A discografia de música erudita portuguesa tem sido marcada por pequenos passos, numa paradoxal cadência de momentos espaçados que se configuram como grandes etapas, iniciativas pontuais de propenso alcance grandioso, ou actos isolados valorosos, potenciados por diversos intervenientes que ousaram arriscar neste domínio (num mercado nacional complexo), mas que, em suma, deixaram contributos incontornáveis para a história dos últimos 50 anos da vida musical portuguesa. Os discos são, muitas vezes, injustos. Revelam-se retratos fixados de diferentes momentos, por diferentes personalidades artísticas, e muitas outras figuras que ficam, na maior parte dos casos, escondidas na penumbra – produtores, técnicos de som, musicólogos, entre outros. São estes e outros argumentos que tornam essencial olhar para trás, conhecer os meandros da banda sonora do património musical português e, nunca será demais, estudar e conhecer o passado com a perspectiva do presente, para podermos projectar um futuro melhor.

Uma das primeiras colecções estruturada de raiz, e verdadeiramente icónica, que marcou um ponto de partida fundamental na nossa discografia foi Portugaliae Musica. O nome não será desconhecido de muitos melómanos, e facilmente o associarão à histórica colecção de partituras que a Fundação Calouste Gulbenkian editou durante as últimas 4 décadas do século xx. No entanto, essa mesma chancela serviu um propósito mais abrangente da acção fundamental que a Fundação Gulbenkian teve para a revitalização da vida musical portuguesa a partir do final da década de 1950. Precisamente com o mesmo nome, e talvez menos conhecida, Portugaliae Musica consistiu numa colecção discográfica de 14 edições em LP, editados entre os anos de 1966 e 1971, em 2 séries – a primeira em 9 volumes publicados pela Philips francesa, no seu catálogo específico denominado “Trésors Classiques”; a segunda em 5 volumes do catálogo da Archiv Produktion1.

Num período em que a produção discográfica nacional era muito incipiente, esta primeira iniciativa do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian no domínio da promoção de gravações de repertório português2 resultou de uma parceria com as já referidas majors europeias, em que toda a produção técnica esteve a cargo de equipas das próprias editoras, que se deslocavam a Portugal para registar esse “novo mundo”, talvez até um pouco exótico quando comparado com o repertório canónico que prevalecia nos catálogos discográficos internacionais. O repertório era exclusivamente dedicado a obras de compositores portugueses dos séculos xvi ao xix, apresentado por alguns dos grandes intérpretes da cena internacional na época, a par com o Coro e Orquestra Gulbenkian em pleno e auspicioso início de carreira.

Os 3 primeiros volumes, pela Philips, saíram logo no ano de 1966. O primeiro consiste num disco a solo com música para cravo (obras de Seixas, Avondano, Sousa Carvalho, entre outros compositores do século xviii e inícios do xix) na interpretação do italiano Ruggero Gerlin (1899-1983). O segundo volume foi dedicado a música orquestral com a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Renato Ruotolo, a interpretar um programa composto por música de Carlos Seixas (1704-1742), João de Sousa Carvalho (1745-1798) e a Sinfonia em Ré Maior de João Cordeiro da Silva (1735-c.1808), que encontra aqui uma das raras gravações de que foi alvo até aos nossos dias. O terceiro volume seria dedicado a polifonia vocal de mestres até então praticamente desconhecidos, como Manuel Cardoso (1566-1650), D. Pedro de Cristo (1550-1618) e Estêvão Lopes Morago (c.1575-c.1630), com o Coro Gulbenkian, sob a direcção de Olga Violante (1902-1969) e Pierre Salzmann (1934-2007), respectivamente directores titular e adjunto do conjunto vocal na época.

Os primeiros 3 discos desta colecção, como será fácil perceber, serviram como um bom cartão de visita para o que viria a surgir nos anos seguintes. A diversidade de repertório escolhido correspondia na perfeição a esse propósito: música orquestral, música para tecla e música sacra; ao que viria a ainda a juntar-se o repertório profano com a gravação de uma selecção de vilancicos do Cancioneiro Musical e Poético da Biblioteca Públia Hortênsia (o Cancioneiro de Elvas), pelo Coro Gulbenkian. Mas também, e ainda mais preponderante para o impacte no mercado internacional, a concretização da primeira gravação integral de La Spinalba de Francisco António de Almeida (c.1702-1755) – na verdade, a primeira gravação integral de uma ópera em Portugal –, pela Orquestra Gulbenkian, sob direcção de Gianfranco Rivoli (1921-2005)3, com um elenco de solistas que contavam com nomes como Lídia Marimpietri, Romana Righetti, Ugo Benelli, e o tenor português Fernando Serafim. O álbum teve um sucesso considerável no mercado nacional e internacional, carimbado com o galardão do Grand Prix de l’Académie du Disque Lyrique de 1969. 

