Entre as etiquetas de pequenas empresas que surgiram já em pleno século XXI, destacam-se a Portugaler6, Althum, Arkhé Music ou a Artway Records. Entre estas, aquela que apresenta um maior número de títulos na última década é a Artway Records, com um total de cinco títulos, o que reflecte um cenário de baixo índice de produção deste tipo de entidades editoras. Ao mesmo tempo, isso é sintomático de um contexto de maior dispersão de edições por outras tipologias de edição, e uma queda considerável na quantidade de novos títulos em comparação com as décadas anteriores. Estamos, cada vez, mais, perante projectos pontuais em catálogos de reduzidas proporções, a partir de uma grande dose de iniciativa pessoal. Muitas destas editoras sobrevivem de um grande investimento por parte de quem as dirige e dos seus colaboradores directos, que habitualmente são os próprios responsáveis pela produção das edições para os seus catálogos ou mesmo para outras etiquetas. Muitas vezes, os músicos não têm cachet (na maior parte das vezes, na verdade). Habitualmente, os projetos estão dependentes de financiamento externo, uma vez que são raros os casos de empresas deste tipo que invistam do seu próprio bolso, dado que o retorno de vendas não é minimamente suficiente para cobrir sequer os custos de produção.7
Perante este cenário de um mercado de produção de conteúdos em manutenção e um mercado editorial disperso e residual, o maior catálogo tem sido concretizado fora do contexto empresarial, pelas edições do MPMP, Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa, uma associação cultural sem fins lucrativos.
A partir de 2012, o MPMP tem publicado novas gravações de música de compositores portugueses, desde o período medieval até ao século XXI, com um total de 48 edições publicadas até ao início de 2020. Entre essa produção destaca-se a colecção melographia portugueza,inteiramente produzida pelo próprio MPMP, mas também parcerias com a Universidade de Aveiro e a Escola Superior de Música de Lisboa, e outros projectos pontuais. A discografia editada pelo MPMP é, incomparavelmente, a mais regular e numerosa da última década em Portugal, o que ilustra bem a inexistência de uma indústria especializada e um mercado empresarial de edição e distribuição consistente que sustente um mercado de consumo associado, ao contrário do que se verificou nos últimos vinte e cinco anos do século passado e os primeiros do XXI.
Na última década, os canais de distribuição digital passaram a dominar o acesso à música gravada pela sociedade de consumo — quantos de nós já não deram por si a escutar um álbum via streaming online enquanto esse mesmo CD está pousado na estante ou mesmo na mesa à nossa frente! Se, por um lado, o mundo digital contribui para uma menor dependência das grandes estruturas empresariais, por outro lado, quebra por completo quaisquer barreiras e autonomias dos mercados locais. Nesse sentido, o mercado fonográfico português tem grandes dificuldades em ser suficientemente aliciante para os músicos, que têm muitas vezes de investir para gravar e, nesse sentido, preferem que as suas gravações sejam publicadas por editoras internacionais com uma maior implementação e distribuição à escala mundial, e um hipotético selo de qualidade superior, em comparação com as indies portuguesas.
