A vastíssima obra de Cândido Lima – como, aliás, a de grande parte dos compositores portugueses, sobretudo os da sua geração – não tem paralelo na frequência com que é programada. Num país tão pequeno como o nosso (“pequeno mas comprido”, como costuma ironizar António Pinho Vargas), é sobretudo no Norte que as poucas execuções, encomendas e estreias de obras do compositor costumam acontecer. Portugal tem sido quase somente Lisboa, e a separação Sul-Norte, no caso de alguns artistas, parece uma maldição destinada a perdurar. A ocasião quase única de escutar as obras de maior fôlego do compositor (orquestrais, ou tocadas pelo ensemble que ele próprio criou entre 1973 e 1974, o Grupo Música Nova) aconteceu, assim, durante vários anos, nos Encontros de Música Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian – entretanto extintos, o que veio fechar uma das pouquíssimas portas que ainda se encontravam abertas com alguma regularidade.
Uma notável excepção a este lamentável estado de coisas reside precisamente no género musical que aqui nos irá ocupar: a música que Cândido Lima tem escrito, desde 1960, destinada às crianças e jovens (iniciando-se a série com os Três estudos para jovens, para piano). Este género musical, ligado de forma inevitável à educação (embora possa perfeitamente viver independentemente desta), é também dos poucos que têm atraído a edição, outro flagelo (pela sua falta) que tem assolado o meio musical erudito nacional desde há décadas e que somente nos últimos anos tem começado a ser resolvido com o aparecimento de várias editoras que, graças aos modernos e sofisticados softwares musicais, têm vindo a afirmar-se no mercado, embora sempre lutando contra dificuldades de toda a ordem. As quinze Canções para a Juventude (canto ou coro e piano, 1967), por exemplo, foram publicadas em 2000 pelo Instituto da Educação da Universidade do Minho (ed. Elisa Lessa), e a pequena peça para piano Juego del Sol (1995) saiu numa colectânea de vários compositores intitulada Album de Colien – Musica Española y Portuguesa del Siglo XX: Obras Breves para Piano (ed. Cecilia Colien Honneger, Barcelona, 1996). Algumas outras, poucas, encontram-se disponíveis em-linha no CIMP (www.mic.pt) e podem ser descarregadas livremente.
A variedade de linguagens, géneros e meios instrumentais e vocais que se encontra na restante produção de Cândido Lima também é notável na música destinada a crianças e jovens: do piano a duas, quatro ou até oito mãos (instrumento de eleição do compositor, através da sua formação de organista e da constante aparição como pianista na sua própria música, e um dos mais frequentes na sua produção neste contexto), até à instrumentação livre, passando pela voz, por grupos de câmara e pela orquestra sinfónica, do tonalismo e modalismo das Canções para a Juventude e da Suíte Infantil até ao sonorismo peculiar de Juego del Sol e às complexidades texturais de Polifonias de notre mer: Minho I e Madrigal blue: Minho II, as obras escritas neste género, ou destinadas a este fim, revelam quer a evolução do compositor em paralelo com as restantes obras do seu catálogo, quer a abrangência de influências que também naqueloutro é notável, e quase única na música portuguesa actual (do modalismo medievalizante e arcaizante de raiz popular até Xenakis, Debussy, músicas extra-europeias, a recordação da experiência africana, o Minho e as suas gentes, sons e cores, a religiosidade bracarense e os estudos de órgão, Paris, a informática e a electroacústica, Messiaen…). Estas influências, díspares umas, outras nem tanto assim, filtradas pela sensibilidade refinada do compositor, desabrocham numa arte requintada, imediatamente reconhecível de pessoal que é, e inevitavelmente, complexa. É em parte esta complexidade, que na música para crianças não desdenha fazer a sua aparição, que torna certos intérpretes mais reticentes e certos maestros e orquestras temerosos de abordarem estas obras redoutables. A complexidade a que me refiro não é somente técnica (dificuldades rítmicas, de notação, etc.), mas também estética (pouca familiaridade com a música de hoje) e, sobretudo, mental: exige do intérprete, principalmente dos mais jovens, uma maturidade e uma dedicação ao destrinçar do percurso – porque não dizê-lo – emocional e intelectual das obras, tarefa que exige, para além da maturidade e dedicação referidas, capacidade de empatia perante o desconhecido. E todos sabemos como o ouvido é um órgão preguiçoso, e como a vida moderna, sobretudo a das crianças e dos jovens de hoje, não se presta ao natural fluir do tempo, especialmente o psicológico.
