cristina Lino Pimentel, e ainda continuei a ser ouvida pelo Prof. Botelho Leitão. Fiz no Conservatório dois cursos. Fui aluna, em piano, de Maria Cristina Lino Pimentel e, em composição, do Prof. Croner de Vasconcellos, que foi muitíssimo importante para mim.
Também estudou na Áustria, certo?
Na Áustria estive dois Verões, com bolsa de estudo para trabalhar no Mozarteum de Salzburgo, com o Prof. Winfried Wolf. E até numa dessas estadias aconteceu uma coisa, para mim, muito agradável, que foi ter sido escolhida como única representante do Mozarteum de Salzburgo para colaborar num recital em Altbach, na Áustria.
Há alguma recordação que tenha retido como mais importante dos seus estudos no estrangeiro?
Devo dizer que ficou muito na memória o contacto com os colegas. Achei sempre muito interessante contactar com pessoas de escolas diferentes, porque não há, praticamente – a não ser que sejam do mesmo professor – não há duas pessoas com a mesma escola. E, realmente, conheci pessoas de várias nacionalidades e de vários tipos de escolas. Por isso, achei muito interessante… valoriza muito qualquer pessoa ter essa experiência. Além disso, também contactei com alunos de outros professores, porque eu trabalhei com o Prof. Wolf, mas havia ainda o Prof. Wührer, havia outros professores de piano além do professor Wolf… e gostei muito deste contacto que tive com esses vários colegas.
E que diferenças principais notou entre a vida musical em Lisboa e em Salzburgo?
É um bocadinho difícil fazer um paralelo, porque estive em Salzburgo numa altura muito especial, a altura dos festivais. Não sei exactamente se seria o clima, por assim dizer, musical, durante todo o ano. Já sabe que na altura era uma coisa especialíssima, com imensas manifestações musicais de todos os géneros, ópera, música de câmara, concertos de solistas, tudo, e juntava-se ali a nata da Europa, se não do mundo. Agora propriamente fazer o confronto de uma época especial de Salzburgo com uma época normal aqui de Lisboa é muito difícil…
É professora desde os anos cinquenta, salvo erro?…
Deixe-me cá pensar um bocadinho. Nasci em 1926, fui para o Conservatório tinha 19 anos, porque estudei particularmente e só no curso superior comecei a frequentar mesmo o Conservatório. E ainda era aluna do Conservatório, já dava lições. Portanto, foi bastante cedo, realmente…
E ainda dá aulas.
Ainda dou aulas. De piano, de formação musical e de harmonia.
Como foi adaptando, ao longo de todos estes anos, os seus métodos de ensino? Como tem lidado com as mudanças nos programas, nos currículos?
Acho que nos vamos habituando, e realmente é natural que as coisas vão mudando, é natural e útil que assim seja, não é verdade? Portanto, não tenho sentido assim nenhum contacto desagradável com essa coisa da evolução. Em princípio está tudo bem. Eu também, na escola, também me fui adaptando no decorrer dos tempos. Quando acabei de tocar, porque agora com esta idade já não toco, não tocava exactamente da mesma maneira como quando comecei, não é verdade? É sempre natural, uma pessoa vai evoluindo tecnicamente e mesmo a escola vai modificando, com o decorrer dos anos, vai modificando várias coisas.
Calculo que, ao longo da vida, tenha contactado com muitos compositores, como estávamos a falar há pouco, antes da entrevista, de quem foi professora, amiga, colega… o que recorda em específico de alguns compositores, como Freitas Branco, Ruy Coelho, Francine Benoît, por exemplo?
Com o Ruy Coelho ainda contactei. Cheguei a contactar com o Ruy Coelho, mas não quer dizer que tivesse muita intimidade, porque já sabe que eu tinha mais contacto com os professores do Conservatório. Com a Francine não, nunca contactei com a Francine. Com Luiz de Freitas Branco, quer dizer, nunca tive também, digamos, contacto. Assisti a conferências dele, mas propriamente contacto directo não tive. Contactei muito com compositores como Armando José Fernandes, Jorge Croner de Vasconcellos. Fernando Lopes-Graça nunca tive o prazer de conhecer, quer dizer, também assisti a várias conferências, mas nunca tive um contacto directo com Lopes-Graça. Houve uma época em que eu não estive em Lisboa, durante a Guerra. O meu pai era oficial e foi para a Madeira, e foi onde estivemos também durante uns três anos, pelo que aí perdi o contacto com o meio musical de Lisboa. Por exemplo, o caso de Vianna da Motta. Eu nunca conheci o Vianna da Motta; ouvi uma única vez o Vianna da Motta tocar, que foi a última vez que ele tocou, e foi com a Orquestra em São Carlos. Lembro-me muito bem… já tinha muita idade, morreu pouco tempo depois. Mas nunca contactei directamente com ele.
Enquanto pianista, chegou a tocar obras de alguns destes compositores?
Isso toquei, com certeza. Vamos lá ver, toquei do Croner de Vasconcellos, do Armando Fernandes… deixe-me pensar… não foram tantos assim. Carlos Seixas não vamos estar a dizer, é muito mais para trás, como Sousa Carvalho. Assim de outros compositores… Luiz de Freitas Branco tenho dado muito a alunos, mas nunca toquei. Lopes-Graça também já dei obras dele a alunos, mas também, por acaso, nunca toquei. Frederico de Freitas, não me lembrei de dizer Frederico de Freitas, que também conheci pessoalmente muito bem. Toquei também Luiz Costa, Filipe de Sousa, António Fragoso e Rey Colaço. E Joly Braga Santos, que foi uma pessoa com quem me dei até bastante, porque era mesmo da minha geração!
