A geração de Jorge Peixinho operou uma absoluta ruptura no meio musical português, tanto estética como de atitudes, ante uma sociedade fechada, conservadora e preconceituosa. Ruptura ainda mais notável quando estávamos em plena ditadura e a travar uma guerra colonial. Que o primeiro campeão da sua música e responsável pela estreia das suas primeiras obras, durante a década de sessenta, tenha sido Joly Braga Santos, compositor que se encontrava nos antípodas estéticos da vanguarda, parece, à primeira vista, improvável.
Joly Braga Santos e Jorge Peixinho conheceram-se em Roma em 1959. Peixinho acabara de chegar com uma bolsa da Gulbenkian. Ia estudar com Boris Porena e Godoffredo Petrassi, também professor do meu Pai. Joly e a mulher viviam então em Roma, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura. Conheceram-se no Conservatório e rapidamente se tornaram amigos, apesar da diferença de idades entre ambos. O meu Pai admirava no Jorge a sua sólida formação musical, óbvio talento e inteligência artística, e empenho absoluto e apaixonado na composição, notáveis num rapaz tão novo. E o Jorge, um rapaz um pouco solitário, pela primeira vez no estrangeiro, deve ter-se sentido atraído pela personalidade calorosa e proverbial generosidade do meu Pai, ajudado pelo temperamento acolhedor da mulher.
O Peixinho tinha terminado o conservatório em Lisboa onde fora um aluno brilhante. Uma vez em Itália, rapidamente aderiu às correntes mais avançadas da música da época. Mas isso não impediu que se entendesse com o meu Pai desde o início. Apesar das diferentes personalidades e escolhas estéticas, tinham em comum a paixão pela música, o empenho numa carreira profissional na composição, a integridade artística e as mesmas atitudes perante o meio cultural português da época.
As bolsas eram curtas, sobretudo a de Joly Braga Santos, que tinha a mulher e uma filha para sustentar. E ambos preferiam gastar dinheiro em livros, partituras e bilhetes para os concertos e para a ópera.
Jorge Peixinho estava alojado num pequeno quarto e ia comer fora todos os dias. Um dia, a minha Mãe sugeriu que o Jorge colaborasse nas compras da mercearia e fosse lá comer a casa, em vez de gastar o dinheiro no restaurante. Foi assim que o conheci, tinha pouco mais de um ano de idade e, segundo a minha Mãe, eu já dizia tudo.
Criou-se entre os três uma enorme amizade, fundamentada não apenas nos interesses comuns a estudantes de música numa cidade estrangeira, mas também na possibilidade da troca de impressões e ideias sobre arte – todas as artes e não apenas a música -, que o convívio familiar quase diário proporcionava. Passeavam muito por aquela maravilhosa cidade de Roma, iam aos concertos, aos museus, ao cinema, e tudo era pretexto para conversas e aprendizagem.
O Peixinho era, como todos sabem, um excelente pianista. Poderia ter seguido uma carreira profissional se não tivesse escolhido a Composição. Ajudou muito a minha Mãe nos seus estudos no Conservatório, onde estava inscrita nas classes de Canto e Piano. Acompanhava-a frequentemente ao piano durante os ensaios, dando sugestões musicais utilíssimas e deu‐lhe uma ajuda preciosa na preparação das aulas e dos exames.
Em 1961, quando JBS foi convidado para dirigir um concerto para a RAI, com a Orquestra Scarlatti de Nápoles, pensou imediatamente em incluir no programa obras de dois talentos emergentes da nova geração de compositores portugueses: Álvaro Cassuto e, claro, Jorge Peixinho. E foi assim que aconteceu a primeira estreia internacional destes dois músicos com as obras Variações para Orquestra de Cassuto e Políptico 1960 de Peixinho, em primeiras audições absolutas. Uma obra sua, outra de Fernando Lopes-Graça e peças dos séculos XVII e XVIII – o auge da polifonia portuguesa – compunham o resto do programa.
O diálogo entre as antigas e novas gerações, a natural evolução histórica das estéticas esteve sempre presente, era mesmo intrínseca na atitude mental de JBS perante a música e os seus criadores. Fora essa a lição e o exemplo do Mestre, Luís de Freitas Branco, assimilada pelos seus alunos, e que compositores como Fernando Lopes-Graça, Joly e Artur Santos sempre seguiram.
Não me recordo desses anos em itália. Era muito pequena. Mas fui testemunha de uma amizade ímpar e singular que perdurou até à morte precoce de JBS e continuou através da mulher e das filhas. Eu e a minha irmã adorávamos o Peixinho. Era uma pessoa cheia de qualidades humanas e tratava-nos com a maior das ternuras.
