Devia ter uns dezanove anos quando a conheci. Constança Capdeville tinha então a merecida reputação de ser quem, no Conservatório Nacional, dava maior atenção quer às obras do passado polifónico quer do presente experimental, sem deixar de exibir invejável conhecimento das técnicas de composição tonal e das suas derivações modernas. A sua proverbial vivacidade e o seu amor pelo ensino eram frequentemente contrariadas pela doença, que a obrigava a largos períodos de tratamento e convalescença. Oficialmente, nunca fui seu aluno; apesar disso, encontrei sempre aberta a sua porta, e dela recebi não só o encorajamento de que necessitava, como a mais preciosa das lições: a da escuta atenta, concentrada e aberta, capaz não só de captar os estímulos sonoros como de os estruturar mentalmente de forma analítica e de lhes responder criativamente.

A Constança – era assim, pelo nome próprio, que no Conservatório os estudantes a tratavam – ensinava Composição na sala do gongo chinês. O gongo do Conservatório, que julgo reconhecer na gravação do Libera Me disponível em disco1, tinha para todos nós, creio, uma fascinação especial, que a Constança compartilhava; ou talvez nós compartilhássemos a sua fascinação. Na verdade, se havia coisa que definisse a relação da Constança com os seus alunos e auditores era a capacidade de comunicar os seus entusiasmos; a alegria do timbre era um deles.

Se a cor, a textura e a energia do som eram fundamentais para Constança, isso não a impedia de ser rigorosa no ensino da disciplina harmónica, já que a arte não significava, para ela, ausência de regra: a arte estaria além, e não aquém, da regra académica. Mas recordo sobretudo que a música, para Constança, não se esgotava nas técnicas de escrita; era, em primeiro e último lugar, um meio de expressão e interacção humanas. Ao avaliar uma composição, esforçava-se por reconhecer a voz por detrás das notas; ao tocá-la ao piano, procurava libertar o sentido que fecundara o som. Em improvisações colectivas, importava-lhe o interesse acústico e a resultante formal das intervenções individuais, mas subordinava a avaliação do efeito musical total à dos padrões de comportamento a ele associados.

Recordo-me, a este propósito, de a Constança ter estimulado uma improvisação que redundou na convergência e posterior neutralização das intervenções individuais em torno de um padrão dominante2. Apesar do resultado ter sido musicalmente poderoso, ou talvez por isso mesmo, vimo-la armar-se de um semblante alarmado e peremptório para, perante a nossa satisfação, criticar a experiência, por termos tão facilmente aceite a perda de individualidade inventiva, com o que teríamos evidenciado, simbolicamente, a nossa inconsciência face ao reducionismo acarretado pela arregimentação social.

Esta crítica, vinda de uma criadora de rara cultura artística, merece alguns momentos de reflexão. A música ocidental sempre se caracterizou, desde a Idade Média, por impôr limites ao individualismo do executante. Por um lado, a música foi sempre valorizada enquanto caminho de universalidade; por outro, a prática colectiva sempre esteve na base do pensamento musical erudito do Ocidente. No canto gregoriano, o ideal era de união espiritual em torno de uma melodização ritual divinamente inspirada; a polifonia coral adoptou um ideal de representação da ordem divina; posteriormente, o ideal da coordenação harmónica passaria a ser o acordo com a ordem natural. De outra perspectiva, quem se reconheça na tradição musical europeia não pode deixar de admitir a dependência mútua de compositor e praticante, e de abraçar a ideia de que o compositor é um coordenador social. O compositor, desdobrado ou não em maestro, não pode escapar à sua condição de manipulador de músicos (a não ser que lhes prefira o computador). As pessoas, para ele, são instrumentos de produção sonora coordenados por uma vontade soberana representada pela partitura.

Ora, o poder assim assumido só é socialmente aceitável se for ele próprio instrumento de uma ideia em que a sociedade, ou parte dela, se reconheça: por exemplo, a ideia de aproximação a Deus, a ideia de entretenimento decoroso ou a ideia de expressão subjectiva da vontade. O compositor é socialmente responsável pela ideia a que dá corpo sonoro, e é nesse sentido que as observações de Constança no final da improvisação contribuem para iluminar a sua própria obra.

O músico executante gozou, até ao século XIX, de certa autonomia artística, possibilitada pelo uso de uma linguagem musical comum; essa autonomia foi desde então coarctada em nome da fidelidade à partitura requerida pela maior personalização dos estilos. Uma das tarefas do compositor da segunda metade do século XX foi decidir se, ao nível do pormenor, essa subordinação lhe convinha, ou se devia alargar de novo o espaço de actuação do intérprete por via da indeterminação da escrita. Outra das suas tarefas foi a de escolher entre a adesão a uma estética provada, em nome da sua capacidade de gerar consensos sociais, e a adesão a um movimento de vanguarda, capaz de gerar transformações da sensibilidade. Em ambos os casos a segunda alternativa – a escolhida por Constança – privilegia a noção de que o compositor é menos um demiurgo do que um libertador.

Constança considerava a música como uma via de comunhão na descoberta e na consciencialização pessoal, e não como uma via de massificação ou de renúncia da irredutibilidade individual. Para ela, a música não devia ser «coisificada», mas experienciada; uma partitura devia ser um convite, e não uma receita. As obras cénicas de Constança transmitem-nos essa atitude ao incorporar características sociologicamente significantes que acolhem quatro ideias fundamentais, a saber, as ideias de: (1) participação, (2) autonomia, (3) maximização informativa, e (4) permeabilidade.

