entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santos

transcrição de Duarte Pereira Martins e Philippe Marques

E se passássemos ao 25 de Abril?

O 25 de Abril foi uma grande alegria para todos, incluindo para o meu pai. Levou algum tempo para que todos nós percebêssemos se aquilo era um movimento que teria algum futuro em termos de construção do estado democrático (estou a falar do PREC), portanto, toda a gente sofreu e teve angústias e não sabia como aquilo ia acabar. Houve lutas e conflitos, no caso do meu pai na Sociedade de Autores, na Emissora, saneamentos, enfim, situações de conflito normais nestes períodos de instabilidade e revolucionários, mas que foram todos ultrapassados.

Ele não foi propriamente perseguido?

Não. Foi alvo de mais críticas do que o habitual porque, como o país era livre, o Partido Comunista podia-lhe bater à vontade, mas não foi uma coisa que o incomodasse particularmente. Excepto a situação da Sociedade de Autores, que de facto foi complicada, mas que se resolveu porque houve um grupo de democratas, no verdadeiro sentido do termo: o meu pai, a Natália Correia, o David Mourão-Ferreira e até o Urbano Tavares Rodrigues (de quem aliás o meu pai era muito amigo) que acabaram por pôr termo àquele disparate. E no próprio Luís Francisco Rebello, às tantas, o bom senso acabou por imperar.

Que tipo de coisas eram?

Sanearam funcionários, houve lutas entre eles, expulsaram a Direcção.

O teu pai exercia alguma função?

Pertencia ao concelho fiscal ou a uma coisa qualquer na Direcção. E além disso era uma personalidade respeitável porque ele estava lá desde o início, não da SPA propriamente dita, mas de toda a formulação dos anos 40. A partir do momento em que ele se inscreve, no princípio dos anos 50 (ele e o Luís Francisco Rebello, que eram muito amigos, conheciam-se da Juventude Musical, imagino eu), o meu pai apoiou-o sempre na defesa do Direito de Autor, porque era das pessoas que achava que os autores tinham o direito de viver do seu trabalho. Ele lutou por isso desde os anos 40. Teve um conflito grave com o Lopes-Graça, porque este recusava-se a cobrar direitos de autor ou bens materiais por qualquer peça que fizesse. Achava que era do povo, portanto se era do povo ele não tinha que cobrar nada, mas enfim, ele tinha outros apoios e alguém o sustentava, porque senão não seria possível. Além disso sempre dava aulas aqui e acolá com grandes dificuldades, como é evidente, mas isso todos eles. Portanto teve um grande conflito com o Graça e chatearam-se; eles até se respeitavam e tinham uma esplêndida relação, mas tiveram um grande conflito por causa disso. Depois aquilo lá passou, até porque o próprio Luís Freitas Branco ainda era vivo e resolveu a disputa. Mas pronto, o meu pai estava na SPA desde o início e era uma personagem respeitadíssima, mesmo pelos compositores da música ligeira. É curioso que, quando ele decidiu por razões financeiras compor umas cançonetas (teria os seus 20 anos) foi mostrá-las ao José Galhardo e ao Frederico Valério, que acharam que ele não tinha jeito nenhum e disseram-lhe: «Ó Joly, vá lá compor sinfonias que para cançonetas temos jeito nós!». Portanto, era uma pessoa respeitada, lá organizou um grupo e fez com que todos aqueles conflitos, felizmente, acabassem.

Foi um período difícil, ele na altura ficou só com o ordenado da rádio e as encomendas, eu estava a entrar para a faculdade e a minha irmã foi para a Alemanha estudar violino logo em 78. A coisa estava complicada porque havia menos encomendas e eu tentei até arranjar um emprego mas os meus pais chegaram à conclusão de que se eu arranjasse um emprego nunca mais acabava o curso e obrigaram-me a acabá-lo. As coisas lá correram o seu curso normal, com as dificuldades habituais em famílias daquela época: prescindimos das coisas acessórias, concentrámo-nos no essencial e passámos perfeitamente aqueles anos conturbados, que foram anos também muito excitantes.