Porém – e é essa, na minha opinião, uma das alegrias de trabalhar com jovens –, não obstante as exigências acima mencionadas, constato que é precisamente por eles que muitas vezes esta música é mais bem entendida e interpretada. O vigor com que as obras orquestrais (…do mar da Póvoa – MANTA, Polifonias de notre mer: Minho I e Madrigal blue: Minho II – as duas últimas escritas por encomenda de escolas de música de nível secundário) foram tocadas suplantou em muito quer as dificuldades inerentes às respectivas partituras, quer a inexperiência inevitável num grupo orquestral desta natureza. Qualquer uma destas peças desmente imediatamente a ideia feita de que a música contemporânea mais “radical”, digamos, coloca entraves à interpretação e à fruição. As crianças e jovens são o reflexo das próprias inibições e preconceitos criados, antes de mais, pelos adultos que as educam, e quando nalgumas escolas os adultos responsáveis têm uma atitude aberta a novas experiências, ninguém melhor do que as crianças e os jovens para abraçar a novidade, ao fim e ao cabo apanágio dos anos de imaturidade e qualidade que, infelizmente, se vai perdendo com o passar dos anos. Felizmente para Cândido Lima, algumas escolas e instituições do Norte (muitíssimo mais do que em Lisboa) têm estado abertas a programar e até a encomendar obras desta natureza – escolas como a ARTAVE, a Academia de Música de Viana do Castelo ou o Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim.
A mais importante (e ainda hoje a mais interpretada) e extensa obra para crianças de Cândido Lima dos seus primeiros tempos de compositor é, sem dúvida, o já referido álbum Canções para a Juventude (1964-1967: quinze canções para canto e piano, normalmente executadas por coro de crianças ao invés de solistas vocais). Ainda que, também para o seu autor, obras de alguma juventude (contava na altura vinte e oito anos), estas canções revelam, na sua edição moderna (levada a cabo somente trinta e três anos depois de escritas), e pelas próprias palavras do compositor, como foi o reflexo feliz de uma vivência querida:
Memórias de uma ilha
«[…] Era professor de música, ao abrir da manhã, de jovens dos doze aos dezanove anos de idade, na Escola de Regentes do Posto de Bolama. […] Dos livros levados comigo da Europa (da Metrópole, dizia-se…), não havia canções de escola (algumas na “bíblia” de Fernando Pessoa que levara comigo). Precisava de as encontrar rapidamente. Um livro nas mãos de um soldado africano serviu de fonte. “Deixas-me ver esse livro?”… “Podes emprestar-mo por um ou dois dias?” Era o livro da 3.a classe (da minha 3.a classe!). Assim nasceram, de um só fôlego, estas canções puramente vocais, escritas fora das horas de serviço militar, e de um só fôlego também, ao longo de cinco dias, meses depois, o acompanhamento de piano. Vêm de tempos pré-africanos (bracarenses e lisboetas), de músicas “modernistas” e de influências expressionista e impressionista (Bartók), Prokofiev, Stravinsky, Berg, Debussy, Ravel…). São da mesma época de (quem diria!) Paúis / Impressões do Crepúsculo, [a partir de] poema de Fernando Pessoa, para voz, violino e piano (um mundo “berguiano” e “bouleziano”!), concebida ao crepúsculo, no cais, e escrita no canal (ao longo do canal!) no mesmo tempo e lugar destas canções! […]»
Não resisti a citar aqui parte do prefácio escrito por Cândido Lima para a edição em partitura destas canções, pois quem melhor do que o autor para nos esclarecer sobre as circunstâncias em que estas obras nasceram? De uma das notas de rodapé a este texto afigura-se-me necessário salientar que o compositor intitulou o álbum Canções para a Juventude e não Canções para Crianças porque «[há] canções que estão para além delas [das crianças]: A Vida, Santa Luzia… […] Como os poemas de Pessoa, também Santa Luzia, de Sebastião da Gama e Canção da Felicidade, de António Nobre, não estavam incluídos no livro escolar citado.»