Em contrapartida de um decréscimo da acção do sector empresarial, a última década tem sido marcada, dentro e fora de Portugal, pela emergência de etiquetas criadas pelos próprios artistas. Além da Miso Records, surgiu já na viragem para a presente década a MU Records (no âmbito da Associação Arte das Musas), fundada por Filipe Faria, para publicar os álbuns do seu grupo Sete Lágrimas (com Sérgio Peixoto) e de outros projectos pessoais, cujo catálogo supera já a dezena de títulos, comandando a dianteira neste tipo de edição em solo nacional nos últimos anos. Também neste capítulo, à imagem do que acontece com grandes instituições estrangeiras (como a Berliner Philharmoniker e a London Symphony Orchestra), importa salientar o caso das edições da Casa da Música, que tem rentabilizando os seus recursos humanos (artísticos) e técnicos através da gravação dos concertos das suas temporadas e de uma selecção desses registos para edição discográfica. No entanto, isso reflecte-se também numa menor capacidade de distribuição, uma vez que a Casa da Música não tem departamentos específicos para esse processo de pós-produção, tal como acontece também com muitos artistas que optam por fazer edições de autor. Facto é que, mais recentemente, a Casa da Música tem optado por estabelecer colaborações com importantes etiquetas internacionais para as gravações de alguns dos seus agrupamentos, como é exemplo o disco À Portugueza (Andreas Staier e a Orquestra Barroca Casa da Música, Harmonia Mundi, 2018), e também um projecto recentemente anunciado pelo seu director artístico (António Jorge Pacheco) de uma gravação de música de Fernando Lopes-Graça pelo Coro Casa da Música, a ser editada e distribuída por uma grande companhia internacional. Essa é, aliás, a abordagem que tem sido levada a cabo pela Fundação Calouste Gulbenkian desde o início de actividade dos seus agrupamentos, cuja primeira discografia remonta a 1966 e tem-se mantido regular até aos nossos dias, com edições para as mais variadas companhias internacionais, incluindo um total de 22 edições novas na última década.
No panorama da edição fonográfica de música erudita em Portugal na última década, um dos principais calcanhares de Aquiles tem sido, sem sombra de dúvidas, o estado de esquecimento, desinteresse, negligência a que tem sido votada a própria etiqueta do estado, PortugalSom. Estou a falar de um dos maiores catálogos de música erudita produzidos em Portugal desde 1977, e que não publica desde 2012. Estou também a falar de um plano discográfico nacional, impulsionado pela Divisão de Música da Secretaria de Estado da Cultura, que merece outro tipo de cuidado e consideração das entidades competentes, sobretudo havendo precisamente um Ministério com responsabilidades nesse domínio e que parece desconhecer a importância desse património, equiparável à da preservação do património literário ou iconográfico que, apesar das muitas queixas compreensíveis que possam ter, não sofrem do mesmo grau de alienação por parte do Estado —pergunto-me se há, sequer, no Ministério, a noção clara da existência desse fundo histórico e da sua relevância e valor patrimonial. A PortugalSom não foi alvo até ao início de 2020 (praticamente toda uma década) de qualquer iniciativa de continuidade, sendo hoje praticamente inacessível no mercado de venda de discos ou em arquivo. Mas, se porventura não tivesse havido condições (e houve) para investir em novas gravações, pelo menos seria exigível (e é) que se desenvolva urgentemente um plano de digitalização e distribuição online desse arquivo fonográfico8, que é também um espólio nacional riquíssimo. Até ao momento, isso ainda não foi feito, e desconheço a existência de qualquer plano desse tipo que esteja em prática, apesar de terem sido já por variadas vezes alertadas as entidades competentes para esse facto.
Esta questão leva a outra relacionada com o contexto da edição em Portugal, e uma das linhas emergentes e mais interessantes no quadro da edição fonográfica internacional: as gravações históricas. São fontes de enorme e inquestionável importância para o nosso conhecimento histórico, que tardam em ser uma prioridade no domínio da edição portuguesa.
São poucos os exemplos de projectos deste tipo, sendo talvez o mais impactante o conjunto de gravações com a Orquestra Sinfónica Nacional sob direcção de Pedro de Freitas Branco, publicadas entre 1995 e 1996 em 12 CDs pela PortugalSom9. A par disso, resumem-se aos dedos de uma mão, ou pouco mais, as edições deste tipo que têm sido levadas a cabo no nosso país, como por exemplo o disco Joaquim Simões da Hora In Concert (2016), a partir de registos em concerto recuperados no arquivo da rádio Antena 2 e do espólio particular do artista, que consistiu na única edição da Portugaler na última década.
Perante inúmeros arquivos (públicos e privados), espólios e colecções particulares, há um imenso e riquíssimo fundo documental e artístico que importa preservar, uma nova linha editorial que tem ainda um longo caminho a percorrer no nosso país. No entanto, quanto mais tempo passar, maior é o risco de se perder ou deteriorar uma maior quantidade de fontes, suprimindo-se assim pequenas peças da banda sonora da nossa história, que muitas vezes são os únicos registos que temos de determinado artista, repertório ou prática interpretativa (entre outros aspectos de importância histórica que estas fontes concentram).