O meu pai continuava a viajar muito e a ter muitas solicitações, nomeadamente por causa do Prémio UNESCO. Às tantas é convidado, por esta altura, a seguir ao 25 de Abril, para integrar o júri do Prémio UNESCO, passa a ir a Paris todas as Primaveras. Os festivais de Espanha continuam a acontecer.

Ela vai aceitando cada vez menos encomendas por razões de saúde. No final dos anos 70 passou por tudo, teve um esgotamento grave, é-lhe detectado um problema de circulação cerebral no lobo esquerdo do cérebro (faz uma das primeiras TACs em Portugal, no Porto) e começa a ser medicado mas está, de facto, dois ou três anos sem compor nada de novo, praticamente a acabar obras de encomendas já feitas em anos anteriores.

Isso coincide com a altura em que comecei a ter aulas com ele, que foi em Abril de 81. Lembro-me que sofria horrivelmente dos olhos.

Exactamente. E porque a vista lhe começa a falhar, toma uma decisão drástica que é não compor praticamente mais obras sinfónicas, que exigem partituras de 35 pautas, portanto exigem muito mais da vista, e passa a compor obras de câmara. Nos últimos anos da vida, praticamente o que faz é compor obras de câmara.

Lembro-me de ele estar a compor os Cantares Gallegos e a cantata As Sombras, de que me ia mostrando acordes.

Os Cantares Gallegos são de 83, mas se vires a orquestração, não é uma grande orquestra e ele quis realmente fazer isso. Ainda bem que escreveu a obra, apesar da atribulação que foi a estreia. Só a conhecemos agora, mas ainda bem que a conhecemos, que está aí e que está gravada! Entretanto ele recuperou e até retomou o seu lugar de professor no Conservatório, que tinha iniciado em 71 e mantivera até 76, ano em que houve uma alteração da lei que dificultava as acumulações e ele foi obrigado a sair, porque o ordenado não cobria sequer o passe! Em 82 retoma o lugar de professor do Conservatório, que mantém até Julho de 88, até ao dia da morte. Portanto, as coisas estavam a correr francamente melhor. Compôs bastante. Tinha-lhe sido encomendada uma ópera para o Lisboa 94 [Capital Europeia da Cultura].

Uma ópera?

Uma ópera, sim senhor, sobre a “Ilha dos Amores”. Foi ele que sugeriu o tema.

Para Lisboa 94? Com tanta antecedência?

Sim, eles estavam na altura a preparar… Na altura a Câmara era gerida como deve ser. Não sei quem lá estava, se era o Sampaio ou o Abecassis, mas ele assinou o contrato em Abril de 88. Porque disse logo que precisava de dois ou três anos para compor uma ópera.

E não existe nada disso?

Não, porque o meu pai faleceu em Julho. Ele propôs o tema e propôs o libretista, que era o Vasco Graça Moura; sobre a “Ilha dos Amores” era uma escolha evidente. Mas acabou por falecer em Julho, de repente.

E quanto ao reencontro tonal dessa fase final…

Digamos que ele sofre um desencanto com a Democracia que é um pouco mais precoce que o nosso. Não sei se o PREC o marcou um pouco mais porque era mais velho, nós somos de outra geração. Não sei o que terá acontecido, mas ele deve ter imaginado que a Democracia, do ponto de vista cultural, ia trazer muita coisa que não trouxe e muita abertura que não trouxe. As ideias, as mentalidades e os hábitos no domínio da cultura são muito lentos a mudar, quando mudam! Portanto, ele talvez não tivesse visto as mudanças que antecipava, nomeadamente em relação ao ensino, ao Conservatório, às escolas… Continuava a batalhar pelas mesmas coisas, continuava a ter que exigir que lhe pagassem os direitos de autor, continuavam as orquestras a fazer fotocópias e a aldrabar. Continuava tudo na mesma! E em 88, com 14 anos de Democracia, ele se calhar desencantou-se mais cedo do que nós.

Continuava a não haver edição musical, e ele conheceu muito poucos discos com a obra dele…

Não conheceu! Quer dizer, só conheceu o da 5ª Sinfonia e o dos Três Esboços Sinfónicos dirigido pelo Cassuto.