É interessante notar que o impulso para escrever estas quinze canções proveio da própria necessidade de encontrar repertório adequado para as crianças que leccionava1, factor não despiciendo e que se encontra na base de muitas outras obras deste género de muitos outros autores, quer em Portugal, quer no estrangeiro. Quer reagindo à falta de repertório de que necessitam, quer à falta de qualidade que observam no que às crianças e jovens concerne, muitos compositores têm efectivamente optado por preencher, eles próprios, essas lacunas (Lopes-Graça e a sua Menina do Mar – aliás, praticamente todas as restantes obras para crianças que escreveu se deveram a um impulso pessoal e não a uma encomenda vinda do exterior2).
Não obstante o papel de relevo que as Canções para a Juventude têm tido na formação musical e no repertório de coros de crianças em Portugal, estão, porém, longe de constituir o legado mais importante de um catálogo que se enriquece continuamente com novas obras para crianças e jovens, inclusive porque representam ainda os primeiros tacteios numa linguagem tonal ou modal ainda bastante convencional que pouco ou nada representa o compositor na sua maturidade.
Sem espaço para comentarmos em profundidade todas as obras que Cândido Lima dedicou à infância e à juventude, e antes de o fazer em maior detalhe para algumas obras recentes, gostaria de mencionar as Miniaturas, grupo de quatro peças escritas em 1969 (original para flauta, oboé e violino, com transcrições para violino e guitarra, e clarinete, violino e piano).
Na sua versão original ostentam a dedicatória “Para a Lígia3, dias antes de nascer”, revelando assim a parte afectiva que tantas vezes está também ligada à música para crianças. Todas estas miniaturas são recomposições ou adaptações do mesmo material, técnica que Cândido Lima levará ao extremo num obra recente da qual falaremos mais tarde (Cadernos de Invenções), e a linguagem musical, apenas dois anos após as Canções para a Juventude, é notavelmente diferente. A brevidade e concisão da escrita, o uso do silêncio, a harmonia dissonante e o uso de técnicas expandidas ou menos usuais (glissandi, ruídos de chaves, harmónicos, etc.) denotam a influência da música de vanguarda europeia desses anos, embora Cândido Lima mantenha sempre presente a sua assinatura, nomeadamente um característico sabor modal e a continuidade melódica, elemento esse tão ligado a um “modalismo universal” (que se encontra na base da música popular de quase todo o planeta) que o compositor, tal como Xenakis, seu mentor e referência principal, nunca abandonará, e isto mesmo nas suas obras mais radicais. Devo também referir que as Miniaturas, pelo seu grau de dificuldade (nomeadamente para as cordas friccionadas), e ao contrário da parte vocal das canções, se destinam a jovens já com bastante experiência instrumental, e não a crianças ou principiantes.
O piano, como referimos, tem feito parte da carreira musical de Cândido Lima de forma contínua, e não admira que a ele tenha dedicado um número apreciável de obras para crianças e jovens. Para além dos já citados Três Estudos para Jovens (1960), existem a Suíte Infantil (1963), para piano a quatro mãos, as Contradanças (1971) para dois pianos a oito mãos, adaptadas mais tarde (e especificamente) para crianças numa versão para piano solo, as Variações à volta do Sol (2011) e, finalmente, a adaptação, em 2011, das Canções para a Juventude, também para piano4. De todas estas obras, e pese embora o interesse e qualidade de todas elas, a que se me afigura mais relevante, quer pelas circunstâncias em que nasceu, quer pela diversidade de abordagens face a um mesmo parco material de base (cinco notas apenas, correspondentes a cinco letras do alfabeto) é, ou, neste caso, são, as Variações à volta do Sol. Remeto os leitores, mais uma vez, e pelas mesmas razões, para o texto introdutório do compositor:
Diálogo
«A professora disse para pedir ao avô para escrever uma música para mim. Seria eu a primeira pessoa a tocá-la!” […] Fiquei a pensar, e decidi que, por elas e pelo belo gesto da professora, devia fazer uma peça expressamente para a Carolina. No dia seguinte, num guardanapo do Café Peninsular, escrevi os dois temas principais da peça. No início da tarde, já em casa, compus a música durante uma hora. Toquei-a, à noite, por telefone, quatro vezes, para a mãe, para a Carolina, para a Leonor e para o pai, por esta ordem.
