O constante interesse do Professor Doutor José Maria Pedrosa Cardoso pelo repertório sacro quinhentista português, com particular enfoque na composição e práxis musical da Semana Santa e Páscoa, no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, tem permitido, ao longo dos anos, chegar a conclusões importantes no domínio da Musicologia em Portugal. Depois da publicação de O Canto da Paixão nos Séculos XVI e XVII – A Singularidade Portuguesa (2006) e Cerimonial da Capela Real (2008), foi dado recentemente à estampa um magnífico volume que reproduz, em fac-simile, o códice SL 11-2-4 da Sociedade Martins Sarmento, com precioso estudo (em versão bilingue, português-inglês, tradução de Ivan Moody), transcrição e revisão de J. M. Pedrosa e musicografia de Eduardo Magalhães.
Resultado de uma parceria entre a insigne sociedade vimaranense e a Sociedade Musical de Guimarães, a edição do Passionário Polifónico de Guimarães contou ainda com o saudável patrocínio da Fundação Guimarães – Capital Europeia da Cultura 2012. São 397 páginas fulgentes, 12 obras musicais transcritas e um DVD, com a 1.a audição moderna de algumas destas obras, interpretação do Coro da Sociedade Musical de Guimarães, os solistas João Rodrigues, Manuel Rebelo e Carlos Pedro Santos, do agrupamento Voces Caelestes, com direcção de Sérgio Fontão, concerto realizado na Igreja de S. Francisco, em Guimarães, a 23 de Março de 2013.
O estudo de José Maria Pedrosa é de leitura fascinante mas, em vários aspectos, exigente. Após a descrição física do manuscrito é avançada uma datação, c. 1580, uma origem, o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, e um compositor, pelo menos de uma parte substancial da polifonia, Dom Pedro de Cristo (†1618). Segue-se uma contextualização, profusamente documentada, da prática do canto da Paixão em Portugal, muito em particular no mosteiro crúzio conimbricense. Pedrosa começa por explicar que os Passionários portugueses (o primeiro Passionário impresso em Portugal data de 1543), para além da música pela qual se cantava a Paixão de Cristo nas versões dos quatro evangelistas, continham música de outras peças significativas das celebrações da Semana Santa. Por este motivo, encontram-se no Passionário de Guimarães as Paixões segundo S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João, o Pregão Pascal Exultet, as Lições de 5.a, 6.a e Sábado Santo, o Cântico de Laudes Benedictus [4 vozes], 2 salmos Miserere [4 vozes], um deles incompleto, a Ladaínha de Defuntos Jesu Redemptor [4 vozes] e três responsórios sem letra (não transcritos na presente edição mas, presumivelmente, correspondentes, segundo Pedrosa, às leituras das Matinas de 5.a, 6.a e Sábado Santo).
A singularidade de versículos cantados a três vozes, especialmente alguns ditos de Cristo, e um canto monódico claramente mensuralizado faziam do canto da Paixão, em plena devotio contra-reformista, um acontecimento excepcional, não sendo por isso de estranhar que, em plena vigência da União Ibérica, fossem requisitados cónegos de Santa Cruz para irem ao Escurial cantar os bradados da Paixão. O prestígio e irradiação da música crúzia para além do Mondego justificam, assim, a presença deste manuscrito em Guimarães.
Sobre o grafismo musical, ficamos a saber que é utilizada uma notação mensural branca para as partes polifónicas e monofónicas, mas esta última apresenta uma escrita do canto-chão barroquizante, particularmente nos finais de frase que antecedem as alocuções de Cristo, o que levantou alguns problemas na transcrição para notação moderna, detalhadamente explicada por Pedrosa e de leitura obrigatória para qualquer intérprete que se abalance neste repertório.
Resta-nos, por fim, tecer algumas considerações que julgamos pertinentes quanto à obra em apreciação. Pela sua beleza e elevado valor documental, esta edição constitui, per se, um marco singular no universo dos códices musicais de arquivos portugueses fac-similados e um dos legados mais importantes da Fundação Guimarães – Capital Europeia da Cultura 2012. Todavia, não podemos deixar de lamentar as dimensões deste livro (de difícil manuseamento, tal é o peso), mais próprias da Biblioteca Joanina de Coimbra, com as suas luxuriantes e sólidas estantes em pau-brasil, do que das vulgares e quebradiças estantes folheadas que muitos têm em suas casas.
Nunca como nos tempos recentes houve em Portugal tamanha diversidade e qualidade de ensembles e coros aptos, artisticamente, a interpretar com rigor e inspiração a música que a transcrição de Pedrosa deu à estampa. Esperamos que a volumetria não seja um óbice à divulgação deste repertório, uma vez que, fugindo a uma prática recentemente vulgarizada, as transcrições em notação moderna não estão disponibilizadas em CD ou em apêndice.
Dizem-nos que foi este códice de Guimarães que lançou José Maria Pedrosa Cardoso, há algumas décadas, na investigação musicológica. Se assim foi, a presente edição é, certamente, seu motivo de orgulho e afeição académica. Para todos nós, um vislumbre singular sobre a música portuguesa da 2.a metade do séc. XVI, a reter e a acarinhar.
Texto completo publicado na Glosa nº 11, p. 94.
