O seu pai, Armando Prazeres, fundou a Orquestra Pretoriana Sinfônica. Qual foi o impacto da trajetória do seu pai na sua formação?
Foi definitiva, porque nascer em um berço musical faz muita diferença para quem escolhe a profissão de músico. Desde cedo, tive contato com a música de concerto, mas também com a música coral. A presença do meu pai foi importante, mas a da minha mãe também. Minha mãe cantava. Tinha uma ligação muito forte com a música de concerto, até antes de conhecer meu pai. Isso ajudou bastante a nossa vida para seguir esse rumo. A gente ouvia isso com muita naturalidade em casa, ao contrário de outras crianças e adolescentes da minha geração. Eu tenho um irmão que é maestro também, um pouquinho mais velho que eu. E para a gente foi tudo muito normal. É uma coisa que não pode parecer normal para um adolescente da década de 80, 90, para quem a música de concerto era pouquíssima. Ainda é, mas ainda era mais, até porque os veículos de comunicação não são como hoje.
E a sua família é portuguesa, não é? Chegaram a ouvir música portuguesa? E música clássica portuguesa?
A gente escutava fado de vez em quando. É uma questão mais cultural mesmo, como o samba para a gente, como o tango é também para a Argentina. Mas não tínhamos muito costume… Quanto à música de concerto, os compositores portugueses não são muito divulgados como os os italianos, os franceses ou os alemães. Principalmente os do período barroco, e do período romântico também. A gente ouvia pouca música portuguesa. Estávamos muito mais acostumado com os costumes portugueses do que propriamente com a música.
Já tocou em Portugal? Como foi essa experiência?
Já toquei com uma pequena camerata e um coro chamado Calíope. É um coro aqui do Rio de Janeiro. Tocámos em alguns lugares da Lisboa. E foi uma experiência maravilhosa, porque Lisboa é uma cidade linda. E a gente foi muito bem recebido lá. Foi uma pequena turnê. Fomos para Badajoz também, pertinho de Lisboa. Em 2008 ou 2009. Eu não tinha nem o cabelo branco ainda, era um garoto…
Vocês não têm planos para passar com esta nova turnê por Portugal?
Pois é, a gente conheceu esse violinista que vai tocar com a gente no Festival de Belém do Pará, aqui no Brasil, e havia vários portugueses que foram convidados para esse festival e que ficaram encantados com o nosso concerto, que fizemos com o Linus Roth meio a toque de caixa, com pouquíssimos ensaios. Tivemos logo uma conexão musical muito forte. E eles ficaram de convidar. Com a pandemia acabou por não acontecer. E Linus Roth, esse violinista alemão, tem contatos muito concentrados na Alemanha, Suíça e Polónia… Infelizmente, não vamos a Portugal este ano.

Você faz um milhão de coisas. É regente da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, maestro associado da Petrobras Sinfônica, diretor artístico, violinista e regente da Johann Sebastian Rio. Como é conciliar todos esses papéis?
Na verdade, a Johann Sebastian Rio não tem uma série oficial de concertos. Fazemos repertório mais barroco, com uma orquestra de câmara, e eu tenho que tocar, tenho que manter o violino em dia também, porque eu estou como primeiro, como spalla. Mas agora está sendo uma loucura. Eu tenho que fazer o trabalho de violinista, o trabalho de diretor artístico e o trabalho de produção também. Eu estou um pouco na produção desta viagem internacional. É sempre uma responsabilidade a mais.
No Theatro Municipal, estou no meu terceiro ano como regente e tem sido para mim um grande aprendizado. Ser maestro de uma casa de ópera abarca muitas coisas. Não é somente concertos. Você tem que estar ligado. Tem que cuidar daquilo tudo. Cuidar de uma ópera não é cuidar somente de uma orquestra. Tem que cuidar de tudo o que está acontecendo. E para além de ópera tem balé e outros repertórios completamente distintos. O maestro de fato é o elo entre os músicos que estão no fosso e a cena que está acontecendo. É uma responsabilidade enorme. Eu fiz agora o meu primeiro semestre e até o mês passado estava regendo uma ópera. E tem sido maravilhoso estar no Theatro Municipal, que é muito importante no Brasil e no mundo. A gente está na batalha para que ele volte a ser o que foi no passado: uma grande conexão até com a Europa, com grandes solistas, Maria Callas, Richard Strauss…
E a Petrobras Sinfônica é a orquestra na qual eu me reconheço como músico, desde os primórdios. Atuei como spalla, como primeiro violino, durante vinte e um anos. Agora, este ano, eu fiz, em acordo com a orquestra, essa transição para me tornar maestro associado. Há repertório sinfônico, mas também um repertório popular, que abarca rock, música brasileira, pop, tudo que você possa imaginar.