Foi inesperada a sua morte?

Foi, porque ele estava a recuperar. Aliás, em 85 e 86 fartou-se de escrever. Em 88 recebeu um prémio pelo maior número de obras estreadas, um prémio do Festival do Estoril, daquelas galas que o Estoril fazia em que davam prémios aos artistas portugueses. Isto antes da SIC e dessas coisas, o Casino Estoril tinha uns mecenas.

Em 88 há Aquella tarde, poema dramático estreado nos Encontros de Música Contemporânea, o Staccato Brilhante, o Improviso para Clarinete e Piano, que é a última obra…

Sim, tudo isso em 88. Ele escreve muito nos últimos anos. São é obras mais do tipo música de câmara. Mas estava perfeitamente. Foi um embolismo cerebral, daqueles que pode acontecer a qualquer um de nós, em qualquer altura.

Um embolismo rebentou uma veia no cérebro.

Exactamente, um coágulo que rebentou com a veia. Foi fulminante. Foi a dormir, aliás. Tomou um comprimido para as dores de cabeça, foi-se deitar e não acordou. Só quando lhe levantámos a cabeça é que percebemos o que lhe tinha acontecido, porque estava toda negra atrás. Mas não sofreu, coitadinho. O meu pai era uma ternura não era? A bondade em pessoa.

O melhor do Joly vinha ao de cima na sua relação com as filhas.

Nós adorávamos o meu pai. Era uma coisa mesmo especial. Um misto de amor filial com amor maternal, porque tínhamos um sentido de protecção muito grande que nos tinha sido incutido pela minha mãe quando éramos pequenas, porque o meu pai era muito distraído. E portanto, cada vez que saímos com ele a minha mãe ficava um bocado assustada e dizia: «Tomem bem conta do pai!». Portanto, para além de tomarmos conta de nós próprias, tínhamos de tomar conta do pai. E isso deu-nos um sentido de carinho e de protecção muito especial.

E como é que vocês lidavam com a proverbial distracção?

Ríamos também! Ele era o primeiro a rir-se de si próprio, não tinha importância nenhuma. Contava-nos imensas histórias, brincava connosco, escrevia coisas para nós. Fartou-se de escrever pecinhas para nós e para os amigos, quando estávamos a estudar os vários instrumentos. Depois, estudávamos em conjunto, a minha mãe fazia uns lanches e nós tocávamos para os amigos ouvirem. Ajudava-nos a fazer os trabalhos de Composição, por vezes com resultados hilariantes porque o que ele escrevia nem sempre estava conforme as regras (as regras do Vincent d’Indy, que ainda era o que se dava no Conservatório, na época). E, portanto, as professoras, que conheciam muito bem a obra do meu pai e eram amigas dele, por exemplo a Constança Capdeville, que foi minha professora de composição, ou a Maria de Lurdes Martins, que foi professora da minha irmã, davam imediatamente por ela que aquilo não tinha sido feito por nós, porque quando perguntavam como é que tínhamos resolvido tal acorde, nós, que tínhamos copiado aquilo à pressa no metro para ir para o Conservatório ficávamos sem saber o que responder. E uma vez a Maria de Lurdes Martins zangou-se muito com a Leonor porque ela usou quintas paralelas, que era uma coisa que era um pecado capital em composição. Disse-lhe que aquilo estava errado, ela tinha-se fartado de explicar que aquilo estava errado. E a minha irmã, sem pensar no que estava a dizer nem onde estava: «Errado? Isso não pode estar errado porque foi o meu pai que fez!» (risos). No dia seguinte, quando o meu pai chegou ao Conservatório, os colegas olhavam para ele e riam a bandeiras despregadas e o meu pai não percebia (não era Carnaval, não tinha a cara farruscada…). Até que houve uma boa alma que lá lhe contou da saída da minha irmã na aula de Composição porque as pessoas choravam a rir em todo o Conservatório.

Uma história fantástica…

E levava-nos a passear ao jardim zoológico todos os fins-de-semana, adorava os animais. Os animais vinham ter com ele. Os tratadores ficavam doidos porque os cães, crianças e animais eram atraídos pelo meu pai.

