(a propósito do mais recente CD da colecção benjamim)

A TÍTULO DE INTRODUÇÃO…

Por que motivo fazemos música? Será devido a uma necessidade de dar expressão a sentimentos e misteriosas relações com o intangível, só possíveis através da arte? Ou será que fazemos música, principalmente, porque esta actividade nos faz bem?

Assim como se passa com tudo aquilo de que gostamos, nutrimos o desejo de partilhar esse bem. É por isso que organizamos espectáculos e gravamos CDs: porque acreditamos que podemos contribuir para o bem de quem nos ouça, partindo da inocente premissa de que aquilo que nos agrada pode também agradar a outros.

No caso da música para crianças há ainda uma outra componente: queremos dar o que imaginamos que gostaríamos de ter recebido quando éramos pequenos, ou, para quem tem a felicidade de ser irmão, pai, avô, tio ou professor, de oferecer um presente aos meninos com quem brincamos.

Assim, escrever música orquestral para público infantil não é necessariamente uma iniciativa “salvacionista” — como a actual moda académica reza expressar — que parte da premissa de que a orquestra clássica europeia é um modelo superior a outros. É, sim, um gesto espontâneo de quem, metido nesse meio, acha tão giro o que ouve que quer vê-lo partilhado.

Assim também se passa com a intenção pedagógica: quem gosta muito de aprender quer muito ensinar, para que este seu prazer seja alargado a mais pessoas. Isto não significa que considere que o tipo de conhecimento que está a transmitir seja superior a qualquer outro.

Embora haja tantos géneros e tipos de agrupamentos musicais a criar música para público infantil, não me parece que devamos considerar que a contribuição da vertente orquestral de índole pedagógica já não seja necessária, ou que se deva limitar à reprodução de repertório histórico (no que se incluiriam a Sinfonia dos brinquedos de Leopold Mozart, possivelmente de 1759, O carnaval dos animais de Camille Saint-Saëns, composto em 1886, Pedro e o lobo, de Serguei Prokofiev, criado em 1936, e O guia de orquestra para uma pessoa jovem, de Benjamin Britten, composto em 1945). Há agrupamentos orquestrais que, nos seus programas para escolas, alternam constantemente algumas destas obras.

O projecto d’O gato das botas nasceu da crença de que é importante e vivificante continuar a inventar música nesta vertente, contribuindo para que as crianças tenham novas experiências musicais — neste caso, envolvendo orquestra. Sendo um projecto de vivência de música orquestral assumidamente pedagógico, era preciso decidir em que pontos deveria incidir, ou, como se diz em “eduquês”, quais deveriam ser as unidades temáticas abordadas. O gosto pessoal do seu autor e as suas convicções ditaram as escolhas, procurando cruzar três dos seus maiores pontos de interesse: a orquestração, a retórica e as questões de estilo, usando a história contada como meio de enquadrar os recursos explorados.

A escolha d’O gato das botas, segundo a versão dos irmãos Grimm, deveu-se não só ao enorme manancial de imagens sonoras que o conto permite explorar como também — naquele momento, em 2009 — à vontade de homenagear estes dois grandes filólogos alemães, justamente duzentos anos após o lançamento do seu primeiro livro de contos infantis, no qual este se incluía.

A QUESTÃO TÍMBRICA

Assim como no Pedro e o lobo e n’O carnaval dos animais, usa-se nesta obra a associação de determinados timbres a determinadas personagens. Para tal, a orquestra sinfónica tradicional foi alargada com muita percussão, um trio de flautas de bisel (que contribuem para as situações tipicamente medievais que o conto refere), um trio de saxofones (para o ambiente jazzístico que governa as actividades do gato) e um coro infantil.

Na obra, tanto os instrumentos têm oportunidades de se mostrar enquanto solistas como em diversas combinações, tanto tradicionais como inusitadas, e ainda em majestosos tutti — de acordo com as necessidades dramáticas que a história foi despertando no compositor.

O coro infantil não só está implicado em todas as cenas de turba, como se pode constituir numa ponte importantíssima entre a obra e o jovem ouvinte, propiciando à criança, através do reconhecimento do seu próprio timbre, o sentir-se metida dentro da orquestra. O facto de o coro cantar em latim tanto induz uma atmosfera historicista, que convém ao conto, como permite que a obra possa ser narrada em qualquer língua, uma vez que os coros de todo o mundo estão habituados a cantar em latim.

O principal aspecto pedagógico desta obra, no que toca à exploração tímbrica, diz respeito ao facto de se ouvir diversas vezes a mesma música — quando a história aplica processos de acumulação por repetição, reminiscências ou referenciações a situações anteriores —, tocada por agrupamentos orquestrais distintos, resultando daí efeitos retórico-musicais divergentes apesar de se partir de materiais musicais, em alguns casos, absolutamente iguais. Esta pode ser uma fagulha decisiva para o despertar da sensibilidade do ouvinte quanto ao poder transformador de significados que a arte da orquestração é capaz de potenciar.

