Entrevista a Carla Caramujo

Muito obrigado, Carla Caramujo, por ter acedido ao pedido da Glosas para esta entrevista em torno de António Fragoso e da sua obra para canto e piano, lançada em disco no início deste ano, em que evocamos o centenário da morte do compositor, e no âmbito de um amplo programa comemorativo preparado pela Associação António Fragoso.

Eu é que agradeço imenso este convite e esta conversa em torno de António Fragoso, um nome que me é muito caro. Aproveito ainda a oportunidade para agradecer à Associação António Fragoso o generoso convite para gravar a obra integral do compositor para canto e piano, neste ano que lembra o centenário da sua morte, e, por fim, ao João Paulo Santos pelo privilégio de o ter comigo durante todo este processo de estudo e ensaios que culminou nesta gravação. Foi um projecto feliz do princípio ao fim!

Considera que Fragoso tenha formado uma concepção clara de estilo vocal nas obras que nos deixou, ou seja, é possível falarmos da sua música vocal como um corpus coeso?

A obra de António Fragoso, dada a sua morte precoce aos 21 anos, vítima de febre pneumónica, não é vasta, mas é bastante surpreendente e rica, sendo a sua música vocal uma parte muito significativa. Não sei se se poderá falar de um corpus coeso, mas esta é constituída por três corpos que se interligam naturalmente (se assim lhes quisermos chamar), ou três fases de composição, embora a distância temporal entre elas não seja muito grande. A primeira é constituída pelas Toadas da minha aldeia, a segunda pelas canções com poemas de Verlaine e a terceira pelas Canções do Sol poente, sobre poemas de António Corrêa d’Oliveira. As Toadas da minha aldeia marcam o início da sua composição vocal. São obras muito simples, compostas para os serões de sua casa, mas já recorrendo a excelentes poetas portugueses de finais do século xix como Guerra Junqueiro, Julio Diniz ou Gomes Leal. São canções escritas com muito bom gosto, refinadas. Aliás, refinamento, para mim, é uma das palavras-chave quando se fala de António Fragoso. Já existe, nestas Toadas, uma intenção clara de ser original, aliada a muito bom gosto, sobretudo se pensarmos que foram escritas entre os 11 e 12 anos. Claro que se o compositor não tivesse continuado a escrever e a desenvolver o seu estilo, julgando pelas Toadas, hoje certamente a sua obra não seria objecto de tanto interesse e estudo, não passando de uma bela curiosidade. No entanto, a segunda fase da obra vocal demonstra uma escrita muito mais elaborada, muito mais madura, elegante mas arrojada, escolhendo a poesia de vanguarda de Paul Verlaine, autor desconcertante e pouco consensual para a época. Esta fase coincide com a ida para Lisboa, o ingresso no Conservatório Nacional e a vivência na capital. 

António Fragoso é um jovem de província, proveniente de uma aldeia de Cantanhede. Aos 16 anos, deixa-se deslumbrar e absorve toda a realidade cultural e social de Lisboa muito rapidamente. As correntes artísticas e literárias de vanguarda chegavam da Europa, ecoavam nos salões lisboetas e Fragoso “bebeu” e incorporou todo o espírito e todas as maravilhas e contradições desse fim-de-século. A escolha de poetas como Verlaine é surpreendente, mas muito reveladora do que seria uma personalidade muito peculiar, curiosa, aberta à modernidade e sedenta de novidade e experiências. Imagino que a elegância da sua música reflectisse também algum dandismo e culto de imagem, de certa forma próprias de um jovem. Antes de musicar os poemas de Verlaine, aos 18 anos, um ano antes, António Fragoso escreve Consolation com poema de Fernand Gregh, numa clara tentativa de aproximação e interiorização do estilo francês. A última fase consiste na composição das Canções do Sol poente, com um cariz marcadamente nacional. Não popular, mas sim nacional. É uma escrita onde os princípios europeus da escrita de Lieder estão interiorizados, mas onde o cunho da identidade nacional e pessoal estão muito presentes. Creio que as canções com poemas de Paul Verlaine e as Canções do Sol poente constituem um marco sólido da sua escrita e deixam adivinhar – caso ele não tivesse falecido prematuramente – uma grande criação de escrita vocal.