A única iniciativa de dimensão nacional que foi nesse sentido consistiu na criação do Arquivo Sonoro Nacional, que poderá e deverá tornar-se um pólo de ampliação do nosso conhecimento histórico, mas que, tal como a biblioteca não coloca em causa a edição literária, também este tipo de arquivo não invalida, muito pelo contrário, a necessidade imperiosa de planos editoriais em torno de fontes históricas.
E as analogias entre a edição literária e fonográfica não devem parar aqui, porque há muito que a edição fonográfica pode emular dos procedimentos da literária, mas há, sobretudo, uma necessidade de que as entidades e agentes competentes tratem a primeira da mesma forma com que vemos ser tratada a segunda em diversos procedimentos exemplares. Por exemplo, com a criação de um Plano Fonográfico Nacional, à imagem do Plano Nacional de Leitura, que comprova repetidamente o seu sucesso na formação de diferentes gerações, a par com outras medidas indispensáveis ao domínio do mercado de produção e consumo deste tipo de bens, por exemplo equiparando o seu enquadramento fiscal ao da edição literária. Porque havemos de manter um IVA de 23% para bens culturais, artísticos e pedagógicos reproduzidos em fonogramas e, em contrapartida, uma taxa de 6% no que se refere a conteúdos com o mesmo enquadramento, mas publicados em livro (em papel ou formato digital)?
Ao contrário do que se verifica em outros sectores editoriais, onde há uma articulação mais eficaz entre as diferentes forças desses mercados, e um apoio mais cuidado por parte das entidades responsáveis, a história do mercado fonográfico português revela uma incapacidade constante para gerar uma indústria auto-suficiente nesse domínio, em parte, também, pela sua escala de micro-mercado, volátil e exposto às dinâmicas dos grandes pólos internacionais (por exemplo, Inglaterra, Alemanha, França, Japão e Estados Unidos da América).
Ao longo das últimas décadas, verificou-se um processo de transição de um mercado editorial dominado por majors, para um novo em que as entidades dinamizadoras são hoje, essencialmente, projectos independentes de produtores e artistas empreendedores. Impulsionam projectos e trabalham directamente entre si na produção de um master que, muitas vezes, só posteriormente é apresentado ou trabalhado pela editora, que é alheia a todo o processo de concretização do documento fonográfico que edita e distribui no mercado. Desta feita, a maioria do repertório gravado está directamente relacionada com os interesses de quem os dirige e de sinergias entre diferentes intervenientes com interesses comuns (música antiga, música contemporânea, música portuguesa ou o património organológico).
Essa é, sem dúvida, uma das principais características da edição de música erudita em Portugal na última década: um contexto de produção de conteúdos maioritariamente assente na acção de indivíduos ou grupos de intervenientes directamente ligados aos processo de produção, sem grandes empresas editoras e, muitas vezes, verificando-se uma desarticulação entre um mercado editorial e outro de produção fonográfica que ainda se mantém, e presumivelmente, ao que tudo deixa antever, conseguirá manter-se dentro dos mesmos moldes por mais tempo que o da edição.
Nesse sentido, uma outra característica desta última década é a acção perseverante de alguns produtores, técnicos e artistas que, num contexto que não é, de todo, o mais favorável, têm conseguido concretizar projectos relevantes sob vários pontos de vista, muitas das vezes às suas próprias custas, mas cujo mérito e benefício engrandece sobretudo a nossa cultura e a causa pública, ao mesmo tempo que se evidencia uma vontade presente e futura de continuar esse caminho, num terreno onde há ainda muito por fazer. Será uma pena se não se souber aproveitar e tirar os melhores frutos deste contexto, dando as devidas condições para responder aos desafios do presente e abrir portas para o futuro.
