Vimos, então, que a música do século XVIII busca, sob o influxo dos espaços cênicos, a princípio timidamente, um novo equacionamento do enunciado dramático, até desenvolver amplamente, no classicismo pleno, as potencialidades da estrutura dramática do discurso. O classicismo serviu-se de diversos instrumentos significativos para a consecução desse projeto. Ele próprio é o produto da introdução e prática dessas inovações, no mais das vezes insólitas, que brotam no bojo do estilo barroco para solucionar problemas que o próprio barroco se propõe e que sorrateiramente vão-se revelando, insurgindo-se afinal contra as suas próprias configurações.
Um desses instrumentos é a simetria. A solução dos problemas de simetria é pré-requisito indispensável para o projeto de dramatização em nível estrutural e sintático. Esse instrumento foi elaborado pelo chamado estilo galante ou, segundo a terminologia que adotam alguns, rococó. A expressão rococó é mais afeta às artes visuais e decorativas (penso que a expressão “artes visuais” é bem mais apropriada, contemporaneamente, do que “artes plásticas”, pois há novos recursos, como a holografia, que não são propriamente plásticos). E cabe aqui uma reflexão sobre a afirmação de Rosen de que nas artes visuais o rococó tenderia para o assimétrico; os especialistas o dirão. Mas é o mesmo Rosen que sustenta que o estilo galante em música “tornou realidade a concentração dramática do estilo clássico” (p. 77). E a simetria não se resume na mera repetição ou recapitulação.
Citemos, ainda, as técnicas de expansão e intensificação consubstanciadas na obra de Heinrich Christoph Koch (1749-1816): Versuch einer Anleitung zur komposition (Tentativa de uma orientação para a composição), de 1782, e já praticada, desde a década anterior, por Joseph Haydn, o grande inovador do período. Essas técnicas de expansão das seções melódicas são detalhadas por Koch a partir de três parâmetros: 1) a repetição; 2) a cadência multiplicada; 3) a expansão a partir do centro da frase. Essa técnica estabelece períodos principais que não são senão seções longas que impõem uma cadência forte ao final. Sobre tais períodos principais trata-se de: 1.º) impor o tema principal; 2.º) modular; 3.º) introduzir uma melodia subsidiária; 4.º) concluir. A expansão, na música, é uma categoria de desenvolvimento temporal. Nas artes visuais é absorvida pelo que poderíamos chamar de composição espacial do campo visual. A expansão, no barroco, funda-se na melodia permanente, na sua extensão de unidade e continuidade emocional monolítica, ritmicamente uniforme e homogênea. O classicismo implanta seus esquemas de expansão incrementando a polaridade tônica-dominante, forma simples e elementar, que abre caminho para o desenvolvimento estribado em tonalidades mais afastadas. O sistema do temperamento, implantado a partir do princípio do século XVIII, o viabilizará.
E a implantação da dominante processa-se como instauração de uma nova tônica com as implicações de tensão que isso representava. Da mesma forma, a exposição, numa forma de sonata, prevê um caminhamento de tônica para dominante e a recapitulação ou reexposição implanta o caminhamento de dominante para tônica resultando em relaxamento na grande estrutura, em nível do longo discurso e não da mera contiguidade sintagmática de acordes, passagens ou sequências. Isto vai permitir ao classicismo musical a efetivação do projeto dramático em um nível retórico extremamente sofisticado, variado, e que oferece um campo infinito de opções com o que podemos chamar de descontinuidade emocional, suscitando ao compositor uma gama riquíssima de alternativas de moldagem do material escolhido para a composição — quais sejam os temas. Disso resulta forjar-se a melodia articulada de quatro compassos, ou seja, a frase-período, célula mãe a partir da qual o estilo clássico vai construir toda a sua trama dramática fundada na destruição das continuidades barrocas; tal como as texturas rítmicas homogêneas e uniformes, a permanência temática, as melodias longas que serão retomadas posteriormente pelas melodias-tema de canção de gosto do romantismo schubertiano, e subsidiariamente, as agora ingênuas antifonias solo-tutti e sobretudo o abandono gradual da sequência, da harmonia sequencial e do baixo cifrado.
A superação da harmonia sequencial mereceria um capítulo à parte. Ela constitui a essência do barroco musical e, não fossem as demais características de que vimos falando, a privilegiar apenas a sequência e a harmonia sequencial, boa parte da produção musical do período colonial brasileiro poderia ser denominada de barroca. Ambas brotam espontaneamente do discurso barroco que não conhece outra modalidade de incremento, de expansão da morfologia; elas constituem a sua forma adequada de sintaxe, uma sintaxe que não conhece clímax definido, e cuja tensão é difusa, não localizada. Por isso o barroco vai utilizar a sequência, a frase repetida num outro grau, num outro tom, por imitação, como forma de manutenção de tensão e como forma de expansão da morfologia e como técnica de expansão da sintaxe musical.
O trabalho haydniano sobre os temas-períodos e as melodias articuladas de quatro compassos vai minar o discurso barroco, fundando perspectivas novas de desenvolvimento temático e de reinterpretação frasística. E o faz através da técnica de manipulação da integração contextual das frases, da exploração da própria sequência barroca, não mais para incrementar a tensão e sim para obter distensões com as quais podia distribuir ardilosamente novos e inesperados efeitos dramáticos.
