O que seria hoje a música portuguesa para sopros se Joly Braga Santos tivesse conseguido terminar Otonifonias? O que seria das nossas bandas amadoras se tivessem podido aproveitar o seu génio criativo em prol da implantação de um repertório de maior qualidade, nomeadamente através das versões para sopros de algumas das suas obras?

Mas voltemos ao princípio. Quando Joly nasceu em 1924, as bandas portuguesas atravessavam um dos seus mais resplendorosos momentos desde o período das guerras liberais no séc. XIX. Artigos publicados na Arte Musical entre 1931 e 1932 referem a existência no país de 3000 bandas ou “pelo menos 2500”. Embora haja a consciência de que estes números são demasiado elevados, dão-nos todavia uma ideia de quão abrangente era esta prática em Portugal durante o período da infância de Joly Braga Santos. A redução brutal do número de bandas militares em Portugal operada em 1937, de 36 (32 do exército, 2 da GNR, 1 da Marinha e uma não oficial na Escola Prática de Infantaria de Mafra) para 12 (8 no exército, 2 na GNR, 1 na Marinha e a não oficial em Mafra), veio mudar completamente o potencial musical instalado no país e obrigar as bandas militares a circunscreverem muito mais a sua acção a actividades oficiais do Exército e menos às apresentações em concertos nos jardins e parques das cidades, para entretenimento da população.

Se, por um lado, esta diminuição de bandas militares deixou um espaço de mercado para as bandas civis, por outro lado, diminuiu o número de músicos disponíveis nas regiões interiores e que geralmente exerciam funções vitais em muitas bandas civis do país. É de notar que é exactamente no período em que Luís de Freitas Branco foi director da Arte Musical que encontramos a maior quantidade de notícias quer sobre a actividade das bandas militares quer sobre a actividade das bandas civis. Este período de grande actividade e mudança nas bandas em Portugal manter-se-ia, grosso modo, até ao final da década de 40. No entanto, já em 1946 o musicógrafo Pedro de Freitas, no seu livro História da Música Popular em Portugal, alertava para a quebra que se estava a verificar nas bandas portuguesas, apontando como 735 o número de bandas existentes nessa época. O mesmo autor descreve, contudo, exemplos de bandas amadoras com uma constituição instrumental que rivalizava com as bandas militares em termos de número de instrumentistas e diversidade de instrumentos.

A interrogação que sempre se coloca a todos quantos estudam o fenómeno da música para sopros no nosso país é o porquê da quase absoluta negligência a que os nossos mais importantes compositores do séc. XX votaram as bandas (a mais disseminada forma de prática musical no nosso país). As respostas que emergem apontam sempre o carácter popular das bandas como um dos principais obstáculos à sua utilização como veículo artístico ou então o carácter utilitário e amador das mesmas. Outros referem a falta de uma instrumentação estável e universal como entrave ao desenvolvimento de um repertório para banda em Portugal. Acrescentam-se aqui mais três: a falta de bandas nas nossas escolas oficiais de música até à última década do séc. XX; o desconhecimento dos compositores sobre o real valor da banda; a falta de interesse da maioria das bandas pela música dos nossos mais respeitados compositores, seja por força dos espaços performativos que a banda ocupa seja por ignorância ou falta de cultura musical dos regentes dessas bandas. Foi por uma feliz conjugação de elementos pessoais, culturais e políticos que hoje podemos falar em obras para conjuntos instrumentais de sopros de Braga Santos.

Quando, em 1946, Joly escreve a sua Abertura Sinfónica, estaria porventura longe de pensar que Manuel da Silva Dionísio (1912-2000), na época sargento-ajudante da banda da Guarda Nacional Republicana (GNR), viria a fazer, três anos depois, uma transcrição para banda desta obra. Qual é a importância ou a relevância desta transcrição para o repertório de banda português? Em que é que esta ou outras que Silva Dionísio viria a fazer, não só de obras de Joly mas de Frederico de Freitas, Fernando Lopes-Graça, Álvaro Cassuto, etc., diferem das tradicionais transcrições que as bandas sempre executaram?