Os desafios mais críticos com que a indústria fonográfica de música erudita depara hoje em dia consistem essencialmente nas dinâmicas de edição, que ao longo de largas décadas estiveram cristalizadas, mas que no curto espaço de duas décadas se alteraram completamente, tendo nos últimos dez anos deixado mostras de já estar outra vez a abrir caminho para novas transformações. Essa constante transformação é, como vimos, uma marca da história da indústria fonográfica, dentro e fora de Portugal, que cabe a todos nós, agentes inseridos nesse contexto, entidades competentes no domínio da produção e preservação cultural, e também ao público, assumir como um importante e estimulante desafio para a produção e fruição musical, bem como para o registo e difusão indispensável da arte daqueles que fazem e fizeram música no passado, no presente e no futuro.
Notas
1 Jornal de Letras e das Artes n.º 1182 (20 de Janeiro a 2 de Fevereiro de 2016).
2 As mais antigas edições discográficas comerciais de música erudita produzidas integralmente em Portugal datam da década de 1950, entre elas gravações de repertório coral de Fernando Lopes-Graça, pelo Coro da Academia de Amadores de Música, publicadas pela editora Radertz (1956, RKA 114 e RKA 115).
3 Acerca desses mesmos factores, aconselho a consulta da tese de doutoramento de Paula Abreu, investigadora em Sociologia da Cultura da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra: A música entre a arte, a indústria e o mercado: um estudo sobre a indústria fonográfica em Portugal (2010). Disponível online no repositório da Universidade de Coimbra, em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/13832/1/Tese%20Paula%20Abreu%202010.pdf.
4 Após um período de grande intensidade no seio do catálogo Movieplay Classics entre os anos de 1988 e 2000, durante a primeira década do século XXI esta etiqueta publicou episodicamente até 2010. Em 2015, a Movieplay cessou por completo a sua actividade.
5 A Universal Music Portugal editou uma quantidade diminuta de títulos de música erudita nos últimos anos, com um único disco de referência na última década no panorama da discografia de música erudita nacional, o título Os Apóstolos, pelo Coro Gregoriano de Lisboa (Decca, 2011). O único caso de nota na Warner Classics (EMI Portugal) nos últimos anos foi um disco gravado pelo Coro Gulbenkian e a Orquestra Metropolitana de Lisboa, dedicado ao Magnificat e De Profundis de António Pinho Vargas (2017).
6 O período de maior fulgor da etiqueta Portugaler foi a primeira década do século XXI. Entre 2002 e 2009 esta editora publicou um total de dez edições, sendo que na última década apenas publicou um novo título (Joaquim Simões da Hora In Concert, 2016). Foi uma etiqueta dedicada a repertório de compositores portugueses, a cargo de destacados intérpretes portugueses e renomados artistas estrangeiros, com edições que se destacavam pela qualidade artística, técnica e um grande aparato editorial. Sobre esta série
discográfica, ver a rúbrica “Lusitana Musica – Clássicos da discografia portuguesa” da Glosas 17, Novembro de 2017 (pp. 71-75).
7 Todos estes projetos estão, hoje, dependentes de um financiamento pré-garantido, não havendo praticamente nenhum investimento por parte das editoras, sobretudo pelo facto de as mesmas não terem condições para o fazer. Esse financiamento pode advir de investimento do próprio artista, de patrocínios privados e (ou) apoios estatais, ou ainda através de ações de crowdfunding, o que tem alterado as estruturas de produção executivas.
8 Importa recordar que uma grande parte do catálogo da Discoteca Básica Nacional/PortugalSom foi reeditado em formato CD ao longo da década de 1990 e nos primeiros anos do século XXI, pelo que a inoperância é ainda mais preocupante dado que uma parte do trabalho de conversão de suporte analógico para digital já foi previamente efectuado, bastando levar a cabo as diligências necessárias para a sua distribuição online.
9 Sobre esta série discográfica, ver a rúbrica “Lusitana Musica – Clássicos da discografia portuguesa” da Glosas 18, Maio de 2018 (pp. 76-79).
Texto completo publicado na Glosa nº 20, p. 23-29.