Do ponto de vista da abordagem musical à Poesia e da forma como isto se reflecte numa escrita vocal, encontra diferenças significativas nas Canções do sol poente, sobre poemas de Corrêa d’Oliveira, e nos Poèmes saturniens, sobre poemas de Verlaine?

Naturalmente. Os Poèmes saturniens são o paradigma da absorção e do fascínio pelas correntes de vanguarda, como, por exemplo, o Impressionismo, que já ecoava por toda a Europa. O interesse de Fragoso por autores como Ravel, Fauré e Debussy é notório, não só nestas canções, como também na sua obra para piano solo. E, mais uma vez, ressalto a admirável capacidade em criar algo seu, novo original perante tais influências em alguém tão jovem. Admirável também é o tratamento do texto. A acentuação perfeita, o evidenciar harmonicamente de determinadas palavras… magnífico! E pensar que passa da escrita daquelas Toadas da minha aldeia, já elegantes mas tão ingénuas, para estas canções de harmonias subtis, arrojadas e cobertas de duplos sentidos. Estas canções demonstram uma ânsia de modernismo, um certo inconformismo. Serenade é certamente uma obra-prima da composição musical portuguesa da primeira metade do séc. xx. É tão perfeita em todos os sentidos que acredito que, mesmo que Fragoso tivesse vivido até aos cem anos, esta canção passaria incólume em todas as suas revisões! Tem as cores perfeitas para um poema pouco óbvio, perverso e instável emocionalmente. Como se uma certa acidez e candura coabitassem estranhamente. Fragoso retrata essa estranheza na perfeição, sem lhe retirar a beleza melódica a que uma serenata “obriga”.

Outra canção de Fragoso que considero perfeita é a Canção da fiandeira das Canções do Sol poente. É perfeita na progressão harmónica, na forma, no tratamento do texto e na captação do espírito bem português de uma certa nostalgia, de saudade sempre presente, mesmo nos momentos de grande felicidade ou esperança. Tenho constatado que os portugueses, mesmo que irradiem felicidade, nunca perdem a nostalgia… E estas canções são isso mesmo. O afirmar de uma identidade nacional, depois de consolidar e ganhar confiança nas linguagens e correntes europeias. Sente-se influência de autores internacionais e consagrados, como Grieg, Schumann e Chopin, até alguns laivos veristas – em Natal no Céu, por exemplo, lembra levemente Mascagni. Os modelos europeus são por ele assimilados perfeitamente. Os franceses que rompiam com as tradições, como Fauré, Debussy e Ravel, são alvo do seu estudo e fascínio, mas o seu próprio estilo já é aqui muito bem definido. Não é por acaso a escolha de poemas de cariz popular de António Corrêa d’Oliveira para marcar esta identidade nacional. É curioso que lhe atrai a poesia popular, mas não a música popular. Ele procura, nestes poemas saudosistas, a criação de uma linguagem sua nacional, até regionalista – recorre muitas vezes a imagens da terra natal; A primeira romaria, só para citar um exemplo.  Uma linguagem popular, sim, mas sua, criada por si. Original. O que eu acho maravilhoso é que o refinamento da escrita (e personalidade certamente…) de António Fragoso eleva estes poemas muito além do carácter popular. É como se a linguagem popular adquirisse uma dimensão profundamente humana.

O que mais exige, ao cantor e ao pianista, a música vocal de António Fragoso?

