Reflectindo sobre a natureza da sua própria técnica narrativa, num excerto do segundo volume dos Cadernos de Lanzarote, José Saramago considerava o seguinte:
Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o “dito” se destina a ser “ouvido”. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo (estruturas barrocas, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. Pergunto-me mesmo se não haverá mais do que uma simples coincidência entre o carácter inorganizado e fragmentário do discurso falado de hoje e as expressões “mínimas” de certa música contemporânea…1
Por outras palavras, antes de escrever, Saramago escutava a “música própria das palavras”; mais importante: o seu estilo, tão frequentemente criticado, não raro pelo recurso a um português “sem pontuação e sem cumprir as regras da língua”,2 seria, assim, pensado como um discurso oral, com as suas pausas e respirações, no que podemos postular um paralelismo com uma composição musical. Todavia, as relações que é possível estabelecer entre características importantes do escritor português e a arte musical não se resumem a este discurso fonético, estando também presentes no conteúdo temático desse discurso e na própria vida do escritor, sendo os diários de Saramago, a que foi conferida forma escrita com Cadernos de Lanzarote, um testemunho dessa relação (a título exemplificativo, é-nos desvendado que, na adolescência, o escritor assistia à ópera no Teatro de São Carlos “sem pagar”,3 que convivia com vários músicos, entre os quais se contam eminentes compositores, como Azio Corghi e Fernando Lopes-Graça, e que frequentava concertos). Para Saramago, a Literatura deveria “conviver a Música na mais perfeita harmonia”4 e talvez por isso mesmo não estejam ausentes dos romances de Saramago referências musicais mais ou menos explícitas enriquecendo o subtexto. Em Clarabóia há Beethoven, Honegger e Donizetti; em O Ano da morte de Ricardo Reis, encontramos uma citação directa do texto da célebre ária de Leporello, Madamina, il catalogo è questo, de Don Giovanni de Mozart:5 “É mulher, Bravo, (…) feito D. João nessa sua idade, duas em tão-pouco tempo, parabéns, para mil e três não lhe falta tudo.”6
É, todavia, admissível que o romance onde a relação do mundo literário de Saramago com a Música atinja maior profundidade e significado seja As Intermitências da Morte. Ali é tratada a história de uma Morte caprichosa que, um dia, num país por identificar, decide deixar de matar. Posteriormente, resolve voltar a cumprir a sua missão, mas agora através de cartas, remetidas num envelope violeta e endereçadas a quem dentro de uma semana viria a exalar o último suspiro. Não obstante, uma carta é continuamente devolvida à remente. Desorientada, a Morte desce à Terra com o propósito de investigar a identidade deste destinatário e de lha entregar pessoalmente, assumindo, para isso, a forma humana.
O destinatário é um homem aparentemente comum, mas com uma qualidade especial: toca violoncelo. Não era, decerto, “um Rostropovitch… não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim o exigia”,7 nem era tão-pouco “um daqueles famosos concertistas que percorrem o mundo inteiro tocando e dando entrevistas.”8 Ainda assim, é este homem que, na sua simplicidade, consegue a proeza de apaixonar e humanizar a Morte através da Música; e perante esta Morte transformada em mulher, “rodeado de livros, de cadernos de música, de partituras”, também o violoncelista se transforma “no próprio Johann Sebastian Bach compondo em Cöthen o que mais tarde seria chamado o opus mil e doze”.9
O número 1012 é repetido obsessivamente. Do conjunto de seis suites para violoncelo solo de Bach, Saramago selecciona, então, a sexta, na tonalidade de Ré maior, identificada como a “tonalidade da alegria”.10 Ao próprio número 6 é atribuível conotação simbólica, como ensina Cirlot, considerando entre as representações possíveis do seis “Ambivalência e equilíbrio. União dos dois triângulos (fogo e água) e por isso símbolo da alma humana. (…) Corresponde às seis direcções do espaço e à conclusão do movimento (seis dias da Criação). Por isso, número da prova e do esforço.”11
Para este violoncelista, como para quaisquer outros, tocar esta suite em particular constitui prova de esforço pela acentuada exigência estética e técnica. Para a Morte, todavia, ouvir esta sexta suite poderá tê-la feito ver mais atentamente e aperceber-se da complexidade da alma humana e do valor de uma vida. Neste sentido, o próprio número seis revela-se pleno de sentido enquanto referência diegética no contexto de As Intermitências da Morte. Idêntico peso simbólico é atribuído ao Estudo Op. 25, n.o 9 de Chopin, a que o romancista atribui a duração precisa de 58 segundos e a propósito do qual reflecte sobre a transcendência da Música e sobre as suas possibilidades enquanto discurso significante:
Um dia, em conversa com alguns colegas da orquestra que em tom ligeiro falavam sobre a possibilidade da composição de retratos musicais (…), lembrou-se de dizer que o seu retrato não o encontrariam em nenhuma composição para violoncelo, mas num brevíssimo estudo de Chopin, opus vinte e cinco, número nove, em sol bemol maior. Queriam saber porquê e ele respondeu (…) que em cinquenta e oito segundos Chopin havia dito tudo quanto se poderia dizer a respeito de uma pessoa a quem não a podia ter conhecido.12
Ao escutar o violoncelista tocando aquela obra, a Morte não se impressiona com que ele tivesse visto na composição de Chopin o seu retrato musical. Antes, “o que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma coisa tivesse ficado por dizer.”13 A soma de 5+8 resulta em treze, número tradicionalmente associado ao azar, mas que, na verdade, pode representar simbolicamente “morte e nascimento, mudança e reatamento, depois do final. Por isso é caracteristicamente marcado por um valor adverso”.14 Assim vê a Morte nestes 58 segundos o resumo da vida humana, do nascimento à própria morte, naquele acorde final, que deixa “um ponto de suspensão no ar, no vago (…), como se, irremediavelmente, alguma coisa tivesse ficado por dizer.”
