Entrevista realizada em Setembro de 2021 por A. Baião-Pinto. Fotografias de Jennifer Lima Pais. Assistência de pós-produção de António de Saldanha.

Leonor de Lucena Sibertin-Blanc nasceu em Viena, Áustria, corria o ano de 1937. Nessa Europa de “entre guerras” iniciavam-se uma vida e um percurso verdadeiramente indissociáveis do fenómeno musical, tanto pelo contexto como pela convivência. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, prosseguiu na academia concluindo o seu mestrado em Literaturas Comparadas Portuguesa e Francesa, na Universidade Nova de Lisboa. Tendo passado grande parte da sua juventude além-fronteiras, foi em Roma que iniciou os seus estudos de língua italiana, tendo depois sido bolseira do Instituto Italiano de Cultura, na Università degli Studi di Firenze. Apaixonada por canto lírico, leccionou, durante largos anos, a cadeira do Curso de Italiano na Escola de Música do Conservatório Nacional, em Lisboa, reformando-se em 2007. Dois anos volvidos, eternizou o seu trabalho ao editar o Dicionário do Cantor Lírico (Italiano-Português). Ao longo da sua vida, conheceu (e conviveu com) diversas personalidades, nacionais e internacionais, da história da música recente, testemunhando, desse modo, as mais variadas alterações na vivência artística e musical da última metade do século XX. Foi na sua casa de Lisboa, repleta de tantas memórias, que aceitou dar esta entrevista.