A obra vocal de António Fragoso não é uma escrita difícil em termos de leitura e junção da parte vocal e da parte pianística. Exige cumplicidade, entendimento e diálogo, naturalmente. No entanto, o desafio da sua obra é de outra dimensão: reside na interpretação. A este nível, não existe tanta clareza através da escrita, pois muitas das partituras revelam uma escrita que seguramente iria ser revista pelo autor, fosse pelo uso da notação ou pelo natural “olhar de novo” para a sua própria partitura. Ele morreu muito jovem, e produziu todas estas canções genialmente, mas em muito pouco tempo. Apesar do seu autodidactismo e grande talento, Fragoso ainda se estava a familiarizar com técnicas de escrita, notação musical, e, sobretudo, na sua mente deveria coexistir um fervilhar tal de ideias em constante ebulição que até é difícil de perceber como conseguiu absorver e colocar em papel tanta coisa tão clara e rapidamente… Naturalmente não houve tempo de rever, pensar e reescrever algumas destas canções a fim de personalizar a interpretação. (Ninguém pensa que vai morrer aos 21 anos!) Não obstante, o material que existe é muito bom. A nós, intérpretes, coube-nos fazer uma deliciosa viagem no tempo. E aí o João Paulo Santos foi um mestre e um grande guia! Pensar, imaginar, estudar e mergulhar na época. Imaginar António Fragoso, jovem, no seu contexto histórico, nacional e europeu, nos compositores, poetas e correntes estéticas da época, para entender o seu propósito e tentarmos chegar a um equilíbrio entre o que nos deixou escrito e aquilo que seria o objectivo final do autor, naturalmente conferindo-lhe também o nosso cunho pessoal enquanto artistas e pessoas. A nossa interpretação não alterou em nada a sua música. Não quero ser mal-entendida. Nós fomos inteiramente fiéis à escrita do compositor. No entanto, trabalhámos no sentido de, interpretativamente, irmos além da escrita. À luz do que íamos conhecendo da vida, da personalidade, da formação, dos gostos, curiosidades, interesses e vivências do compositor – sempre contextualizando-o na sua época, social, histórica e sobretudo artisticamente –, fomos construindo uma estética que fosse a mais aproximada possível do seu espírito. Neste sentido, o desafio para ambos, cantor e pianista, é ilimitado. 

Considero que a minha experiência de interpretação dos mais variados compositores do século xix e primeira metade do século xx, mesmo aqueles cuja obra significativa é posterior a Fragoso, foi fundamental para mim durante este processo. Ter interpretado e conhecer praticamente todas as canções das diferentes fases de Debussy foi uma grande ajuda. Não querendo com isto dizer que Fragoso escreveu como Debussy, ou Fauré, por exemplo, pois já afirmei que é notável a escrita própria, inventada, única de Fragoso, mas Debussy era um nome sonante, “cheirava-se” no ar da época, entranhava-se, amando-se ou detestando-se. Fragoso admirava a música de Debussy, sonhava conhecê-lo… A influência e inspiração é natural e notória. Negá-lo seria diminuir Fragoso.

Tendo um contacto necessariamente muito vasto com a obra vocal de António Fragoso, e pensando como a obra de um autor desaparecido aos 21 anos constitui tanto uma promessa quanto uma interrogação, as canções que aqui gravou, em primeira gravação integral, com o pianista João Paulo Santos, sugerem-lhe alguma resposta à inevitável questão: “Que música poderia ter Fragoso escrito se tivesse vivido mais tempo”?

Especular sobre a obra de alguém que em tão poucos anos desenvolve uma linguagem tão própria tem tanto de perigoso como fascinante. Desde as Toadas da minha aldeia que António Fragoso demonstrou ter uma personalidade própria – não alheada da estética em voga na época, mas uma linguagem sua, original. A sua personalidade também revelava um gosto cuidado, refinado. Por outro lado, a sede de conhecimento e a peculiaridade do seu interesse pelas correntes e autores de vanguarda verifica-se em muitas das suas obras e intensificam-se nos dois últimos anos de vida. Em 1917, ele é aceite na Schola Cantorum de Paris, na classe do próprio Vincent d’Indy. Acredito que o seu estilo se aperfeiçoasse imenso com o rigor que d’Indy lhe iria impor. No entanto, acredito que António Fragoso, uma vez em Paris, rompesse com a rigidez e estética imposta pelo fundador da Schola Cantorum e, dada já a sua admiração eloquente por Ravel e Debussy, se viesse a aproximar da estética e dos universos sonoros altamente inovadores que estes compositores nos deixaram. E dentro deste universo, creio que, mesmo que o absorvesse na sua totalidade, criaria uma linguagem própria, pois tinha talento mais que suficiente para isso. Não sei exactamente o compositor que viria a ser nem com quem a sua linguagem mais se poderia comparar mas, tenho uma certeza… Seria manifestamente surpreendente e muito belo!

Como foi o trabalho que levou a esta gravação?