Voltamos para portugal no verão de 1961. A minha irmã nasceu a 15 de Agosto. O meu Pai não voltou para o Porto. Tinha conseguido um modesto lugar na Rádio em Lisboa, como maestro assistente, posição que tinha a grande vantagem de lhe deixar tempo livre para compor. Continuava, porém, a dirigir regularmente a Orquestra Sinfónica do Porto, que fora entretanto integrada na Emissora Nacional.
O Peixinho tinha ido estudar composição para a Alemanha, primeiro para Darmstadt e depois para Basileia, na Suíça, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura. Voltou em 62 e aterrou lá em casa cheio de novidades, desejoso de retomar as conversas com o meu Pai e de lhe mostrar as obras que tinha escrito. Foi uma alegria! Experimentou logo falar comigo em italiano, para ver se eu me tinha esquecido… “Não, não”, exclamou a minha Mãe, “continuamos a falar italiano cá em casa!”. O convívio regular foi retomado, e até reforçado, pois, no ano seguinte, sem conseguir mais adiamentos, o Jorge foi chamado para fazer a tropa. Destacado para a recruta em Tancos, podia vir a Lisboa ao fim-de-semana. Chegava lá a casa para jantar todas as sextas-feiras, cansado, esfomeado, com a farda suja e aquele cheiro a quartel, que ainda hoje recordo. Mas tinha os bolsos cheios de rebuçados que nos trazia da messe! A minha Mãe dava-lhe rapidamente uma toalha e depois de uma passagem pela casa de banho, mais composto e sem a farda, sentava-se no sofá com um suspiro de satisfação. Estava novamente num ambiente caloroso e familiar. A tropa foi um sofrimento para o pobre Jorge! Sabia‐lhe bem brincar connosco, pegar-nos ao colo, tocar-nos canções no velho piano. Até a minha irmã, uma criança tímida e assustadiça, não resistia à bondade e ternura com que o Jorge nos tratava. Tornava-se mais faladora na sua presença e frequentemente lhe subia para o colo, para espanto inicial dos meus Pais.
Assistir às conversas entre todos à mesa foi uma aprendizagem fascinante, que ainda hoje recordo com a maior das saudades. O Peixinho ia frequentemente para o velho piano de casa dos meus avós, de armação em madeira e com um vago som a cravo – na época era o que havia lá em casa – ler as partituras do meu Pai, e as dele. E quando, em 68 ou 69, os meus Pais puderam finalmente comprar um piano novo, ninguém ficou mais contente que o Peixinho. Olhou para o instrumento entusiasmado – ele podia lá resistir a um piano -, sentou-se e começou a tocar Bach. Eu fiquei de boca aberta! Posso dizer que foi ele que me ensinou a gostar de Bach. Um intérprete que é também compositor tem uma noção muito mais aguda da dialéctica permanente entre harmonia e contraponto, e a maneira como Peixinho tocava tornava tudo transparente e audível. Ouvir Bach é um prazer emocional, mas também intelectual, se nos dermos ao trabalho de abrir bem os ouvidos e seguir o diálogo extraordinário que nos é oferecido…
A colaboração musical entre ambos continuou durante toda a década de sessenta. Em 1963, JBS estreou, com a Orquestra Sinfónica do Porto, a obra Políptico 1960 que executara em Nápoles em 61.
Em 1965, num concerto da juventude musical portuguesa, foi a vez de Sobreposições, integrada num concerto de música de vanguarda com a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, no qual foram executadas, ainda, obras de Penderecky, Cristobal Halffter e Álvaro Cassuto.
1965 foi também o ano do happening na Galeria Civilização, acontecimento que pôs em polvorosa a elite cultural lisboeta. Com organização do Jorge e colaboração de poetas e outros músicos, o evento entrou na história familiar por via da requisição, pelo próprio, dos nossos instrumentos musicais de brincar. Umas marimbas, uma pandeireta, várias caixas de música, uma flauta de plástico comprada na Feira Popular… Todos, aliás, já bastante gastos pelo uso. A minha Mãe recolheu-os cuidadosamente num saco para lhos entregar. Aquilo intrigou-nos. Para que fim queria o Peixinho os nossos velhos brinquedos? Dias depois, quando apareceu para jantar, como de costume, perguntei-lhe. O Peixinho lá me explicou como pôde. Tendo entendido a questão, perguntei muito depressa: “Mas se vai usar os meus brinquedos eu não posso assistir?“. “Claro que sim”, respondeu ele, cortando pela raiz a recusa que a minha Mãe tinha debaixo da língua. Felizmente, nessa noite, não havia ensaios – a minha Mãe na altura ainda cantava e tinha uma vida profissional atarefada – pelo que pôde acompanhar-me ao famoso happening. A Galeria estava cheia e acabámos sentadas no chão a um canto. Mas divertimo-nos imenso!