A RETÓRICA MUSICAL

A pluralidade e o contraste de sentimentos que o conto encerra, assim como a plasticidade sonora do que é descrito, dão azo a uma exploração de figuras de estilo muito grata. A orquestra, movida pelo narrador, tanto sublinha as emoções que emergem do conto como fabrica efeitos sonoplásticos para as aldrabices que o gato vai perpetrando.

Grande parte do equilíbrio que se procurou dar a este conto musical parte do uso de Leitmotiven para diferentes estados psicológicos (alegria, tristeza, medo, confiança, entusiasmo, letargia, orgulho, derrotismo, cólera, dúvida, espanto e muitos outros), que se vão alternando pela narrativa afora. Sem que haja qualquer tipo de classificação ou organização, acaba o ouvinte por passar por diversos estados de alma, postos em música através do meio orquestral.

AS QUESTÕES DE ESTILO

O parâmetro do estilo, se é que assim o podemos enquadrar, é dos mais delicados e frágeis de todo o estudo da música. Não haverá musicólogo sério que não trema antes de usar a palavra “estilo”, e com razão, pois as fronteiras estilísticas são um assunto académico muito delicado.

Numa composição para público infantil, por seu turno, os contrastes estilísticos ficam livres do ónus das definições, dando leveza à invenção, resultando muito eficientes quando usados como efeitos humorísticos. A grande diferença entre a composição para adultos e para crianças reside precisamente neste ponto: para os adultos, ouvir uma obra é, consciente ou inconscientemente, compará-la a referências anteriores, ou seja, é verificar em que pontos se assemelha ou diverge de outras que se conhece e que se toma como modelos; para uma criança há mais espontaneidade na escuta, pois ainda não teve contacto com tantos marcos por onde pense ou sinta que se deve guiar.

Escrever música para crianças é por isso uma maravilhosa oportunidade de ultrapassar ideias preconcebidas, redescobrindo e transformando os nossos próprios conceitos de estilo, neste caso em nome da narração de uma história.

O TEXTO FINAL DO NARRADOR

No final do CD, Jorge Castro Ribeiro, após referir mui resumidamente a constituição da orquestra, apresenta separadamente trinta e cinco passagens da obra, nominando os instrumentos envolvidos e as suas características expressivas no âmbito do conto. Estes exemplos, cada um com a sua própria faixa, são ouvidos imediatamente após o comentário, durando somente alguns segundos.

A inclusão deste extra após os sete quadros que constituem o conto musical propriamente dito seguiu dois objectivos: por um lado, o isolamento destas passagens permite ao pequeno ouvinte ter acesso facilitado, por exemplo, àquela que destaca o seu instrumento favorito (bem sabemos como as crianças podem às vezes ser obsessivas!); por outro, para um professor que queira usar o CD em actividades de sensibilização para a música orquestral, podem estas faixas simplificar-lhe muitíssimo a vida, uma vez que enunciam e organizam um vasto leque de conteúdos.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO…

A composição desta obra acabou por aglutinar muitas das minhas características e manias (o longo envolvimento com a cultura alemã, o interesse por retórica poético-musical, a especialização em música antiga, a prática do jazz…), mas não teria sido possível sem o conjunto de intervenientes que tive oportunidade de dirigir e que faço questão de nominar. Antes de mais nada, vive esta gravação, em grande parte, da narração de Jorge Castro Ribeiro. Muitas vezes os promotores de espectáculos tendem a convidar para narrar espectáculos infantis pessoas cujos nomes atraem público, mas que na verdade não têm nenhuma experiência na matéria. Jorge Castro Ribeiro organiza e narra concertos infantis com orquestra há mais de uma década, por todo o país. No melhor dos sentidos: nota-se! E foi excelente ter podido dirigir a Orquestra Filarmonia das Beiras, numa versão para orquestra de câmara desta mesma obra, dezanove vezes antes de a gravar. Foi assim que ela foi ganhando maturidade. Quando agradeço à orquestra não me refiro só aos instrumentistas, que receberam publicamente o meu agradecimento no final de cada récita, mas também ao seu director artístico, António Vassalo Lourenço, que tem depositado em mim tanta confiança, testada ao extremo neste projecto, com uma formação tão grande, levando o Bruno e o Artur, secretário e encarregado da orquestra, respectivamente, a me dar muitas provas de profissionalismo e simpatia.

O Paulo Bernardino, maestro dos Pequenos Cantores de Coimbra, representados pela incansável Maria do Céu, partilhou activamente comigo a ideia de que música infantil deve ser levada muito a sério, tendo-me dado muita liberdade para brincar com os meninos, pelo que acho que conseguimos juntos, no trabalho com o coro, um bom equilíbrio entre controlo e espontaneidade.

Por fim destaco o trabalho do Joaquim Branco, numa obra tão difícil de captar e montar, e a editora MPMP, que teve a coragem de abraçar o projecto, trazendo-o cá para fora.

Texto publicado na Glosas nº15, p.66-67.

O CD pode ser adquirido no site da CODAX.

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