A diferença essencial está na atitude dos compositores perante estas transcrições. As versões de uma obra para uma instrumentação diferente, fosse para piano, dois pianos, piano a quatro mãos, pequenos agrupamentos instrumentais, ou para banda, sempre tiveram um papel duplo do ponto de vista dos compositores: permitir uma maior difusão da sua música e/ou veicular o seu discurso artístico através de mais do que um meio. Do primeiro exemplo temos as bem conhecidas versões para piano das sinfonias de Beethoven; do segundo temos por exemplo An Outdoor Overture de Aaron Copland ou, no sentido inverso, de banda para orquestra, Suite Française de Darius Milhaud. Não sabemos, infelizmente, quando começou a relação de amizade e de parceria artística entre Silva Dionísio e Joly Braga Santos, mas o facto inegável é que ambos se relacionaram de forma muito construtiva e foi, sem dúvida, desta relação que nasceu o interesse de Joly pelo mundo das bandas.

Data do dia 1 de Abril de 1963 a versão para banda das Variações sobre um Tema Alentejano, Op.18 que haviam sido escritas em 1951. Silva Dionísio termina o seu trabalho com o seguinte “desabafo” no final da partitura: “Dia de São Macário, 1 de Abril de 1963 e é verdade…acabei”. Acontece que o seu trabalho ainda não estava acabado pois o compositor, que aparecia com regularidade nos ensaios matinais da Banda da GNR (hábito quase diário segundo as memórias dos familiares), viria a introduzir algumas alterações à transcrição, a mais evidente das quais foi o corte dos seis primeiros compassos da obra, que ele já teria entretanto apagado da versão de orquestra. Silva Dionísio fará mais uma versão para banda, desta feita a Sinfonia n.º 3 em Dó – cujo trabalho termina no “Domingo de Carnaval de 1970 (que alívio)”.

Dado o estreito acompanhamento de Joly dos trabalhos de transcrição, as 3 versões acima mencionadas podem, em boa verdade, ser incluídas no repertório para sopros de autores portugueses, uma vez que resultam de uma vontade e parceria do compositor, da mesma forma que muitas versões de obras de Copland são tidas como obras de sopros ou a Rhapsody in Blue de Gershwin é tida como obra orquestral quando, na realidade, foi escrita para big band.

A influência particular da Banda da GNR na música em Portugal viria uma vez mais a ser decisiva na produção da imponente cantata cénica D. Garcia, Op. 50, para recitantes, dois sopranos, alto, tenor, baixo, coro e banda, que é sem dúvida um marco histórico na música de banda portuguesa. Desde 1965 que crescia em Vilar de Mouros, pela mão do médico António Augusto Barge, um evento musical que hoje é conhecido como “Festival de Vilar de Mouros”. A edição de 1968 do festival contou com a participação da Banda da GNR. Terá sido por indicação de Silva Dionísio que o Dr. Barge viria a encomendar a Joly Braga Santos e à escritora Natália Correia a cantata D. Garcia para celebrar o IX centenário da doação de Vilar de Mouros por D. Garcia à Sé de Tuy. A estreia realizar-se-ia a 31 de Julho de 1971, sob a direcção de Silva Dionísio e com a participação de Catarina Avelar, Elisa Lisboa, Maria Germana Tânger, Álvaro Benamor, Santos Manuel, Maria Manuel Lobo Silveira, Elisette Bayan, Joana Silva, Maria Ramos, Fernando Serafim, Coral Polifónico de Viana do Castelo e Banda da GNR. A obra não teve um nascimento fácil. Logo de princípio os textos seriam fruto de uma parceria entre David Mourão Ferreira e Natália Correia mas, por razões não apuradas, Mourão Ferreira afastou-se do projecto, o que terá colocado alguns problemas a Joly Braga Santos. Numa carta de 31 de Maio desse ano dirigida a Silva Dionísio, é possível perceber que, a dois meses da estreia, a obra ainda não estava concluída1.