O processo de trabalho que culminou nesta gravação da obra integral de canto e piano de António Fragoso por encomenda da Associação António Fragoso foi dos mais gratificantes de toda a minha carreira – sobretudo pelo privilégio das horas incontáveis de ensaios com o João Paulo Santos, que foram um verdadeiro deleite e uma alegria constante. O João Paulo reviu todo o material existente e disponível, embora sem nunca ter acesso aos manuscritos das canções, que, infelizmente se encontram em parte incerta. Muito já se especulou sobre o seu paradeiro, mas infelizmente não se encontram. 

O material utilizado nesta gravação foi todo preparado e revisto pelo João Paulo Santos. Com base neste material, iniciámos uma viagem de diálogo musical e interpretativo muito enriquecedor. Aprendi imenso sobre o contexto musical português da época. Aprendi a dar-lhe valor e ganhei uma curiosidade e grande avidez por repertório português. Considero ter tido uma formação muito sólida e abrangente pelas escolas que passei mas, no que toca à cultura musical portuguesa – reflexo um pouco do facto de ter ido muito jovem para fora –, tudo o que aprendi foi maioritariamente em ensaios e conversas com o João Paulo Santos ao longo dos últimos dez anos. Este projecto trouxe-me uma vontade imensa de cantar repertório português – um prazer inexplicável em poder cantar na minha língua materna. Cada palavra destas canções teve um profundo impacto em mim, e foi por mim tratada com especial atenção, do ponto de vista técnico e estético, mas também com muito carinho. Antes de gravarmos, tivemos a felicidade de apresentar as Canções do Sol poente e os Poèmes saturniens em recital, num programa em que incluímos canções de Debussy, Francisco Lacerda e Luiz de Freitas Branco, este último professor de António Fragoso. O recital decorreu na Casa das Artes de Famalicão e foi fantástico perceber o quanto todos estes compositores se interligavam e o quão bem Fragoso ficava no meio deles! Eu e o João Paulo nunca vimos António Fragoso como um génio isolado – pelo contrário, vimo-lo sempre como um ser de enorme talento que bebeu da influência de grandes talentos e a desabrochar por entre outros grandes talentos. 

Por outro lado, sempre adorei História, e este projecto levou-me a mergulhar na história de Portugal na época conturbada da Primeira República e da Primeira Guerra Mundial. Levou-me a querer saber muito mais sobre compositores e artistas portugueses desta época e a perceber o quanto a linguagem da música é universal e sem fronteiras. (E unificadora, sem querer mudar o rumo desta conversa…) Mas levou-me também, de forma surpreendente e quase arrebatadora, a querer saber mais sobre as minhas raízes adormecidas. O saudosismo e o carinho de António Fragoso pela sua terra Natal, a Pocariça, fez-me reflectir sobre a minha própria infância. Há coincidências que nos transcendem… Cantanhede deixou de ser apenas o nome que ecoa nas minhas lembranças de fim-de-semana, de vindimas de Outono em casa dos meus avós e de entardeceres quentes, de sol dourado, para passar a ser sinónimo de música que me comove e toca profundamente.

Outro aspecto feliz desta gravação é que duas das Toadas da minha aldeia são duetos. Juntou-se a nós a minha amiga e colega, a meio-soprano Raquel Luís, o que aumentou ainda mais o calor humano deste trabalho. À Raquel, agradeço também, aqui, toda a sua entrega e entusiasmo durante os ensaios e gravação. 

A edição do CD contou com outro excelente músico, o André Granjo. Outro feliz encontro. A gravação foi feita no auditório do Conservatório de Música de Coimbra em três sessões não consecutivas. A última terminou de lágrimas nos olhos…

Fotografia de Carla Caramujo: Ana Castro.

Fotografia nº2: TNSC.

Texto publicado na Glosa nº 18, p. 44-47.

Sobre o autor

Imagem do avatar

Estudou cravo, órgão e música antiga em Lisboa, exercendo intensa actividade, quer a solo, quer com agrupamentos de música antiga e orquestras. Licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde estudou Filologia Clássica e em cujo Centro de Estudos Clássicos é investigador. Prepara actualmente a primeira tradução portuguesa das Cartas de Plínio. Integra a Direcção da revista 'Glosas'.