Os momentos descritivos que resultam em maior beleza ao longo destas Intermitências da Morte são, porventura, os momentos de solo de violoncelo:
O violoncelista começa a tocar o seu solo como se só para isso tivesse nascido. Não sabe que aquela mulher do camarote guarda na sua recém-estreada malinha de mão uma carta cor de violeta de que ele é destinatário, não o sabe, não poderia sabê-lo, e apesar disso toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e respeito, o público suspira, estremece, o véu de piedade que nublava o olhar agudo da águia é agora uma lágrima.15
Poderíamos citar outras passagens semelhantes. Porém, o que concorre para esta nossa análise é o valor particular que Saramago atribui à Música enquanto arte capaz de comover e humanizar. Neste sentido, a maior prova de que a Morte se tornou humana é a imagem final, em que nos é dada a observar queimando a carta violeta com “um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar”, e “ela, que nunca dormia, sentia que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras”,16 acabando por adormecer nos braços do seu amado violoncelista.
A relação do escritor português com a Música é matéria ainda largamente por estudar. Existem estudos já publicados sobre a ligação entre José Saramago e Azio Corghi,17 compositor que, nas palavras do romancista, trouxe à trajectória da sua “existência uma riqueza que jamais teria adquirido sozinho. Graças a Azio Corghi a urdida das palavras que criei tornou-se música, tornou-se canto”.18 No entanto, a relação de Saramago com a Música em romances como As Intermitências da Morte, o estudo do seu discurso literário entendido primordialmente enquanto discurso musical e todas as outras obras de natureza eminentemente musical (que não as de Corghi), que os seus poemas e romances inspiraram são matérias que mereciam mais ampla investigação e reflexão, para que esperamos, de algum modo, ter podido contribuir.
Notas
1 José Saramago, Cadernos de Lanzarote – Diário II, Lisboa, Caminho, 1995, p. 49.
2 Citando a crítica de um autarca do CDS-PP de Mafra: José Saramago, Cadernos de Lanzarote – Diário IV, Lisboa, Caminho, 1998, p. 129.
3 Saramago, Cadernos de Lanzarote IV, p. 98.
4 Saramago, As Intermitências das Morte, Lisboa, Caminho, 2005, p. 155.
5 Anos mais tarde, Saramago escreverá para Azio Corghi o libreto da ópera Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, inspirado na ópera de Mozart/Da Ponte sobre a mesma personagem (Don Giovanni, ossia il dissoluto punito).
6 Saramago, O Ano da morte de Ricardo Reis, Lisboa, Caminho, 1984, p. 177.
7 Saramago, As Intermitências das Morte, p. 213.
8 Saramago, As Intermitências das Morte, p. 174.
9 Saramago, As Intermitências das Morte, p. 213.
10 Saramago, As Intermitências das Morte, p. 159.
11 Juan Eduardo Cirlot, Dicionário de Símbolos, Porto, Dom Quixote, 2000, p. 268.
12 Saramago, As Intermitências das Morte, p. 176.
13 Saramago, As Intermitências das Morte, p. 177.
14 J. E. Cirlot, Dicionário de Símbolos, p. 268.
15 Saramago, As Intermitências das Morte, p. 198.
16 Saramago, As Intermitências das Morte, p. 214.
17 vide Graziella Seminara, “The literary works of José Saramago in the musical theatre of Azio Corghi”, Colóquio Letras, Janeiro/Junho de 1989 (José Saramago: o ano de 1998). 18 G. Seminara, “Génese de um libreto” (trad. Mário Vieira de Carvalho), prefácio a José Saramago, Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, Lisboa, Caminho, 2005, p. 105.
Fotografia: Marcha pela Paz, Outubro de 1983, Avenida da Liberdade, Lisboa. Da esquerda para a direita: José Saramago, Piteira Santos, Maria Rosa Colaço, Fernando Lopes-Graça, Manuel da Fonseca,
José Cardoso Pires e Urbano Tavares Rodrigues. Fotografia de Rui Pacheco.
Texto publicado na Glosa nº 14, p. 84-85.