Em termos estilísticos a obra encontra-se muito assente no modalismo, com um medievalismo melódico omnipresente. No entanto, a mudança para uma linguagem mais cromática é aqui evidente com exemplos de melodias que mais não são do que escalas cromáticas descendentes, interrompidas por saltos de 7.ª maior ascendente, ou frases melódicas compostas por 11 notas diferentes.

A estreia da obra foi, no entanto, uma desilusão para todos em termos da afluência de público ao primeiro fim-de-semana do Festival. Contabilizaram-se cerca de 1500 espectadores, o que se traduziu num prejuízo para a família Barge. Os principais jornais da época dão eco desse prejuízo e colocam imediatamente em causa a capacidade do mecenas de garantir futuras edições do Festival. Numa pequena crónica intitulada “Música Séria: Défice de 700 Contos, o Jornal de Notícias de 8 de Agosto de 1971 dá conta da decisão de todos os autores e intérpretes envolvidos nos concertos de 31 de Julho e de 1 de Agosto de promoverem concertos em Lisboa e no Porto da obra D. Garcia revertendo os proveitos “para aquilo que for julgado conveniente”. Não há, de facto, notícia que estes concertos se tenham realizado, provavelmente porque os outros dois fins-de-semana do Festival acabaram por equilibrar um pouco as contas2.

A outra obra original para banda escrita por Joly começou por chamar-se Música para Instrumentos de Sopro e Percussão3. Foi terminada a 21 de Outubro de 1977, e resultou de uma encomenda da Secretaria de Estado da Cultura. Esta suite em 4 andamentos (Prelúdio, Ronda Infantil, Canção e Dança Popular) enquadra-se num conjunto de encomendas feitas a vários compositores portugueses reconhecidos, para serem distribuídas pelas bandas amadoras, com o objectivo de melhorar a qualidade do repertório destas formações e alargar os horizontes culturais e artísticos dos seus públicos. O nome Otonifonias aparecerá pouco tempo depois para designar uma colecção de 6 suites de 4 andamentos cada, com graus de dificuldade técnica progressivos, que Joly se propõe realizar para a SEC. Menos de um mês depois termina um Nocturno para banda cuja orquestração difere um pouco daquela usada em Música para Instrumentos de Sopro e Percussão4, tendo algumas particularidades que nos remetem para um maior grau de elaboração: passagens melódicas cromáticas, presença de acordes com trítonos; uso mais regular de linhas contrapontísticas resultando num aumento da densidade da escrita (embora estas nunca se imponham à hegemonia das melodias principais, asseguradas frequentemente por um conjunto grande de instrumentos em uníssono). Ficamos com a impressão de que este Nocturno seria já um andamento para uma segunda suite, de maior dificuldade e elaboração técnica, sendo que a mudança de instrumentação é o argumento mais forte que suporta essa tese, uma vez que seriam muito poucas as bandas amadoras da altura a dispor de oboés, fagotes e clarinete baixo.

Em termos gerais, todos os andamentos obedecem a uma forma ABA, em que B é uma nova secção com temas novos e não um desenvolvimento de A. Toda a obra está escrita num estilo modal e alguns dos andamentos remetem para um contexto de música popular. É ainda curioso o facto de três dos cinco andamentos se iniciarem com solos de saxofone alto, sendo que o Prelúdio se inicia com um coral escrito apenas para o quarteto de saxofones, que é, sem dúvida, uma das mais interessantes intervenções do naipe de saxofones de toda a literatura musical portuguesa! Esta insistência no uso do saxofone é apenas relevante uma vez que não é de todo um instrumento usado regularmente por Joly Braga Santos.

Uma das razões que terá levado à pouca difusão desta obra, e da totalidade das outras obras escritas por outros compositores para o projecto da SEC, entre as nossas bandas amadoras, é a forma como Joly aborda a banda. Ao longo de Otonifonias percebemos que a banda é entendida e trabalhada como conjuntos de instrumentos de câmara um pouco à maneira do uso dos sopros no seio da orquestra sinfónica que formam, frequentemente, grupos de solistas. Esta delicadeza do tratamento instrumental não estava de acordo com os espaços performativos da maioria das bandas portuguesas da época que actuavam sobretudo ao ar livre. Por outro lado, a quase inexistência de duplicação de partes deixava expostas todas as deficiências técnicas dos instrumentistas amadores. De facto, embora nenhum dos andamentos de Otonifonias fosse, nem de perto nem de longe, mais exigente tecnicamente do que a maioria dos pasodoble ou aberturas de ópera interpretados pelas bandas amadoras, a forma como estavam estruturados e orquestrados fazia com que cada músico da banda fosse entendido como um solista. Infelizmente, Joly nunca terminaria as suas Otonifonias.