A sua infância foi repleta de memórias musicais, como aliás toda a sua vida. Recorda-se desse primeiro contacto com a música? Sim, repleta de muitas e boas memória… e muita música. Recordo-me de, com três ou quatro anos, juntamente com o meu irmão João Manuel, pouco mais velho, estarmos os dois debaixo do piano da nossa mãe — passávamos horas e horas a ouvi-la tocar. Mas não podíamos falar os dois e, por vezes, adormecíamos ali mesmo. Ao mínimo barulho, a mãe punha-nos dali para fora. Acabávamos por decorar as músicas, sem saber o que eram, mas até nos apercebíamos quando a mãe se enganava! Muitas vezes, estávamos à espera desse momento… A sua Mãe, Florinda Santos, pianista cujo legado se perpetuou através de um concurso organizado pela Academia de Música de São João da Madeira, desde 1994, foi aluna de grandes nomes como Marcos Garin, Tomás Borba, Luiz de Freitas Branco… Conte-nos um pouco sobre forma como acompanhou a sua carreira… Em Portugal, na Academia dos Amadores de Música, foi aluna de piano do professor Marcos Garin, teria seis ou sete anos. Numa das vezes em que mãe tocou, por volta desses anos, o António Fragoso estava presente, pegou-a ao colo e disse — “Esta é a minha melhor intérprete!”… A mãe contava sempre isto, quase com as lágrimas nos olhos… E depois prosseguiu os estudos, mas já no Conservatório, onde estudou composição com Tomás Borba e estética musical com Freitas Branco. No final, completou o curso com vinte valores, o que, à época, não era de todo habitual. Por essa altura, ganhou o Prémio Beethoven e o Prémio de Piano do Conservatório de Lisboa, aos vinte e dois anos, e, após ter realizado provas públicas, foi admitida como professora, lá no Conservatório. Algum tempo depois, por meio do Instituto para a Alta Cultura, a mãe conseguiu uma bolsa para continuar os seus estudos, primeiro em Paris com Alfred Cortot, e depois em Viena com Von Sauer. Por essa altura deu bastantes recitais; pelo meio, regressou a Lisboa uns tempos, regressou ao Conservatório, mas na questão do casamento com o meu pai pairava uma dúvida — a mãe costumava dizer que tinha duas paixões, uma era o piano e outra o meu pai… Acabou por casar com os dois, e casou bem! Nunca deixou o piano e o meu pai incentivou-a sempre! A mãe dedicou-se muito à Academia de São João da Madeira, especialmente depois da morte de um dos meus irmãos. No início dos anos noventa, criou-se o concurso que começou por ser interno, depois regional, nacional e por fim internacional. Infelizmente, nos últimos anos em que se realizou, o objectivo ficou comprometido, os programas foram alterados e acabou por se desvirtuar. Pessoalmente, dá-me alguma tristeza; afinal de contas, o concurso durou mais de vinte anos… Quando a mãe morreu, tinha deixado o piano, que era um Bechstein, à Juventude Musical Portuguesa. Acontece que essa instituição estava com imensos problemas e não tinha espaço para o piano, pelo que se decidiu ceder o piano à Academia de São João da Madeira.O seu pai, João de Lucena, era diplomata, facto que, certamente, proporcionou várias oportunidades e viagens na sua juventude. Seguramente teve a possibilidade de contactar com realidades muito distantes da que se vivia em Portugal… Na altura, a carreira começava pela via consular. E viajavam muito, como era natural; tanto assim era, que eu acabei por nascer em Viena. Em todo o caso, independentemente do posto do meu pai, estudei sempre nos liceus franceses — e “batas” era algo que não existia lá fora, pelo menos em Roma, onde o liceu estava instalado na casa do Chateaubriand! Hoje em dia, até as vejo com bons olhos, não é muito democrático as crianças irem para a escola mostrar as toilettes… Logo a seguir, mudámo-nos para Londres, onde frequentei o actual liceu Charles de Gaulle, que naquele tempo tinha outro nome. Entre as nomeações para os vários postos, o meu pai era quase sempre chamado a Lisboa, durante alguns meses, de maneira que eu confrontei sempre essas duas realidades. Imagino que tenha sido uma educação acompanhada de estudos musicais? Muito poucos, tanto eu como os meus irmãos… Na realidade, andávamos sempre a saltar de um sítio para o outro, pelo que era difícil ter seguimento, e a mãe não tinha paciência para nos ensinar, embora tenha experimentado. Na realidade, gostava de ensinar, mas alunos mais avançados. Por exemplo, quando estivemos na Índia, seria quase impossível, naquele tempo, arranjar um professor de música. Ainda tivemos uma professora em Lisboa e outra em Barcelona mas, a partir daí, o projecto foi abandonado. Os tempos que passámos na Índia foram muito especiais — tinha acabado de se tornar independente dos ingleses, embora eu e os meus irmãos tenhamos lá vivido apenas quinze meses, e regressado por causa dos estudos. Na altura foi uma novidade, um mundo completamente diferente daquele em que tínhamos crescido. Era uma época muito diferente daquela em que vivemos. As artes, a música e a novidade passavam muito por contextos mais pequenos, através de convívios particulares, soirées e pequenos recitais — ao mesmo tempo, essa situação permitia um contacto privilegiado e natural com algumas personalidades. Recorda-se de algum episódio em particular? Era, sem dúvida. A mãe tinha sempre recitais quando chegava lá fora. O meu pai encarregava-se de estabelecer contactos com o meio musical, organizavam-se alguns recitais e até pequenos concertos de música de câmara em casa, mas não só. Eu dizia sempre — a família era o pai, a mãe, os três