Eu, aos 48 anos, ainda tenho energia para aguentar isso. Não sei até quando, entendeu? A vida do maestro é uma vida muito dinâmica nesse ponto. Neste momento, está sendo intenso, está sendo maravilhoso, mas não sei se isso vai perdurar durante muito tempo.
Fiquei curiosa com o modelo de gestão da Petrobras Sinfônica. Parece que são os próprios instrumentistas que definem o projeto administrativo. Como é que funciona?
A orquestra fez 50 anos. Tem 38 anos de patrocínio da Petrobras, que é o patrocínio mais longevo da história do país, um patrocínio artístico sem interrupção. Esse é um motivo de muito orgulho para todos nós, para mim em especial, para o meu pai que fundou essa orquestra… Desde 2008, houve uma mudança: a gestão passou realmente a ser dos próprios músicos. A gente tem eleições bienais de direção artística, composta por três músicos, de um conselho diretor, composto por três músicos também, e um conselho fiscal também composto por três músicos.
É claro que os músicos administram, mas contratam profissionais das respectivas áreas para dar conta da comunicação e do financeiro. Mas a palavra final, está sempre dentro do conselho, do conselho diretor em especial, para decidir os rumos da própria orquestra, e do conselho artístico, que decide a parte artística. Eu fiz parte do conselho artístico até o ano passado.
Durante a pandemia, inclusive, não foi nada fácil a gente programar, sobreviver como orquestra e fazer parte do conselho artístico. Essas reuniões aqui do Zoom eram recorrentes, diárias, exaustivas, e a gente teve que se adaptar. Mas é bom ter a visão do músico: os prós e os contras. A visão do músico é perante uma orquestra, tem em conta os objetivos do grupo. Tudo é muito conversado entre nós, em assembleias anuais e semestrais também. Quando surgem problemas, a gente discute. Primeiro, obviamente, em comitês, mas também discute entre todos os músicos.
Eu acho que isso tem servido de exemplo no Brasil para outras orquestras. Acontece muito em grandes orquestras haver conselhos com pessoas notáveis mas sem músicos. Sendo que algumas decisões talvez não sejam tão boas na visão de um músico. O músico nem sequer tem acesso a mudar qualquer tipo de diretriz.
Claro, a gente tem essa administração dos músicos com uma parceria muito plena, muito saudável e com uma grande interlocução com a Petrobras. Isso faz muita diferença também. A Petrobras está diretamente em contacto com os músicos, entendendo as suas demandas e vice-versa: os músicos também entendendo as demandas da empresa, dos rumos que a orquestra pode vir a tomar…
Eu queria que falasse um pouco da Academia Juvenil. Você é um dos fundadores. Quais são as dificuldades de levar a música clássica para um outro tipo de contexto sócio-educativo no Brasil?
A Academia fez 12 anos, se não me engano, agora. Fui um dos fundadores. Fiquei sete anos. A Academia Juvenil da Petrobras Sinfônica é diferente de outros projetos sociais que existem no Rio de Janeiro e no Brasil, porque ela atinge uma faixa etária muito específica: o momento do ingresso na universidade.
Na universidade de música, para quem não sabe, você não ingressa do zero. Você precisa fazer um teste de habilidade específica, do instrumento que você tem que tocar, ou da voz, e tem que fazer provas de ditado melódico, solfejo, ou seja, tem que ter uma boa noção de música para ingressar. Os projetos pelo Rio de Janeiro te dão uma entrada na música, claro, tocando em orquestras, mas essas habilidades são pouco desenvolvidas. Então, notou-se que várias crianças jovens que faziam parte de projetos sociais, na hora de entrar na universidade, não conseguiam. Ficavam a vida toda em projetos sociais, porque não conseguiam dar o salto, o pulo do gato. É claro que a Academia Juvenil não atende só projetos sociais, ela é aberta à comunidade, dependendo da situação financeira.