Perguntei, a seguir, à Carolina, que título achava que a música devia ter. Respondeu que a “música lhe fazia lembrar um dia feliz, cheio de sol e calor”. Fiz a mesma pergunta à irmã Leonor que, num misto de humor e de sério, propôs o título de FÁ-MI-LÁ, porque significava, para ela, família. Expliquei depois que a peça se baseava nas letras da escala da música anglo-saxónica: C (dó), A (lá), G (sol), E (mi) e o I (si, que eu “inventei” para os “is”…), assim, letras dos quatro nomes da família, procedimento de tantos compositores ao longo da história da música: Bach, Schuman, Alban Berg, Xenakis, Boulez, Ligeti, Pascal Dusapin, entre outros.
Passados dois dias, pensei que a Leonor-pianista merecia também uma música escrita de propósito para ela […]. Assim nasceram estes dois momentos de ternura e sorriso que poderão ser, também, na sua simplicidade, objecto de técnicas de análise e de discussões teóricas. […]»
Embora dedicadas a crianças, apenas as quatro primeiras e oitava variações me parecem acessíveis aos primeiros graus, sendo as restantes somente possíveis nas mãos de pianistas de nível médio, crianças ou jovens.
Como se todos estes trabalhos não fossem já suficientes para assegurar um lugar de destaque do compositor na História da Música para crianças e jovens escrita em Portugal, Cândido Lima lançou-se nos últimos anos num trabalho ímpar: uma wagneriana (e “calderiana”, assim também a poderíamos apodar) colecção de oitocentas e cinquenta pequenas peças distribuídas em três séries (A, B, C), para todos os instrumentos – em solos ou em ensembles, incluindo a voz e os meios electroacústicos – normalmente disponíveis nas escolas. Intitula-se Cadernos de Invenções e tem como subtítulo Sons para descobrir / Títulos para inventar. A partir de apenas três melodias originais (A, B, C), o compositor distribui o seu material ora de forma rigorosa ora de forma livre, tendo em atenção os diversos parâmetros musicais, incluindo aqueles em rigor nada ou quase nada explorados no ensino académico, como o timbre ou a textura5.
Assim, e como contraponto feliz às linhas de abertura, deixo aqui uma notícia auspiciosa: os Cadernos de Invenções, terminados em 2011, estão agora disponíveis para todas as escolas portuguesas e, assim o esperamos, para as do resto do mundo onde o espírito de descoberta prevaleça sobre as rotinas tantas vezes solidamente arreigadas no ensino artístico.
Notas
1 Será de referir que Cândido Lima foi, pouco depois (1968), nomeado Presidente da Juventude Musical de Braga (data do seu regresso da Guiné), e nesse cargo se manteve até 1974, ano em passou a viver no Porto.
2 Cândido Lima observa, em A Invenção dos Sons (Caminho, 1999, p. 168) que, em geral, quase todas as suas obras são “uma encomenda de mim próprio”…
3 Filha do compositor.
4 Nesta versão são usadas as dezasseis melodias originais, enquanto na original apenas quinze foram harmonizadas com a parte de piano.
5 Por razões de espaço editorial, e porque neste número da glosas os editores desta obra também contribuem com um artigo que lhe é exclusivamente dedicado, acordámos que àquele seria reservada toda a informação mais detalhada.
Não podia, porém, deixar de mencionar esta importantíssima obra no contexto da minha panorâmica da obra para crianças e jovens de Cândido Lima.
Fotografia: © Fernando Rocha.
Artigo publicado na Glosas nº 10, p. 24-26.