Enquanto o barroco cultua, cultiva e utiliza os ornamentos pesados e superdimensionados, o estilo galante que precede o classicismo transforma-os em leveza que o classicismo vai depurar ainda mais. E, sobretudo, vai gradualmente rejeitar da prática musical o hábito, agora inconveniente, de delegar ao executante a interpretação das configurações ornamentais, reservando para o compositor a tarefa de escrever explicitamente os ornamentos. E o faz porque o discurso dramático estrutural, contextual, concebido para a longa duração, não pode padecer os caprichos daqueles excessos; eles afogariam e desarticulariam a frase articulada de quatro compassos.
Por fim, o baixo contínuo, figura barroca por excelência, persiste no contexto da música religiosa até princípios do século XIX. Não só no Brasil, onde se faz presente na obra dos grandes compositores formados no século XVIII. Citemos, dentre outros, Lobo de Mesquita, André da Silva Gomes e o padre José Maurício, por ordem de nascimento, 1746, 1752 e 1767. O baixo contínuo resulta da polaridade entre as vozes agudas e graves, as vozes extremas. Entre elas se estabelece certa tensão. As vozes intermediárias serão concebidas como recheio. A predominância das vozes extremas emancipou o acorde e a harmonia em detrimento do contraponto imitativo do renascimento. No barroco, a composição passa a escorar-se no baixo como um “fundamento”, gerando o que Bukofzer chama “a homofonia barroca do contínuo”. A articulação da frase-período de quatro compassos do classicismo torna a melodia independente de qualquer acompanhamento, a ponto de Haydn aconselhar aos que duvidavam da beleza de um tema, que o cantassem sem nenhum acompanhamento. É o atestado de óbito do baixo contínuo.
Alguns fatores são agentes dessas transformações, articulados conjuntural e estruturalmente, na curta e na longa duração, com estímulos recíprocos, e que enumeramos sem preocupação por ordená-los na relação de causa e efeito. Vários autores, além de Rosen, são fontes para o exame destes elementos: Combarieu, Blume, Godechot, Chaunu, Barbaud, Sisman e Oliver Strunk. Um fator primordial é o crescimento da população da Europa ocidental a partir de 1730. Para o Brasil, Affonso Ávila (Resíduos seiscentistas em Minas, 1967), recorrendo a Calógeras, nos fornece dados significativos: Rio de Janeiro, 1762, 30.000 habitantes. Salvador, 1797, 50.000. A grande Vila Rica no final do século: 100.000. A Capitania de Minas Gerais, 500.000. Em 1770, Nova York, 160.000. O Estado da Virgínia, o mais populoso, 450.000. O período do classicismo musical corresponde à emancipação gradual das classes médias. O artista já pode apresentar-se diante de um público, remunerando-se por isso. Surgem os concertos regulares, por subscrição, somando-se aos de academia, aos concertos espirituais, aos dos collegia musicae, e à grande atração, a ópera, a nova ópera. Além do crescimento demográfico, a expansão acentuada dos leitores-escritores promove a expansão do nível de difusão da coisa escrita que, no dizer de Chaunu, o historiador, atingiria 40% da população no final do século. A própria revolução industrial coincide com a ultrapassagem desse limiar. O lar do cidadão da classe média constitui-se num centro de cultivo da música em suas diversas modalidades. No período barroco, o círculo social que mantém o músico, a igreja, a corte e a municipalidade, compõe sua audiência natural. No classicismo, o músico começa a emancipar-se. Haydn e Mozart foram os primeiros. Surge e se desenvolve a crítica musical periódica, interpretativa e orientadora, e especialmente as editoras musicais (Schott, Pleyel, Breitkopf, e outras), com a tímida prática dos direitos autorais. A proliferação dos concertos acompanha a multiplicação das orquestras e a explosão demográfica, a econômica, consequência do desenvolvimento do saber científico. A expansão da rede editorial na Europa ocidental foi marcante para formar-se um estilo universal, síntese dos três estilos: o italiano, com poder expressivo, sensualidade, cantante, e rico de inspiração; o francês, com vivacidade de ritmo, elegância, acessível; o alemão, de sólido artesanato composicional e de virtuosismo instrumental. Haydn afirmava que sua linguagem era entendida por todo o mundo.
Essa universalidade do estilo clássico ofereceu, talvez pela primeira e única vez na História da Música, condições ideais de absorção da produção dos artistas-compositores que não conheciam o abismo entre o que faziam e o que o público apreciava. Daí a produtividade excepcional desses compositores. Nossos autores do período colonial conheceram, mutatis mutandis, uma situação bastante semelhante. Já nos referimos à produção maciça dos mais destacados. Esboçado para a Europa ocidental, trata-se de refletir sobre o nexo desse panorama para uma extensão daquele conjunto de elementos no Novo Mundo, no Brasil Colonial. Essa é uma tarefa para outra oportunidade.
Este texto foi apresentado como palestra no Festival de Inverno de Ouro Preto e no Departamento de Música da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), sob a idealização e coordenação de Edilson de Lima, em 15 de julho 2014.
Bibliografia:
Bukofzer, Manfred. Music in the Baroque Era, 1947.
Duprat, Régis. Música e Mito. Barroco no período colonial. ArteUnesp, São Paulo, 1990, 6: 61-67. º
Gomes Jr., Guilherme Simões. Palavra Peregrina, O barroco e o pensamento sobre artes e letras no Brasil.
Machado, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. São Paulo, Perspectiva, 1969.
Rosen, Charles. The Classical Style. New York, Faber, 1977 (1971).
Texto publicado na Glosas n.º 15, p. 51-53.
Imagem: Ouro Preto, Pedro Vilela/MTur