filhos e o piano! O piano vinha sempre! Chegava depois de nós à casa onde íamos viver, mas vinha sempre! Mas até na Índia, onde o meio musical não era tão vasto, como cá na Europa, mesmo assim a mãe arranjou um violinista muito bom, chamado Joseph Lampkin, e deram muitos concertos juntos. Na nossa estadia em Roma conheci pessoas ímpares, recordo-me de personalidades como o grande flautista Arrigo Tassinari. Em Portugal, a mãe fazia parte do círculo da Elisa de Sousa Pedroso, por onde passavam todos os músicos que vinham a Lisboa, mas já não há quem guarde recordações desses tempos. Entre 1979 e 2007, leccionou italiano noConservatório Nacional, algo que, aliás, quis perpetuar através do seu livro Dicionário do Canto Lírico (Italiano-Português), publicado em 2009. Como foi o seu percurso profissional antes desse período, nomeadamente na Gulbenkian? Antes disso ainda trabalhei na RTP, um mês e pouco, mas odiei — e sabe porquê? Imagine que nos obrigavam a trabalhar de batinha preta, de mangas até ao pulso… Logo eu, que sempre detestei batas! E a minha passagem pelo Serviço de Educação da Fundação Calouste Gulbenkian também foi bastante curta, embora tenha representado o meu primeiro contacto com uma grande instituição cultural. Eu ainda fui do tempo do apartamento na rua de São Nicolau, éramos cerca de oito, na altura. Mais tarde, ainda cheguei a trabalhar nos pré-fabricados instalados junto ao estaleiro da Avenida de Berna, onde ficou instalada a Fundação até hoje. Será mais do que natural falarmos de ópera, que o interesse pela língua italiana denuncia, seguramente um carinho muito especial pelo género… Na altura, o Conservatório tinha uma vaga para professora de italiano. À época, o que se aprendia era, maioritariamente, a fonética — muitos dos alunos e intérpretes não tinham qualquer ideia do que estavam a dizer, enquanto cantavam. Hoje em dia, ninguém acredita! Eu comecei a leccionar com um programa de 1930, que nunca tinha sido actualizado; por isso, decidi alterar o método e tentei abordar o tema fazendo uma simbiose entre a língua falada e a lírica, em simultâneo. Recordo-me, inclusive, de ter escrito para o Ministério a propor uma alteração no currículo — nunca me responderam… Como é que os alunos poderiam interpretar correctamente o repertório sem perceber o que estavam a dizer? Um bom aluno de canto era um bom aluno de italiano! Algures na sua vida conhece Antoine Sibertin-Blanc, com quem viria a casar. Foi o meu segundo casamento. Curiosamente, fomos os dois convidados para trabalhar no Conservatório de Música de Tomar, sem nos conhecermos. Naquele tempo, o Antoine era professor no Instituto Gregoriano e tocava a convite da Fundação Calouste Gulbenkian; por mais estranho que pareça, num país com tantos órgãos quase não havia organistas. Nesse sentido, o ressuscitar do género ficou a dever-se, em grande parte, às iniciativas da Helena Perdigão. Acabámos por fazer muitas viagens de carro para Tomar juntos — foi assim que começou a nossa história. A sua geração pôde contactar com muitos dos grandes nomes da história recente da música em Portugal. Foram tempos muito particulares, fortemente influenciados pelo contexto político e cultural de uma época de grandes mudanças… Houve uma abertura muito grande, especialmente no que diz respeito à mobilidade dos artistas. Antes disso, os que vinham eram escolhidos a dedo, para não desestabilizar o panorama. O que não quer dizer que não se fizesse boa música, mas era tudo muito fechado e os repertórios eram muito académicos e, logicamente, repetitivos. O que nos salvava eram os mecenas como a Marquesa Olga de Cadaval, ou mesmo a Elisa de Sousa Pedroso. Os músicos tinham preparação, mas os instrumentos eram, quase sempre, de fraca qualidade — faltavam a disponibilidade e o investimento. No fundo, pecavam pela qualidade do som, mas não da técnica e da preparação. Nesse aspecto, a situação melhorou muito. No que diz respeito ao ensino, melhorámos muito, tanto no acesso como na democratização. O problema é que o progresso e a abertura não foram, necessariamente, acompanhados pelo necessário investimento financeiro, o que levou à ruína muitas instituições. O maior problema, nos últimos anos, tem sido a desvalorização do professorado, enquanto profissão e carreira, e isso tem-se reflectido na qualidade do ensino. Aqui chegados, e tendo percorrido o que foi, em parte, a sua história com a música — o que é que nos falta? Tempo! Eu diria que nos falta tempo — para reflectir, para pensar e para desfrutar. Isso vê-se na cultura. Na minha época — se é que posso falar assim —, o tempo sentia-se de outra maneira. Havia vagar para tudo e a cultura podia ser apreciada com outro espírito. No fundo, respirava-se mais entre o trabalho e a vida familiar, não era este frenesim. •

Texto publicado na Glosa nº 21, p. 96-103.

Sobre o autor

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A. Baião-Pinto tem marcado presença habitual em diversos espectáculos como 'diseur' de prosa e poesia. No âmbito cultural encontra-se, neste momento, a trabalhar com a companhia Teatro Nacional 21, na qualidade de dramaturgista. Colabora, igualmente, com o MPMP Património Musical Vivo e com a GLOSAS. O seu percurso académico passou por instituições como a Faculdade Direito da Universidade de Lisboa, o Instituto Italiano de Cultura e o Ar.Co, tendo concluído uma pós-graduação em Direito da Igualdade no Centro de Investigação de Direito Privado da Universidade de Lisboa.