Reunimos por volta de 25 alunos por ano e damos justamente essa injeção de conhecimento musical teórico, ensinamos esse jovem a tocar em orquestra e temos aulas individuais de instrumento. O índice de aprovação é perto de 100% na universidade.
Por isso, o projeto é motivo de muito orgulho e acho que para uma orquestra hoje, uma orquestra grande, isto é quase uma obrigação educacional e social. Procuramos abrir o mercado de trabalho para outros jovens que estão vindo, para outras gerações que estão vindo, impulsionando essa transformação social que a música é capaz de fazer.

Sobre a Johann Sebastian Rio, pode contar um pouco sobre a formação, o ideário?
A Johann Sebastian Rio é uma orquestra que faz 10 anos este ano e é uma reunião de amigos excelentes. Quando começou, foi a primeira orquestra no Brasil a ser lançada pela internet. A gente faz um vídeo e tinha um diretor de vídeo bem interessante que mora em Barcelona, Bruno Vouzella, e ele pensou em um plano-sequência, uma coisa totalmente diferente. Mal sabíamos o que era plano-sequência na época, e foi um boom aqui no Rio de Janeiro quando a gente lançou a orquestra.
A Johann Sebastian Rio veio para trazer um outro olhar também para a música de concerto, porque a gente não toca só o repertório de concerto, a gente se mistura, se mistura com a dramaturgia, se mistura com a poesia, se mistura com a dança.
Viajámos pelo Brasil, fomos à Alemanha ano passado… e esse alemão, Linus Huth, com o qual vamos tocar agora esse álbum Sambach, é nosso padrinho musical. Temos um excelente arranjador na orquestra, que é fundador comigo, Ivan Zandonade. Foi ele quem propôs o nome Sambach. Estamos já pensando no segundo álbum, o Sambach 2. O Sambach vira um blend e a gente poder fazer outras misturas com outros ritmos brasileiros que não necessariamente são samba, temos música nordestina, temos forró, machiste, frevo, xaxado, xote… Há tanta coisa interessante que podemos misturar…
A Johann Sebastian Rio é um trocadilho com Johann Sebastian Bach. Bach, em alemão, é ribeiro…
Como é que você sente a recepção desse público europeu perante a música brasileira popular e erudita? Há diferenças?
Sempre é uma questão nas conversas, até com meus colegas da música popular ou com pessoas que não têm o menor contato com a música de concerto e ouvem Lady Gaga, por exemplo. Ela veio aqui no Rio, fez esse show maravilhoso, mas a música popular ou a música comercial tem um lugar e a música de concerto tem outro. A música de concerto demanda um local de introspecção que a gente exercita, é um lugar diferente. Em muitos momentos, ela é colocada no mesmo lugar, mas elas não se comparam. Voltando à sua pergunta, a música popular brasileira quando chega à Europa causa um frisson realmente diferenciado, e a música de concerto brasileira entra no lugar da música de concerto europeia. Também porque existe uma formalidade na própria escrita dessa música. Claro que a gente vai tocar Batuque de Lourenço Fernandes, que é uma música sinfônica brasileira que tem uma percussão e já começa com batuque, e isso até pode dar um outro tipo de viés, mas normalmente nas obras de Villa-Lobos, Cláudio Santoro e Ernâni Aguiar, eu imagino que os europeus coloquem isso no pote da música de concerto.É claro que, quando a gente começa a tocar no concerto Villa-Lobos não há batuque, há uma melodia linda e ela é escutada pelo público dessa forma. Daí a pouco a gente vai entrando no Samba do Avião, Garota de Ipanema, vai dando uma quebrada e aí vem samba mesmo. Aí sim, aí o olhar é outro. Você vê até um brilho no olhar das pessoas que estão assistindo e na última música, Mais que nada, a gente faz uma brincadeira: o público canta também. A música popular ter essa vantagem: podemos trazer o público bem para perto e eu acho que os brasileiros sabem fazer isso muito bem. Fomos para a Alemanha tocar num lugar lá em Wiesbaden, ali no castelo, aí daqui ae daí a pouco estava todo mundo cantando Jorge Ben Jor. Eles não esperavam isso: saem realmente extasiados do concerto e para a gente é muito gratificante.
Fotografia principal: © Daniel Ebendinger