Comporia ainda, em 1985 e por encomenda da Secretaria de Estado da Cultura, a Suite para Instrumentos de Metal dedicada ao Grupo de Metais de Lisboa, sobre a qual o próprio Joly escreveu: “Compõe-se de três breves andamentos, Moderato, Allegro e Andante, de forma livre e livremente cromáticos na sua construção essencialmente linear, a qual procura, sobretudo, os timbres puros e uma grande simplicidade e clareza de expressão”.

Fazem falta hoje as outras cinco suites que deveriam compor o total de Otonifonias. Fazem falta porque as nossas bandas amadoras estão hoje muitíssimo mais desenvolvidas e “contaminadas” com alguns repertórios que se aproximam muito mais da escrita musical usada por Joly. Persiste ainda um défice grande de música para sopros de qualidade escrita por autores portugueses. Num país onde os professores de composição só agora, muitas vezes por impulso dos seus alunos oriundos muitos deles das bandas, começam a olhar a banda como um veículo artístico, é porventura útil pensar as versões para banda de obras de compositores portugueses, produzidas no seio da Banda Sinfónica da GNR e de outras que eventualmente existam, como repertório em que se pode cimentar uma nova prática bandística enquanto aguardamos mais e melhor repertório. Para este efeito muito contribuirá certamente a nova chefia da Banda Sinfónica da GNR, na pessoa do seu Capitão João Afonso Cerqueira, ao promover a edição de algumas destas versões como forma de celebrar os 175 anos da Banda, que se festejarão em 2013, honrando a memória e o trabalho de antigos chefes da Banda, dos quais Silva Dionísio, até pelo que representou para o movimento das bandas amadoras, é um impressionante exemplo. Com esta oportunidade se pode antever uma nova vida para a música de Joly Braga Santos e de outros compositores portugueses, uma vez que as centenas de bandas do nosso país nutrirão de certeza mais carinho pela sua música do que aquele que a maioria das nossas orquestras sinfónicas tem, por razões várias, demonstrado. •

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1) Podemos também ver que Joly pretendia dedicar a sua primeira obra escrita originalmente para banda ao seu amigo Silva Dionísio.

2) D. Garcia viria, no entanto, a ser novamente interpretada no Minho, na Praça da República de Viana do Castelo, pelo mesmo elenco, durante as festas em honra da Sra. da Agonia de 1973. Para tentar rentabilizar a obra, Silva Dionísio faz um arranjo de partes da cantata por forma a poderem ser interpretadas unicamente pela banda, assegurando, assim, a sua interpretação regular pela Banda da GNR.

3) A instrumentação espelha bem o que era frequente haver nas bandas amadoras portuguesas da década de 1970: flautim, flauta, requinta (clarinete sopranino em Mi♭), clarinetes em Sib 1, 2 e 3, saxofone soprano em Si♭, saxofone alto em Mi♭, saxofone tenor em Si♭, saxofone barítono em Mi♭, fliscornes em Si♭ 1 e 2, trompetes em Si♭ 1 e 2, sax-trompas em Mi♭ 1 e 2, trombones em Dó 1, 2 e 3, bombardinos 1 e 2 em Dó, baixos em Mi♭, tuba em Si♭ e percussão.

4) Acrescenta oboé, fagote, clarinete baixo em Sib, mais dois trompetes e duas saxtrompas, divisi na parte de bombardino 1 e de baixo em Mib e instrumentos de percussão de altura definida (tímpanos e sistro).

Publicado na Glosas nº 3, p.47-49.

Fotografia: Antena 2

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