Ainda na série Philips, entre 1966 e 1969, contam-se discos a solo dos organistas Geraint Jones (1917-1998) e Pierre Cochereau (1924-1984) e da cravista Huguette Dreyfus (1928-2016) – os dois últimos com programas inteiramente compostos por música para tecla de Carlos Seixas. Apesar de não estarmos, em alguns casos, perante uma prática interpretativa assente em instrumentos e interpretações rigorosas do ponto de vista dos fundamentos do conhecimento histórico, que nessa década começava a emergir no seio do movimento da “música antiga”, estas gravações são um excelente retrato de uma época de transição, onde muitas vezes a consciência historicista se fundia com as circunstâncias de um nicho de prática interpretativa ainda a desencadear os seus primeiros passos no nosso país, onde por exemplo os cravos históricos eram ainda suplantados pelos modelos mais modernos, como é o caso do disco que H. Dreyfus dedica à obra de Carlos Seixas.

As gravações dos primeiros 9 discos de Portugaliae Musica, tiveram lugar no Mosteiro de São Vicente de Fora (Lisboa), quartel general de um dos órgãos mais emblemáticos e monumentais da península Ibérica. O quarto volume, a cargo do organista britânico Geraint Jones, regista pela primeira vez esse instrumento. Apesar de não ser o órgão no estado que hoje conhecemos, após o profundo restauro levado a cabo entre 1992 e 1993 que restituiu toda a sumptuosidade e fidelidade histórica a esse belíssimo instrumento4, esta gravação permite-nos identificar o seu carácter sonoro único, através de interpretações que reflectem muito bem uma qualidade da articulação e destreza marcantes na prática interpretativa de Geraint Jones.

Em 1969, e já na série editada pela Archiv Produktion, a Orquestra Gulbenkian reúne novamente um programa de repertório inédito, com música orquestral de António da Silva Leite (1759-1833), Marcos Portugal (1762-1830), António Leal Moreira (1758-1819), o Concerto em sol menor hoje em dia atribuído a Carlos Seixas, com Cremilde Rosado Fernandes como solista em pleno germinar da sua carreira, e a primeira gravação da Abertura de Penélope que João de Sousa Carvalho escreveu em 1782 e cujo manuscrito se encontra preservado num dos grandes tesouros nacionais: a colecção de música da Biblioteca Nacional da Ajuda. Essa Abertura viria ao longo das décadas seguintes a figurar em sucessivas gravações dedicadas à música portuguesa para orquestra do século xviii, onde as aberturas de ópera acabaram por sair beneficiadas, uma vez que consistiam uma boa parte do repertório orquestral que se encontrava disponível em edições modernas em partitura. Nesta gravação, o repertório não se encontrava, no entanto, ainda em edição moderna, tendo sido as fontes musicais preparadas especialmente o efeito, e então posteriormente editadas e publicadas em partitura na colecção homónica publicada pela fundação.

Esta segunda parte de Portugaliae Musica, editada pela Archiv, mantém a transversalidade de repertório. A par com algumas das grandes páginas de música orquestral, conta-se um volume, lançado em 1970, com interpretações da grande organista catalã Montserrat Torrent ao órgão da Sé Catedral de Évora, com gravações pioneiras de algumas das mais belas composições para tecla de Manuel Rodrigues Coelho (c.1555-1635), Heliodoro de Paiva (1502-1552) e António Carreira (1525-1597).

A série editada pela Archiv entre 1969 e 1971 contou ainda com uma edição de luxo em 3 LP dedicada à oratória La Passione di Gesù Cristo de João Pedro Almeida Mota (1744-c.1817), e ainda um Te Deum que João de Sousa Carvalho escreveu para o Natal de 1792, e um outro disco com uma selecção de Motetes para solistas, coro e orquestra, compostos por três grandes nomes do nosso século xviii: Carlos Seixas, António Teixeira (1707-1774) e Francisco António de Almeida, num disco onde se destacam os solistas Jennifer Smith e Fernando Serafim, acompanhados pelo Coro e Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Michel Corboz, num dos pontos cimeiros desta discografia.