O teu pai tinha qualquer coisa de criança dentro dele…

Exactamente. E os tratadores ficavam desesperados: os elefantes viam-no a aproximar-se da porta, começavam logo a puxar aquela corrente e vinham-lhe enrolar a tromba à volta da cintura. Cumprimentavam-no sempre, a Rita e já não me lembro do nome do outro. Os macacos ficavam doidos. Ele ia para a aldeia dos macacos e os tratadores ficavam malucos, para já porque ele fazia uma coisa que não se deve fazer, que é dar-lhes amendoins, e às tantas tinha 50 macacos ao pé dele a pedir amendoins. Era muito divertido, adorávamos sair com ele. A minha mãe, coitada, é que ficava um bocado assustada.

Havia idas ao cinema?

Imensas. Íamos muito, adorávamos cinema e desde que começámos a ficar mais cresciditas e a poder entrar, a minha mãe até nos fazia penteados especiais que nos punham mais velhas porque havia aquela história dos maiores de doze. E havia cinemas que tinham porteiros que faziam uma perninha mas que eram porteiros do S. Carlos ou do Trindade e que, portanto, eram conhecidos e nos deixavam passar.

De que tipo de cinema é que ele gostava mais?

Luis Buñuel. De todos os italianos – Fellini, Ettore Scola, o Vittorio De Sica (adorava o Milagre de Milão e os Ladrões de Bicicletas); era um apaixonado do Lucchino Visconti; e também cinema francês – o Claude Chabrol; também algum cinema espanhol que aparecia muito cá na época (agora praticamente não aparece, tirando o Almodóvar) – o Carlos Saura, o Buñuel, todos esses. Ele adorava cinema e íamos ver tudo e mais alguma coisa, nos antigos cinemas de reprise que agora já não existem mas que passavam aquelas cópias muito antigas dos anos 40 e 50. Às vezes íamos a pedido nosso, meu e da minha irmã – eu lembro-me que a minha irmã, quando estreou o Música no Coração, foi ver duas ou três vezes e depois no verão era sistematicamente reposto. Pois ela, como já não tinha ninguém que tivesse cabeça para a acompanhar ao Música no Coração, pediu ao meu pai. A minha mãe ficou assim um bocadinho indignada mas o meu pai disse logo que sim, claro. E adorou o filme! Os meninos a cantar muito afinadinhos aquela música que é muito bem feita, que aqueles americanos sabem compor – ficou encantado! Chegaram a casa os dois todos contentes depois de ver o espectáculo. E dizia a minha irmã para a minha mãe: «Está a ver que o pai gostou, eu disse que o pai ia gostar!»… •

Fotografia: Passeando com a família em Sevilha, durante o Festival de Música de Sevilha, em Outubro de 1973.

Artigo publicado na Glosas nº 3, p.18-30.

Sobre o autor

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Alexandre Delgado nasceu em Lisboa em 1965. Foi aluno particular de Joly Braga Santos. Recebe uma bolsa do Ministério da Cultura para prosseguir os seus estudos em Composição e Violino no Conservatório de Nice, tendo trabalhado com os professores Jacques Charpentier e Barbara Friedhoff, e concluindo o curso com distinção em 1989. Entre as suas obras, destacam-se o 'Concerto para viola e orquestra', 'Poema de Deus e do Diabo' e a ópera 'O Doido e a Morte'. Em 2001, o seu 'Quarteto de Cordas' foi gravado em CD pelo Arditti Quartet. Como violetista, ganhou em 1987 o Prémio Jovens Músicos. Foi membro da Orquestra Juvenil da Comunidade Europeia (1988-1989) e da Orquestra Gulbenkian (1991-1995). Tem-se dedicado ao estudo da música portuguesa, em especial a vida e obra de Luiz de Freitas Branco. Foi crítico musical do jornal 'Público' (1991-2001) e assinou o programa 'A Propósito da Música' na Antena 2. É autor do livro 'A Sinfonia em Portugal' (ed. Caminho 2002). Desde 2002 é director artístico do Festival de Música de Alcobaça.