No ano da graça de dois zero dois dois, o destaque de capa da Glosas vai para Fernando Lapa, compositor que havia já colaborado com a revista com algumas crónicas e que ora celebramos como um dos nossos mais respeitados criadores contemporâneos. Bem a propósito, será de Lapa a música de um dos novos títulos da colecção melographia portugueza — disco luminoso, com a participação da soprano Carla Caramujo, do clarinetista Miguel Costa, do violoncelista Nuno M. Cardoso e do pianista Duarte Pereira Martins, que pode bem ajudar-nos a suportar um pouco menos pesadamente as nuvens cinzentas que trouxeram à Europa a barbárie da guerra, uma inflação galopante, um clima geral de incerteza económica e desconfiança política e diplomática. A entrevista ao compositor incita-nos sobretudo a um olhar optimista sobre o mundo e sobre o meio musical português, e a acreditar profundamente na beleza dos futuros possíveis para que vimos sendo transportados.
Neste número, a reflexão geral a que Fernando Lapa nos leva sobre quanto se tem construído musicalmente em Portugal nas últimas décadas é complementada pela revisitação de dois projectos paradigmáticos e incontornáveis: a Associação Portuguesa de Educação Musical (no seu quinquagésimo aniversário!) e Guimarães Capital Europeia da Cultura (no seu décimo aniversário!).
Outras efemérides da maior relevância animam as páginas que se seguem: os centenários de Gilberto Mendes, recentemente falecido, que tivemos a honrosa oportunidade de entrevistar para a capa da Glosas 13, aqui evocado em síntese incisiva de Fernando Magre, e de Maria Callas, sobre quem João Pedro Cachopo nos escreve a propósito de um aspecto muito curioso e particular, num texto que integra um conjunto de ensaios que há-de ser livro no decorrer do próximo ano.
Num registo talvez inesperado para alguns leitores, o musicólogo Manuel Pedro Ferreira oferece-nos uma entusiasmante reflexão sobre quão trovador pôde ser José Mário Branco — que faria agora oitenta anos, e que, curiosamente, é também lembrado na entrevista a Fernando Lapa —, e ainda um breve inédito, há tempos dactilografado, sobre Zeca Afonso, com apontamentos manuscritos que reproduzimos tal qual e que, portanto, constitui também sedutora janela sobre os modos de pensar-existir do investigador.
Uma outra cena agora: com o contributo de Filipa Magalhães aproximamo-nos do universo musical do compositor Carlos Alberto Augusto, muito conhecido no meio teatral, aqui numa conversa especialmente focada no problema de como pode um criador organizar o seu arquivo próprio.
Entretanto haverá quem escute Piazzola ao folhear esta revista. E impensável seria, pois, fechar esta edição sem homenagear Olga Prats, pianista falecida no ano passado, aos oitenta e dois anos, a quem o meio musical português muito deve — tanto no que respeita à divulgação do hoje canónico músico argentino como da literatura pianística de Lopes-Graça, facto por que continua a ser tão presente em nós o seu legado discográfico e pedagógico.
Por fim, ganhámos episodicamente um correspondente em Lovaina, A. Baião-Pinto, que aborda o complexo problema dos públicos face à música contemporânea. Pano para mangas… isto é, papel para muitas mais Glosas.
Segue-se 2023, com um olá aos deuses! •
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