Nasceu em França, em 1894, uma das figuras centrais da cena musical portuguesa ao longo de quase todo o século XX. Além de compositora, intérprete, pedagoga, musicóloga, crítica musical, Benoit era uma intelectual de vanguarda, ligada a círculos feministas e a movimentos políticos. E era uma mulher que não receava desafiar estereótipos de género, apresentando-se por vezes vestida no que era descrito como roupa de homem. Segura de si, as suas críticas eficazes e certeiras originaram inimizades e desencadearam polémicas, a que Francine respondia, ou não respondia, de forma cordial mas coerente consigo própria.
O primeiro contacto de Benoit com o piano foi aos quatro anos, pela mãe, que a ensinou a ler música ao mesmo tempo que a ensinou a ler francês. Aos onze anos, a família Van Gool Benoit estabelece-se em Portugal, em Setúbal, onde o pai de Francine, engenheiro de máquinas, conseguiu emprego. É em Setúbal que nasce a ligação a Gabriela Gomes, que virá a ser Nemésio, e que toda a vida será uma das pessoas mais próximas. Comeaça a frequentar a Academia de Amadores de Música, onde estuda com Tomás Borba. Com a prematura morte do pai, em 1919, vê-se forçada a trabalhar para sobreviver, o que lhe vai retirar tempo e forças para se dedicar à composição – não poder compor tanto quanto gostaria será uma das suas maiores mágoas. Nesta altura mudam-se para Lisboa, para que Francine possa frequentar o Conservatório Nacional. É aluna de Rey Colaço, em Piano, e de António Eduardo da Costa em Composição. Em plena I Guerra vai estudar com Vincent d’Indy na Schola Cantorum de Paris, acumulando os três anos do curso entre 1917 e 1918, num ambiente onde, diariamente, se cruzam à frente dos seus olhos a vida e a morte.
Enquanto musicóloga, preocupavam-na questões de sociologia da música, questionando o papel da rádio e reconhecendo-lhe o ilimitado potencial de formar públicos e divulgar obras. Defendia que o ensino musical devia ser obrigatório, por ser inevitável contributo para a formação moral bem como para a coordenação motora de todas as crianças. Advogava uma companhia portuguesa de ópera, eficaz e bem gerida, que desse visibilidade aos cantores portugueses, bem como a obras de compositores portugueses contemporâneos.
Desde cedo republicana (à semelhança da sua mãe, também ela feminista e já vanguardista amiga de, por exemplo, Virgínia Quaresma e Berta Vilar Coelho), depressa se identifica com a intelectualidade de esquerda, tendo colaborado com a Seara Nova, Revista de Portugal e Mundo Literário, além de se ter filiado quer em sindicatos, quer em movimentos políticos como o MUD, quer em associações feministas, como a Associação Feminina Portuguesa para a Paz, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e o Movimento Democrático das Mulheres. Colaborou ainda com o coro do Grupo Dramático Lisbonense e, mais tarde, com o coro da Academia de Amadores de Música, dirigido por Lopes-Graça.
Das suas amizades salientam-se, no meio musical, Arminda Correia, Fernando Lopes-Graça, Pedro do Prado, Armando José Fernandes, Jorge Croner de Vasconcellos, Macario Santiago Kastner, Maria Helena Leal, José Gomes Ferreira, e toda a família de João José Cochofel, através da sua mãe, Maria Albina. Nos círculos feministas e lésbicos foi próxima de Virgínia Gersão, Noémia Cruz, Irene Lisboa, Maria Palmira Tito de Morais, Suzanne Laurens, Marcelle Henry, entre outras. À sua companheira de mais de trinta anos, Madalena Gomes, deixou tudo o que tinha, junto com o desejo de ser recordada como compositora.
O seu lugar na história da música portuguesa é inquestionável, ou não tivesse sido responsável pela formação dos mais reputados músicos, compositores e musicólogos, de que damos apenas o exemplo de Maria da Graça Amado da Cunha, Emmanuel Nunes, Maria João Pires, Olga Prats, Mário Vieira de Carvalho, Jorge Costa Pinto, entre dezenas de outros; e forma dora de públicos, de ouvintes, quer através das conferências que realizava desde os anos 20, essencialmente em Lisboa, quer através de textos publicados (“Dos acordes na arte e na escola”, “O génio artístico e as suas manifestações”), quer através da sua música, quer através da sua actividade enquanto crítica musical, quer em periódicos generalistas ou especializados. Defensora da música moderna, do jazz, do rock, Francine defendia a existência de apenas dois tipos de música: a boa e a má. “Os compartimentos não existem. Existem sim, como na natureza biológica, características diferentes (entrevista de Helena Neves, Mulheres, nº78, Outubro de 1984).

APONTAMENTOS CRONOLÓGICOS
1894 Nasce em Perigueux, após um difícil parto de 48 horas
1906 Instala-se em Portugal
1919 Dirige, a convite de Rey Colaço, a Sociedade de Canto Coral de Lisboa
1920 Inicia a sua carreira oficial de pedagoga, na Escola Oficina nº1 de Lisboa
1929 Naturaliza-se portuguesa, ao fim de um processo de vários anos
1932 É-lhe recusado o lugar de professora no Conservatório após ter sido a melhor classificada no concurso com 17,5
1936 Adere ao Sindicato Nacional de Crítica
1942 Francine Benoit, Fernando Lopes-Graça, Maria da Graça Amado da Cunha, Macario Santiago Kastner e Joaquim da Silva Pereira fundam a sociedade de concertos Sonata
1945 Adere ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas
1947 Dirige o Orfeão da Associação Portuguesa Feminina para a Paz, extinta pela PIDE em 1952
1945 Colabora com o M. U. D. desde a sua fundação
1950 Funda e dirige o Orfeão da Voz do Operário
1977 Faz parte do Conselho Nacional do M. D. M.
1978 Filia-se no P. C. P.
1984 Por ocasião do seu 90.o aniversário, o M. D. M. e a Academia de Amadores de Música organizaram um jantar de homenagem que teve lugar na Casa do Alentejo, onde estiveram presentes alguns dos seus melhores amigos, e figuras de relevo da cultura nacional, musical e não só1984 Recebeu o prémio da revista Mulheres, que distinguia anualmente mulheres que se destacavam em diferentes áreas
1986 No dia mundial da música, é galardoada com a medalha de mérito cultural pelo Ministério da Educação e Cultura, então tutelado por João de Deus Pinheiro
1990 Morre, em Lisboa
ALGUMAS OBRAS
• Três Canções Tristes para canto e piano, 1919, Valentim de Carvalho
• Opereta infantil A formiga e a cigarra, com versos de César Porto, 1922
• Opereta infantil Os Ovos de Oiro, 1922
• Opereta infantil A Gata Borralheira, 1922
• Álbum Para a Juventude Cantar e Pular, 1927
• Cantares de Cá, peças para piano, 1930, Valentim de Carvalho
• Partita para orquestra de câmara, 1936
• Concerto para piano e orquestra, 1940-42
• Ritorno sentimental, para piano, 1949
• Humoresca militar, para piano, 1949
• Bichos, bichinhos e bicharocos, 1949, texto de César Porto
• Cantata infantil A princesa e o caçador, 1966, a partir de texto de Almeida Garrett, encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian
• E outras peças para piano, canções para canto e piano, e originais e arranjos para coro, resultado do elevado número de coros a que esteve associada
Texto publicado na Glosa nº 5, p. 80-82.