Estas duas séries foram uma grande mostra para o mercado internacional, onde é evidente, também, a curiosidade e interesse de intérpretes, editoras e público por um repertório e património completamente desconhecido e inédito até então. Portugaliae Musica contou com edições pomposas, que não deixam nada a desejar quando comparadas com muitas do nosso tempo, e apetrechadas com notas à margem a cargo de nomes como Santiago Kastner (1908-1992), João de Freitas Branco (1922-1989) ou Filipe de Sousa (1927-2006), sobretudo os dois primeiros, nomes incontornáveis da musicologia portuguesa do século passado. Esta foi a primeira colecção a divulgar a música portuguesa de forma consistente e estruturada, constituindo novidade não apenas no âmbito português mas também no mercado internacional. No entanto, em 1984 a colecção já se encontrava completamente esgotada, tendo sido recentemente reeditada em CD uma pequena selecção de música sacra e de órgão, numa CD-Box de 50 discos denominada The Golden Age of Archiv Produktion (2015).

O legado do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian repercute-se de variadíssimas formas e com impacte assinalável em diferentes contextos. Mas esta colecção é também resultado de um processo articulado entre edição de partituras, programação musical e registo fonográfico sem precedentes no nosso país e que merece ser valorizado. A recuperação e revisitação destes discos é sempre um passo imprescindível quando queremos olhar para trás e conhecer a história da música em Portugal.

NOTAS

1 A Archiv Produktion foi uma etiqueta criada pela Deutsche Grammophon, em 1945, especificamente para criar um catálogo dedicado ao repertório de música antiga, com gravações levadas a cabo por uma primeira geração de intérpretes (entre eles Helmut Walcha, Dietrich Fischer-Dieskau, August Wenzinger e o Schola Cantorum Basiliensis, Hans-Martin Linde, Karl Richter ou Ralph Kirkpatrick) interessados na música e instrumentos históricos. Segundo o musicologo inglês Timothy Day, em A Century of Recorded Music (2000), Yale University Press, p. 109: «Archiv Produktion, described as the ‘History of Music Division of the Deutsche Grammophon Gesellschaft’, and the company emphasized its distinctiveness: ‘the musical works are offered… in their complete authentic form based on the original versions performed faithfully to the original style using historical instruments in “living” interpretations by highly qualified specialist performers n recordings of the highest standard using the latest technical developments’.» (p. 109)

2 A Fundação Calouste Gulbenkian, apesar de nunca ter publicado no domínio da edição discográfica, levou a cabo um importante investimento e mecenato, ao longo dos anos, quer na realização de gravações dos seus próprios agrupamentos (Coro e Orquestra Gulbenkian), quer no apoio a gravações de repertório português por intérpretes nacionais e internacionais, em diversas editoras do mercado português e estrangeiro; ver Esgaio, Rui & Vieira, João Forjaz (2008) Fundação Calouste Gulbenkian – 1958-2008: Factos e Números, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 129.

3 Maestro titular da Orquestra Gulbenkian entre 1967 e 1970.

4 Esse restauro foi levado a cabo no âmbito das iniciativas de recuperação do património instrumental, integradas na Lisboa’94-Capital Europeia da Cultura. O restauro foi efectuado pelos organeiros Christine Vetter e Claudio Rainolter, sob a supervisão do organista Joaquim Simões da Hora (1941-1996).

Texto publicado na Glosa nº 17, p.74-77.

Sobre o autor

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Produtor e musicólogo, é investigador do INET-md na Universidade Nova de Lisboa (UNL) e doutorando em Musicologia Histórica sob a orientação de Rui Vieira Nery. É Mestre em Musicologia Histórica desde 2010 pela UNL onde cursou sob a orientação de David Cranmer. É autor de várias publicações, destacando-se a edição "Espólio Manuel Ivo Cruz: Música Manuscrita Portuguesa e Brasileira" (UCE-Porto, 2013) e “Joaquim Simões da Hora: Intérprete, Pedagogo e Divulgador” (Edições Colibri, 2015). É membro associado da AEAA – Association Européenne des Agents Artistiques desde 2014. Assinou a produção discográfica de discos para editoras como a Grand Piano (Naxos), Arkhé Music, Artway Records e Portugaler.