Nos últimos oito anos, Luiz Alves da Silva tornou-se – em termos absolutos – um dos principais responsáveis pela divulgação da música religiosa de Marcos Portugal (1762-1830) através de três projectos que deram origem a concertos em Zurique, Paris e Lisboa, a quatro estreias modernas, e à gravação do CD duplo Matinas do Natal (2009) que foi calorosamente acolhido pela crítica. Nascido no Brasil, ganhou o Concurso de Jovens Solistas da Orquestra Sinfônica de São Paulo em 1982, partindo para a Suíça no ano seguinte e diplomando-se na Schola Cantorum de Basileia em 1989. À sua carreira como contratenor aliou a direcção do Ensemble Turicum que co-fundou, em 1992, com o violinista suíço Mathias Weibel. Especializando-se em música antiga numa perspectiva da prática historicamente informada utilizando instrumentos de época, o grupo dedica-se sobretudo ao repertório ibérico e brasileiro.

No passado dia 27 de Setembro o Ensemble Turicum apresentou-se na Igreja de S. Pedro, em Zurique, com duas estreias modernas de Marcos Portugal: a Missa em Fá M (P 01.131) e às Vésperas de Nossa Senhora em Dó M (P 02.31), ambas transcritas e arranjadas por Luiz Alves da Silva. O concerto inseriu-se na 19ª edição do Festival Música Antiga de Zurique, co-organizado pelo Fórum Alte Musik de Zurique e pela Radiotelevisão Suíça, que em 2013 foi dedicado ao tema Ferne Musik (Músicas Longínquas), com a inclusão de repertório ibérico, mediterrânico e brasileiro. No período de 26 de Setembro a 6 de Outubro realizaram-se sete concertos, duas entrevistas, uma conferência, e a projecção do filme Hebreo, dedicado ao compositor Salomone Rossi (c. 1570-1628). A anteceder o concerto do dia 27, o director do festival, Roland Wächter, realizou uma entrevista a Luiz Alves da Silva e ao presente autor, iniciativa que revela as vertentes pedagógica e de divulgação informada que são duas das linhas de força do festival.

As duas obras referidas foram arranjadas para coro masculino a quatro vozes (tenores e baixos) e pequeno instrumental – cordas sem violinos e baixo contínuo –, seguindo uma tradição da música luso-brasileira dos séculos XVIII e XIX. O Stabat Mater (1792, Lisboa) de José Joaquim dos Santos, as Matinas do Natal (1811, Rio de Janeiro) de Marcos Portugal, e a Missa Pastoril (1811, Rio de Janeiro) de José Maurício Nunes Garcia, que não utilizam violinos, são três conhecidos exemplos já editados discograficamente.

A Missa, cantada na primeira parte do programa, foi originalmente composta para a Basílica de Mafra, cujo repertório se distingue pela utilização de vozes exclusivamente masculinas e do notável conjunto de seis órgãos. É provável que tenha sido composta em 1804 para apenas quatro dos órgãos, numa altura em que os organeiros Joaquim António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira se ocupavam da sua construção. A obra transpôs os umbrais da Basílica e deverá ter sido cantada no Seminário Maior da Sagrada Família de Coimbra, onde se encontra uma versão para cordas, trompas, trompetes e órgão. Embora a versão original utilize o texto completo do ordinário da missa, a versão dada em concerto inclui apenas o Kyrie e Gloria, a partir de uma versão da autoria do último mestre-de-capela em Mara, Fr. João da Soledad († 1832), para vozes masculinas e órgão obbligato, que pode ser consultada em-linha na base de dados da Biblioteca Nacional de Lisboa2. Como era prática na época em ocasiões de maior cerimonial, a obra é antecedida de uma sinfonia, tendo neste caso sido adaptada a abertura da ópera Artaserse (1806).

Às Vésperas de N. Senhora (que no concerto do dia 27 finalizaram com o Magnificat em Dó M [P 02.24]) foram compostas no Brasil, possivelmente para a Capela Imperial do Rio de Janeiro e no contexto da festividade mariana de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, celebrada a 8 de Dezembro de 1824. Escritas para vozes mistas (SATB) e orquestra, a única cópia da versão original encontra-se no arquivo da Orquestra Lira Sanjoanense em São João d’El-Rei, Minas Gerais. A obra deve ter-se mantido no repertório da Capela Imperial por longos anos, porque existe uma versão abreviada, datada de 1879, realizada pelo Mestre de Capela Hugo Bussmeyer (1842-1912) para vozes masculinas, orquestra e órgão. Os cinco salmos (Dixit Dominus, Laudate pueri Dominum, Lætatus sum, Nisi Dominus, Lauda Jerusalem) e o Magnificat são alternados com três pequenas peças para tecla arranjadas para pequeno instrumental.

O público presente na Igreja de São Pedro aplaudiu longamente os dezassete intérpretes. Atestando o elevado nível do concerto, está prevista para 2014 a edição de um CD, produzido por Toccata Classics, com a gravação ao vivo fornecida pela Radiotelevisão Suíça. Será mais um passo significativo para a divulgação da obra de Marcos Portugal, visto que a referida chancela – dedicada à “música esquecida de grandes compositores e à grande música de compositores esquecidos” – é distribuída globalmente.

notas

1 Numeração referente às entradas do catálogo temático da obra religiosa: P = Portugal (António Jorge Marques, A obra religiosa de Marcos António Portugal (1762-1830): catálogo temático, crítica de fontes e de texto, proposta de cronologia, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal / Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2012, pp. 381-384, 465-466, 477-479).

2 C. http://purl.pt/804 .

Fotografia: Ensemble Tucurium

Texto publicado na Glosas n.º 10, p. 59.

Sobre o autor

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Flautista (Escola Superior de Música de Lisboa, 1992) e musicólogo (Universidade Nova de Lisboa, 1999 e 2010). Dedica-se desde 2000 ao estudo e divulgação da vida e obra de Marcos Portugal. A sua tese de doutoramento, 'Marcos António Portugal (1762-1830): catálogo temático, crítica de fontes e de texto, proposta de cronologia', foi publicada em Portugal (Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal/CESEM, 2012) e no Brasil (Bahia, EDUFBA, 2012). Em Outubro de 2014 ganhou uma menção honrosa no 6.º Concurso Internacional Príncipe Francesco Maria Ruspoli com o ensaio 'Niccolò Jommelli rediscovered: a new autograph of a 16 voice Laudate pueri'. É membro do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM, Universidade Nova de Lisboa).