E chegou a estrear algumas destas obras?
De Filipe de Sousa toquei uma primeira audição, mas não recordo já de que obra.
Relativamente à música de compositores portugueses, o que pensa da presença, ou da ausência, das obras portuguesas no meio musical nacional, seja em concertos, seja nos programas oficiais de conservatórios, escolas de música?
Acho que são menos tocadas do que deviam. Lembro-me de uma organização de concertos, a Pró-Arte, que realmente era para apresentar na província concertos regulares com artistas nacionais, e que fazia questão de que fosse incluída no programa uma obra de autor português, o que acho que fazia todo o sentido. Tanto fazia se fosse um compositor do século xvii, xviii, xix ou xx: quer dizer, uma obra de um compositor português.
E há alguma coisa que deveria mudar em relação a esta maior inserção de música portuguesa?
Sim, acho, acho que havia toda a vantagem, porque realmente há obras muito, muito meritórias de compositores portugueses, e que era natural serem dadas a ouvir.
Na Sebenta de harmonia com vista à realização do baixo cifrado, que tanto serviu a muitas gerações de estudantes, a Senhora Professora é referida como “uma das mais distintas professoras do Conservatório Nacional.” Como se sente tendo em vista esta descrição?
Ai, isso eu acho bocadinho de exagero…! Não, acho que, de todo, isso não estará muito exacto. Sou uma das professoras que realmente estiveram no Conservatório Nacional ainda bastantes anos, muito empenhada, gostando muito de fazer o que fazia, porque sempre gostei muito de ensinar. Agora, acho que não vem muito a propósito essa frase. Quer dizer, gosto de ouvir – é muito agradável – mas não acho que seja muito justo.
Já quase no final, pergunto-lhe se há outras memórias que gostasse de partilhar connosco.
De repente, nada… realmente, depois de acabar o curso, o Conservatório, tive a ocasião de tocar muito pelo País todo, principalmente nos concertos da Pró-Arte. Toquei com orquestra, toquei com a Orquestra do São Carlos, toquei com a Orquestra do Teatro São Luiz, toquei como solista, com orquestra na televisão, e ainda dei vários recitais, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa: tudo isto em Lisboa. E na província, como já disse, toquei em imensas localidades, não só cidades, como algumas vilas mais desenvolvidas e que tinham também concertos regulares, durante o ano. Deixe ver se me lembro de mais alguma coisa… já disse que ensino formação musical, piano e composição, as três coisas, e no Conservatório fui professora das três. Fiz parte da direcção dos concertos Pró-Arte, fiz parte de uma direcção artística, digamos assim, dos cursos de Verão da Costa do Estoril, na altura chamados da Costa do Sol, fiz parte da direcção da Orquestra Filarmónica de Lisboa, do júri de piano do concurso de Torres Vedras… dei muitos cursos, na província, para professores, de várias coisas, principalmente de formação musical, mas também de Harmonia. Dei cursos na província e nas ilhas, na Madeira e nos Açores, cursos para professores. Por exemplo, em Penafirme, que eram cursos internacionais para professores, dei de formação musical. Eram cursos de Verão, mas estive talvez três verões seguidos, uma coisa assim. Sempre fui professora em Lisboa, mas nesses cursos fui professora, por exemplo, em Coimbra, na Vila da Feira, no Funchal, em Ponta Delgada. Também dei cursos noutros lugares, mas agora não me lembro…
Teve uma carreira enorme, que, aliás, ainda tem.
Agora tocar, naturalmente que já não toco, mas ainda ensino. Eu gosto muito de ensinar!
Também é compositora, e isso é sempre interessante.
Não sou compositora. Quer dizer, estudei composição e apresentei peças minhas em audições escolares de composição, mas não sou propriamente uma compositora. Estudei composição, até porque me parecia um complemento importante para o piano, seria interessante para também estudar. Como obrigação, só havia o terceiro ano do curso geral de composição, e eu fiz depois o segundo superior e depois o quarto superior, portanto fiquei com o curso completo de composição, de que não precisaria para o curso de piano. Fiz, assim, os dois cursos no Conservatório, os dois cursos superiores. Comecei por achar que tinha interesse, além da Harmonia, que era o terceiro ano geral de Composição, fazer mais qualquer coisa, que era Contraponto e Fuga, e depois fiz Sonata e Orquestração, e era o final do curso de Composição. Eram quatro anos superiores.
Para terminar, gostava de lhe perguntar algumas escolhas para uma estadia numa ilha deserta. Imaginando que levava um livro, que livro levaria?
Olhe, levaria um livro que realmente ficou sempre na minha memória, um livro que eu li talvez pelos 13 anos, que era Nos actes nous suivent de Paul Bourget, e que me ficou para sempre. Depois, um livro português, levaria Os Maias, de Eça de Queiroz.
E se pudesse levar uma pintura?
Talvez Boticcelli.
Uma partitura?
Uma partitura: Bach. Qualquer Bach, as Variações Goldberg, a Paixão Segundo São Mateus, o Cravo Bem Temperado, qualquer partitura de Bach…
E algum disco?
Levaria qualquer disco da Maria João Pires.
E que outras coisas levaria para a ilha?
Isso é um bocadinho difícil, porque, sendo a ilha deserta, precisava de levar tudo para viver lá! Por isso é um bocadinho difícil estar a dizer “levo isto”, não é? Realmente, para uma ilha deserta, que não tem nada, seria preciso levar muita coisa. [risos]
Com certeza, Senhora Professora! Pela nossa parte, agradecemos-lhe imenso por se ter disponibilizado para esta entrevista!
Não tem nada que agradecer!
Texto publicado na Glosa nº 17, p. 56-59.
Fotografia: Tatiana Bina