A justa homenagem prestada nos últimos meses de 2012 pelo Centro Ward de Lisboa, com a colaboração da Direcção do Património Cultural (DGPC) e da Diretora do Museu da Música, à insigne musicista Júlia d’Almendra, na louvável exposição “Evocação de Júlia d’Almendra nos 20 anos de seu falecimento”, rememora uma das mais expressivas figuras da música em Portugal, com ampla atividade no século XX em várias áreas da práxis e do pensar musical.

Deve-se ao Centro Ward de Lisboa – Júlia d’Almendra, dirigida pela gregorianista e educadora musical Idalete Giga, a manutenção de uma chama acesa por sua mestra, fundadora do Centro de Estudos Gregorianos, criado em 1953 e estatizado em 1976, passando a denominar-se Instituto Gregoriano de Lisboa.

Meu relacionamento com Júlia d’Almendra surgiu em torno de Claude Debussy. Sabia de sua alta competência na matéria, pois lera sua tese apresentada no Institut Grégorien de Paris (Les modes grégoriens dans l’oeuvre de Claude Debussy, Paris, Gabriel Enault, 1947-1948), e conhecia outros artigos relevantes da autora sobre o compositor francês. Atravessei o Atlântico em 1981 para conhecer sua opinião sobre meu livro O som pianístico de Claude Debussy (São Paulo, Novas Metas, 1982). Três noites de intensa sabatina e um prefácio não esperado, escrito por Júlia, selaram uma amizade que perduraria até sua morte.

Evocar Júlia d’Almendra é prazeroso e reconfortante. Poucas vezes conheci uma personagem musical tão desprovida de vaidade. Generosa em todos os sentidos, durante anos abrigou-me em sua morada, Rua da Alegria, 25, 1.o andar, todas as vezes que me deslocava a Portugal para recitais ou palestras. Jamais me negou uma informação musical sobre quaisquer temas, mormente Debussy. Sua rica biblioteca ficava à minha inteira disposição e todo um dimensionar da notável musicista ficaria claro quando me ofereceu, com seu despojamento peculiar, todos os livros preciosíssimos concernentes a Debussy. Bibliografia muito rara, pois referente às obras escritas sobre o autor de Pélleas et Mélisande na primeira metade do século XX.

Quando tinha dúvidas na imensa área da música modal, Júlia as dirimia com paciência absoluta, não apenas fazendo gráficos sinuosos, a fim de mostrar-me os contornos do canto gregoriano, a agógica e sua finalidade expressiva, a acentuação a ratificar o fluxo da prosódia, mas também a dar conselhos que me serviriam doravante no trato da linha musical. Assim também Júlia sempre entendeu Debussy, compositor que, segundo a grande mestra, sorveu dessas linhas sinuosas e do modalismo como um todo, seja gregoriano, seja ele vindo do leste europeu ou do Extremo Oriente.

A imensa troca de missivas entre nós ficaria sintetizada em artigo que escrevi sobre o tema (“A Transparência através das Cartas”, in Júlia d’Almendra – In Memoriam, Lisboa, Centro Ward de Lisboa, 2004, pp. 13-23). Posteriormente doaria essas cartas ao Centro Ward, que leva o seu nome.

Desse convívio musical, verdadeira lição de vida, sobraria muito tempo para o cotidiano: as conversas descontraídas que se prolongavam durante a madrugada e que começavam em sua sala de jantar, quando tomávamos uma sopinha regada a um bom tinto; nossas refeições no Ribadouro, quando tantas vezes a dileta amiga Idalete esteve presente; as visitas às doçarias; os passeios pelas cercanias de Lisboa; as viagens a Tomar, onde em três oportunidades me apresentei em recitais promovidos pelo conservatório, dirigido pela também saudosa Manuela Tamagnini; o olhar sempre a entender a natureza sob a égide espiritual…

Como curiosidade, aprendi com Júlia a disciplina do sono, se assim ouso dizer. Certo dia afirmou-me que, por volta de seus quarenta anos, percebera que dormia muito e tinha pela frente uma série de projetos para serem realizados em decênios. Passou a reduzir periodicamente quinze minutos do precioso sono, até chegar a quatro horas, não mais, do reparador descanso. E doravante assim levou sua vida… Aprendi com Júlia essa “técnica”, que mantenho até hoje.

Júlia d’Almendra é dessas figuras de que jamais nos esquecemos. Até hoje, sinto-a caminhar ao meu lado nesse longo passeio musical. Inefável musicista e amiga.

Texto publicado na Glosa nº 8, p. 74.

Sobre o autor

Imagem do avatar

José Eduardo Martins nasceu em 1938 na cidade de São Paulo. Estudou Piano com José Kliass, Marguerite Long e Jean Doyen. É autor de diversos livros sobre música, de quase uma centena de artigos publicados em diversas revistas e periódicos de vários países, e realiza paralelamente edições críticas das obras do compositor romântico brasileiro Henrique Oswald (1852-1931), por ele redescoberto. Doctor Honoris Causa pela Universidade Constantin Brancusi da Romênia e Acadêmico Honorário da Academia Brasileira de Música. Recebeu em Bruxelas, em 2004, na Embaixada do Brasil, a Ordem do Rio Branco. Em 2011, foi agraciado com a comenda 'Officier dans l'Ordre de La Couronne', outorgada por Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas.