Morais de Sousa, compositor e pianista português que viveu no século XX, é um entre vários outros que caiu no esquecimento. Era um músico proeminente, possuidor de um estilo de composição muito próprio, distinto, não influenciável pelo gosto vigente e marcado pela utilização da atonalidade e diversas experiências rítmicas.

VIDA

Gabriel da Cruz Morais de Sousa, filho do industrial de lanifícios Alfredo da Cruz Sousa e de Maria Aduzinda Morais de Sousa, nasceu no Tortosendo a 29 de Dezembro de 1927, no seio de uma família desligada da música mas que não o impediu de cedo começar a mostrar a sua vocação.

Quando tinha cerca de dois anos, Gabriel entrou para o Colégio das Freiras Espanholas Dominicanas na Covilhã, onde iniciou os seus estudos musicais aos quatro anos de idade por iniciativa dos pais e também por influência do colégio. Começou então a estudar Piano com a Madre Amparo Cibetti, disciplina extracurricular. Apenas com sete anos de idade, Gabriel fez a sua primeira apresentação pública ao piano, num concerto de Natal organizado pelo Colégio.

Em 1941, depois de terminar a 4.a classe, foi estudar para o Colégio das Caldinhas em St.o Tirso, em regime de internato. Devido ao seu feitio irreverente e rebelde, foi em 1944 convidado a abandonar o colégio depois de ter concluído o 6.o ano do curso liceal (2.o ciclo), realizando os exames, como aluno externo, no Liceu de Rodrigues de Freitas, no Porto. Nesse mesmo ano foi morar para a Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, num quarto arrendado, onde estava também alojado o Padre José Alfredo da Cruz Sousa, seu tio.

Em Lisboa, Gabriel continuou os seus estudos no liceu e ingressou no curso de música do Conservatório Nacional em Lisboa como aluno externo, em virtude de poder prestar provas de exame aos 1.o, 2.o e 3.o anos do curso geral das disciplinas de Piano e Solfejo. Durante o ano lectivo de 1944-1945, Gabriel frequentou aulas particulares de Solfejo e Piano com a Professora Maria Victória de Carvalho. No ano lectivo de 1946-1947 Gabriel realizou o exame de 6.o ano de Piano, onde foi avaliado pelos Professores José Lúcio Mendes Júnior, Aroldo Silva e Maria Yvonne Ribeiro Pereira Lamas.

Em meados do segundo semestre de 1949, ano em que Gabriel concluiu o liceu, a sua irmã Maria do Céu adoeceu, o que fez com que toda a família se deslocasse para o Caramulo, onde se manteve cerca de um ano. Durante este período, Gabriel não tinha ao seu dispor nenhum piano onde pudesse tocar, estudar ou compor, mas continuou sempre a ouvir todos os concertos que passavam na rádio, e a vontade de regressar a Lisboa crescia a cada instante, pois era lá que tinha grande contacto com o mundo musical, onde assistia a todos os concertos que se realizavam e frequentava o Conservatório, apesar de dizer que o que lá ensinavam não era o que mais lhe interessava, pois a sua música era muito mais contemporânea e inovadora.

Em 1950, Gabriel e toda a família mudaram-se definitivamente para Lisboa. Após terem vendido todos os bens materiais que tinham no Tortosendo, compraram uma casa na Alameda D. Afonso Henriques e também outros prédios para alugar e obter alguns rendimentos. No mesmo ano, Gabriel ingressou no curso de Ciências Económicas e Financeiras na Universidade de Lisboa, mas não o chegou a completar nem a exercer nenhum trabalho relacionado com ele, pois do que ele gostava realmente era de música.

Em 1952 Morais de Sousa realizou o exame do 3.o ano do curso geral de Composição; no mesmo ano visitou Paris, onde comprou bastantes partituras e assistiu, na Église de la Trinité, a um concerto de Messiaen, compositor que influenciou a sua escrita musical. Após ter concluído o curso geral de Piano, Gabriel realiza as provas públicas de admissão ao Curso Superior de Piano em 1953. Assim sendo, neste ano, deixou definitivamente de frequentar o curso na universidade e, simultaneamente, retomou os seus estudos pianísticos no Curso Superior no Conservatório Nacional com o Professor Jaime Silva Júnior.

Acima: inícios dos 2º e 3º andamentos da Dupla Sonata para piano.

Em casa, Gabriel ocupava todas as suas horas livres a tocar obras de muitos compositores, como J. S. Bach, Joseph Haydn, Ludwig van Beethoven ou Franz Schubert, mas, principalmente, passava muito tempo a improvisar ao piano. Esta improvisação não se restringia ao mundo da música erudita, passando também pelo jazz. Normalmente tocava sozinho, mas muitas vezes tinha a visita de outros músicos, essencialmente pianistas, e nesses momentos tocavam juntos e trocavam ideias interpretativas.

A sua casa era frequentada por grandes nomes da música portuguesa, como Filipe Pires, João de Freitas Branco, Filipe de Sousa, Fernando Lopes-Graça e Victor Macedo Pinto, com os quais Gabriel mantinha uma relação muito próxima. Gabriel era discípulo de Lopes-Graça (Composição) e de Macedo Pinto (Piano).

Aderiu à Juventude Musical Portuguesa pouco tempo depois da sua fundação, e em 1953 tornou-se Vogal da Direcção sob a presidência de João de Freitas Branco, cargo que desempenhou até à sua morte. Durante este tempo, Gabriel escreveu diversos artigos para os boletins informativos emitidos por esta instituição, onde dava conta da vida musical portuguesa, bem como um pouco da música no estrangeiro, falando sobre vários compositores e intérpretes. Foi uma pessoa muito interessada por toda a cultura musical, exercendo crítica musical de uma forma muito preocupada, atenta e activa.

Profissionalmente, Morais de Sousa exerceu o cargo de Secretário do Círculo de Cultura Musical, estabelecido no Rossio. Neste cargo atendia os sócios desta instituição e acompanhava todos os artistas que vinham a Lisboa realizar concertos por esta organizados, tendo assim contacto com muitos músicos com quem trocava impressões interpretativas e discutia estilos musicais.

No dia 21 de Dezembro de 1953 casou com D. Maria de Macedo, em casa da sua sogra na Rua de S. Domingos à Lapa, onde passou a viver. Nesta casa existiam dois pianos: um vertical, da sua esposa, que estudava piano particularmente, e um Challen de um oitavo de cauda, oferecido a Gabriel pela sua sogra. Poucos meses depois Gabriel adoeceu, mas continuava a frequentar todos os concertos realizados pela Juventude Musical Portuguesa, Academia de Amadores de Música e Sociedade de Concertos…

A 5 de Outubro de 1954 nasceu a sua filha Maria de Macedo e Sousa, fruto do seu casamento com Maria de Macedo. A 25 de Novembro do mesmo ano, Gabriel Morais de Sousa foi convidado para dar um recital na Emissora Nacional no dia 7 de Dezembro, pelas 22h30. Para tal, Gabriel pediu autorização ao Director do Conservatório Nacional para o poder realizar. Neste recital interpretou Le Cahier Romand de Arthur Honegger e a Dupla Sonata, obra de sua autoria.

Nesse mesmo ano, Morais de Sousa inscreveu-se novamente no 1.o ano do Curso Superior de Piano no Conservatório Nacional, na classe do Professor Aroldo Silva, inscrição que voltou a formalizar no ano lectivo seguinte, pois os seus compromissos profissionais não o permitiam ter a disponibilidade necessária para a conclusão do curso.

Faleceu a 23 de Março de 1956 de linfoma de Hotchkin. Está sepultado no cemitério do Alto de S. João na secção perpétua n.o 30, no jazigo perpétuo n.o 887, juntamente com o seu pai e o seu tio.

Quem o conheceu afirma que, para além do seu enorme talento para a música, Gabriel era uma pessoa muito convivial, portadora de um espírito jovem e simpático. Esteve sempre próximo de grandes personalidades musicais. Não admira também que Morais de Sousa se aproximasse da personalidade de Fernando Lopes-Graça e da inteligência de Victor de Macedo Pinto, ao ponto de ter sido discípulo de ambos.

OBRA

Apesar do seu curto período de vida e da pouca quantidade de obras, Morais de Sousa demonstrou que a sua produção musical nunca poderia cair no medíocre, no rotineiro, nem no anti-artístico. Toda a sua obra vive de um espírito muito inovador, de técnicas modernas, como o dodecafonismo que, naquela época, ainda não tinha chegado ao mundo musical português. A linguagem musical de Morais de Sousa é vanguardista, baseada em técnicas composicionais modernas que não eram, até então, ensinadas nas escolas. Apresentando uma clara consciência de escrita, de formação técnica e estética e de uma individualidade própria, segundo João de Freitas Branco, é evidente, na sua obra, uma admiração enorme por Olivier Messiaen.

Início de Le Phénix, dos Prelúdios sobre poemas de Paul Éluard.

O estilo de composição de Gabriel Morais de Sousa é muito inovador e único, sendo claro o seu gosto pela atonalidade e por experiências rítmicas, o que lhe conferiu vários elogios por parte de grandes músicos portugueses. Para João de Freitas Branco, « tudo em Gabriel Morais de Sousa nos prometia uma contribuição importante para a revitalização e o desenvolvimento da cultura musical portuguesa ». Já o compositor Filipe Pires afirmou que « se Gabriel Morais de Sousa não tivesse falecido, viria a ser um dos músicos portugueses mais proeminentes do século XX ».

Apesar desta música ter um carácter muito inovador e revolucionário para a altura em que Gabriel viveu, havia uma grande aderência por parte de quem a ouvia, ao ponto de, em noites de Verão, algumas pessoas se sentarem no jardim em frente a sua casa só para o ouvir tocar.

No seu curto período de vida, Gabriel Morais de Sousa compôs várias obras musicais para piano das quais se destacam os 5 Prelúdios sobre poemas de Paul Éluard e a Dupla Sonata para piano solo.

LISTA DE OBRAS

Prelúdios sobre poemas de Paul Éluard, compostos a 9 de Janeiro de 1955 e escritos após a leitura e análise de cinco poemas do ciclo A Fénix de Paul Éluard. Os prelúdios intitulam-se I – Le Phénix, II – Air Vif, III – Printemps, IV – Je t’aime e V – Certitude.

Dupla Sonata, para piano solo, com quatro andamentos: I – Allegro, II – Tema, variações e conclusão, III – Allegretto scherzando e IV – Presto – Lento. Suíte para Piano, dividida em cinco andamentos distintos: I – Allegro, II – Cançoneta, III – Habanera, IV – Dança em ritmo búlgaro e V – Ostinato.

La Source, desenvolvida segundo os processos composicionais do ritmo com valor acrescentado, introduzidos por Olivier Messiaen.

Pequena Suíte, composta com base em processos composicionais dodecafónicos, dividindo-se em quatro andamentos: I – Prelúdio, II – Canon, III – Ária e IV – Finale.

Peça para piano, escrita apenas com a indicação de andamento: Moderato.

Andante sostenuto, provavelmente composta como um exercício de técnicas de composição, pois difere completamente de estilo de todas as restantes obras.

Baseia-se em processos composicionais românticos (século XIX) e identifica-se muito com a escrita de Frédéric Chopin.

Música para dois pianos, composta por dois andamentos distintos: I – Presto e II – Canon.

Morais de Sousa compôs também uma Sonatina para violino e piano a pedido de Freitas Branco, para um Concurso de Composição organizado na Juventude Musical Portuguesa em 1955 (ganho pela compositora Maria de Lourdes Martins). Gabriel entregou a única cópia da peça para avaliação do júri, ficando esta na posse do Arquivo da Juventude Musical Portuguesa. Anos mais tarde, devido à falta de espaço, parte das partituras foram transferidas para outro arquivo de uma instituição portuguesa, encontrando-se até agora perdida.

Texto publicado na Glosa nº 11, p. 71-73.

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