Uma tarde, o Peixinho apareceu lá em casa com uma partitura nova. Estávamos em finais dos anos sessenta porque já lá estava em casa o piano novo. Eu espreitei mas não vi propriamente pautas. Eram mais uns desenhos. O meu Pai colocou a partitura no piano e pôs-se a analisar aquilo, tendo o cuidado de decifrar primeiro o glossário inicial da nova notação. Depois de apreciar atentamente a obra durante longos minutos, perante a ansiedade crescente do amigo, pronunciou com aquela sua voz pausada: “Sabes, estou convencido que tudo isto podia ser escrito com recurso à notação convencional…”. O Peixinho, interdito, reagiu: “Mas não ficava tão bonito! Não achas que é uma linda partitura?”. “Pois”, respondeu o meu Pai, “mas tu fazes música, não artes plásticas ou desenho! Queres ou não que a obra seja tocada? É que vais perder uma semana de ensaios antes que os músicos decifrem isto!”. Era, como sempre, o conselho do músico eminentemente prático que o meu Pai era. A sua proverbial distracção referia-se aos pormenores da vida diária, concentrado que estava no seu mundo musical interior. Mas a expressão desapontada do Peixinho comoveu a minha Mãe, que sugeriu: “Deixa a partitura assim, é um belíssimo manuscrito. Mas faz outra, e partes de orquestra para os músicos, com a notação convencional, se queres que a obra se toque. Não te lembras do trabalhão que nos deu apagar, antes do primeiro ensaio, os comentários sarcásticos e ordinários dos músicos, no material de orquestra da obra do Penderecky que veio de Espanha?”…
Em 1970 ambos participam, com Luís Felipe Pires, no IV Curso de iniciação à Música Contemporânea, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, precursor da Semana de Música Contemporânea que esta instituição patrocinaria uns anos mais tarde. É também o ano da fundação do Grupo de Música Contemporânea. E, ainda, do início da reforma do ensino do Conservatório em que tanto Jorge Peixinho, como Joly, João de Freitas Branco e outros, participaram entusiasticamente. O meu Pai esperara por esta reforma quarenta anos! Pôde finalmente transformar o ensino da Educação Musical e da Composição, que vinham do princípio do século, e reintroduzir a cadeira de Análise Musical, que fora do Mestre Luís de Freitas Branco e que era agora a sua. Foram tempos de muito trabalho para todos, mas também tempos de mudança e de muitas esperanças. E uma época de colaboração activa e prática entre Jorge Peixinho e Joly, unidos por um mesmo ideal, cimentado em conversas e troca de ideias ao longo de doze anos de uma amizade sem falhas.
Não falavam de política. O meu Pai sabia das convicções ideológicas do Peixinho e respeitava-as. E Peixinho tinha uma rara compreensão das razões muito íntimas e pessoais que levaram o meu Pai a recusar-se a tomar posições públicas sobre o regime, apesar de o detestar. Prova do seu carácter muito especial foi a lealdade que sempre demonstrou para com o amigo, mesmo em momentos difíceis. Em 1970, após a estreia da Trilogia das Barcas na Gulbenkian, surgiram diversas críticas mais ou menos verrinosas na imprensa. O Peixinho, que assistira ao espectáculo e que, emocionado, felicitara entusiasticamente o meu Pai no final, apareceu lá em casa no dia seguinte, furioso com o que os críticos diziam. Foi o meu Pai que o acalmou. “Não ligues! Isso não tem importância nenhuma!” – disse-lhe. “O que tem importância é que foi um grande sucesso de público e penso que é a minha melhor obra até agora. Já estou habituado aos críticos e não ligo nenhuma.”
Após a formação do grupo de música contemporânea, Peixinho pediu ao meu Pai, por diversas vezes, que escrevesse uma peça. Este ainda iniciou um Epitáfio a Bruno Maderna, que entretanto falecera, mas, por razões desconhecidas, não chegou a terminar a obra. Só em 1988, o ano fatídico da sua morte, lhe surgiu uma ideia e uma oportunidade. Desde o início dos anos oitenta que, por força de problemas de visão, escrevia sobretudo música de câmara. Depois da leitura de um poema de António Machado, poeta castelhano que muito apreciava, escreveu Aquella tarde, para soprano ou tenor e conjunto orquestral. O Peixinho ficou radiante. A obra era linda! Foi estreada em Fevereiro desse ano, nos ”Encontros” da Gulbenkian. Escassos meses depois, a 18 de Julho, falecia Joly Braga Santos. O seu desaparecimento colocou um ponto final numa das amizades mais singulares do século XX português.
Fotografia: Jorge Peixinho e a sua namorada, à esquerda, com Joly Braga Santos, à direita
Artigo publicado na Glosas nº4, p.61-63