A primeira ideia diz respeito à latitude de intervenção concedida ao músico: a autora, em certas secções, admite os intérpretes como parceiros da sua jogada artística em parâmetros que, tradicionalmente, competem ao compositor, sublinhando assim o cunho participativo da prática musical e diluindo, sem eliminar, o seu aspecto hierárquico. (2) A ideia de autonomia é veiculada pelo número reduzido de músicos e pelo uso de processos artesanais de produção sonora, que assinalam uma alternativa de vivência fora dos grandes aparelhos associados ao exercício do poder. (3) A maximização do conteúdo informativo advém da mistura de sons familiares e não familiares, que, ao envolver o auditor numa teia de imprevisibilidade sonora, o arranca a uma condição passiva e o faz mergulhar num caminho de descoberta. (4) A permeabilidade é uma consequência da parca presença e concisão das proposições melódicas de cunho pessoal, que, ao desvalorizarem (na senda de Satie) a retórica discursiva do compositor-inventor, permitem que emirja a figura de um compositor-cicerone.

A par destas características, podem destacar-se facetas que permitem ler nas suas obras as ideias de historicidade, de cosmopolitanismo, de tensão e de diversidade. Assim, e no que releva da historicidade, a condição planetária da cultura de hoje é assumida pela compositora ao recorrer à gravação de materiais de origem extra-europeia, enquanto o uso de materiais perceptivelmente transpostos de outros contextos históricos confere densidade diacrónica à composição. Já o pluralismo linguístico favorecido por Constança nas suas obras cénicas (Libera Me, ao privilegiar o latim, constitui uma excepção) introduz uma dimensão cosmopolita no mundo sonoro proposto ao ouvinte. Do ponto de vista estético, a ocasional conflitualidade das intervenções musicais e a evocação de atmosferas rarefeitas entrecortadas por uma marcação rítmica esparsa mas acutilante veiculam, musicalmente, a ideia de tensão. Finalmente, a oposição de timbres e registos de identidade bem definida, e a sobreposição de planos musicais perceptivamente distintos dramatizam simbolicamente a diversidade.

Com estes ingredientes, não é de estranhar que as obras da Constança tenham recebido, a par de um acolhimento selecto entre músicos, uma recepção calorosa e fiel por parte de um público de anseios políticos avançados mas insatisfeitos, razoavelmente culto, de horizontes cosmopolitas e alertado para os valores históricos. No clima de crise de identidade nacional, austeridade económica e clientelismo político do fim dos anos setenta e do início dos anos oitenta, Constança soube ser amada pelo partido estético dos que eram jovens no 25 de Abril3.

* Excerto de «Libera me: uma leitura», texto de 1993 publicado in Manuel Pedro Ferreira (coord.), Dez compositores portugueses. Percursos da escrita musical no século XX, Lisboa: Publicações D. Quixote, 2007, pp. 329-41, 384.

1 PortugalSom – CD 870025/PS (1991); gravação de 1986.

2 A improvisação ocorreu no âmbito de um curso de formação de animadores promovido pela Juventude Musical Portuguesa, estando a organização a cargo de Helena Lamas Pimentel. No Conservatório não havia sequer espaço curricular para o ensino de técnicas de composição contemporâneas; uma cadeira de improvisação musical estava então, como está no momento em que escrevo, fora de questão.

3 O estrondoso sucesso da versão de concerto do Libera Me, estreada a 15 de Fevereiro de 1980, é espelhado na crítica de João de Freitas Branco publicada no Diário Popular de

25/2/80 («[a obra] actuou em cheio como peça de efeito, daquelas que positivamente agarram o público e lhe acendem o entusiasmo») e é confirmado pelo texto que Augusto M. Seabra lhe dedicou no Diário de Notícias de 28/2/80, onde se refere «a recepção entusiástica por parte do público (uma recepção absolutamente triunfal)». No entanto, novas apresentações da obra teriam de esperar por Agosto de 1986 (Estoril/ Festival da Costa do Estoril, com o Coro Gulbenkian) e novamente por 1991 (Munique, em Abril, com o Coro da Rádio Bávara, e Lisboa/Festival dos Capuchos, em Julho, com o Coro Gulbenkian). A indiferença da Fundação Gulbenkian, única organização capaz de viabilizar a manutenção no repertório de novas obras portuguesas, ao sucesso desta, como de outras obras de Constança, viria a suscitar a revolta da compositora, expressa na entrevista que concedeu a Manuel [P.] Ramalho [Ferreira], «O sucesso, para quê?», Informação Musical n.º 6 (Fev. 1982), pp. 3-5.

Texto publicado na Glosa nº 6, p. 20-21.

Sobre o autor

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Manuel Pedro Ferreira estudou em Lisboa e na Universidade de Princeton, onde se doutorou em Musicologia com uma tese sobre canto gregoriano em Cluny, orientada por Kenneth Levy. Ensina no Departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, de que chegou a ser coordenador. Desde 2005 é responsável pelo Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical. Em 1995 fundou o grupo de música antiga Vozes Alfonsinas, que ainda dirige em palco e em gravações. Foi eleito em 2010 membro da Academia Europaea e pertence desde 2012 ao Conselho Directivo da Sociedade Internacional de Musicologia. Dedicado sobretudo aos estudos musicológicos, escreveu um vasto número de artigos académicos em revistas e livros publicados por todo o mundo. Tem estado também activo como crítico musical, compositor e poeta. É casado e tem três filhos.