Tão majestosa e comovedora música foi coisa que eu nunca ouvi e que talvez nunca mais ouça porque a chama […] está a apagar-se em quase toda a Europa […]; como ainda arde em Lisboa, consegue produzir, em nossos dias, a mais impressionante expressão musical.
William Beckford
Quando o Ludovice Ensemble foi criado, em 2004, não estava particularmente vocacionado para a interpretação historicamente informada de repertório português seis e setecentista. As razões eram várias: a formação mais ou menos fixa do grupo – traverso, viola da gamba e cravo, com a adição opcional de um violino ou de um cantor –, pensada para a interpretação do legado musical francês e alemão, era pouco apropriada ao que conhecíamos do repertório barroco português. A nossa formação específica, reunida nos Países Baixos, infelizmente quase não havia contemplado as praxis interpretativas ibéricas – ainda hoje marginalizadas fora da esfera cultural ibero-americana –. Finalmente, desconhecíamos quase em absoluto a existência de repertório camerístico português, ou relacionável com Portugal. De facto, há nove anos atrás, o conhecimento da música portuguesa era em algumas áreas muito lacunar. Como intérpretes portugueses vivíamos ainda as frustrações da “Síndrome do Terramoto”, em que a catástrofe de 1755 servia para justificar a perda de tudo o que havia talvez existido anteriormente; outra explicação comum mas mais requintada era o suposto “desfasamento das práticas de sociabilização da sociedade setecentista portuguesa em relação aos modelos europeus contemporâneos”, que justificavam a aparente total ausência de música de câmara, orquestral e de dança no período.
Mas, paradoxalmente, volumes com sonatas italianas nos manuscritos setecentistas da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra permaneciam por identificar, e ninguém se preocupava em estudar a importância musical e social do Manuscrito Kinsky – com danças e coreografias de origem francesa – da Biblioteca Municipal do Porto… O Ludovice Ensemble inclinava-se assim naturalmente para paisagens musicais bem mais setentrionais, perseguindo o objectivo de provar – a nós próprios e ao público – que os músicos portugueses não tinham de ficar confinados a um repertório que nos parecia ser pouco interessante e marginal. Mas o nosso objectivo era genericamente “interpretar e divulgar o repertório de câmara dos séculos XVII e XVIII”, como se podia ler, durante muito tempo, na nossa biografia, e, apresentando um pouco por todo o país obras de Bach, Händel, Telemann, Matheson, Corelli, Vivaldi mas sobretudo Couperin, Rameau, Campra, Boismortier, ou Charpentier, nunca descartamos a possibilidade de vir a abordar o património nacional.
Ao longo dos últimos anos o panorama da música antiga em Portugal alterou-se consideravelmente e para melhor, ainda que, infelizmente, com um enorme desfasamento em relação ao panorama europeu. Surgiram novos agrupamentos especializados, mais portugueses deslocaram-se ao estrangeiro para aprofundarem os seus conhecimentos em interpretação historicamente informada, e foram criados os primeiros cursos superiores na área das práticas interpretativas históricas, tudo isto contribuindo para uma crescente qualidade artística, maior oferta, e um mais generalizado interesse do público. A produção de conhecimento científico na área musicológica recebeu também um maior impulso. No entanto, as lacunas continuam a ser muito grandes, nomeadamente na disponibilização e acessibilidade aos materiais para a interpretação – partituras originais ou editadas – e aos estudos musicológicos, frequentemente confinados a dissertações de mestrado e doutoramento de difícil acesso e partilha. Paralelamente, a indústria fonográfica iniciou um fatal declínio, provocado pelas alternativas oferecidas pelas novas tecnologias de comunicação, e a presente e inexorável crise económica que o país atravessa veio abalar profundamente as esperanças desta promissora mas frágil “primavera”.
[…]
Para o Ludovice Ensemble este era um imenso mundo que se abria; afinal, o repertório português não sendo inesgotável não era necessariamente limitado. Mas onde começa e acaba o conceito de “música portuguesa”? Para nós este é, naturalmente, um conceito muito abrangente, que inclui a obra de compositores portugueses activos em Portugal, mas também a de compositores nacionais residentes no estrangeiro e a de compositores de outras nacionalidades que trabalharam em Portugal. Abarca obras estrangeiras que circularam e foram conhecidas ou interpretadas em Portugal, e tendo em conta as vicissitudes históricas e culturais do nosso país, abrange igualmente a obra de autores luso-descendentes – como as comunidades da diáspora judaica de origem lusitana – e oriundos ou activos noutras áreas geográficas da lusofonia, como o Brasil – mas também, por exemplo, a Índia –. Estende-se ainda às relações possíveis entre o património cultural português – literatura, história, pensamento – e a música de outras culturas europeias, como a França, ou mesmo extra-europeias, como o Japão.
Neste processo fomos coligindo trios e quartetos de Pedro António Avondano (1714-1782), preservados em Dresden ou Berlim; missas e motetos de Giovanni Giorgi, vindos da Sé de Lisboa; concertos e sinfonias de Antonio Maria Schiassi guardadas na Suécia; sonatas de Carlo Ambrogio Lonati (c. 1645-c.1710/15) escondidas em Coimbra; árias de David Perez adormecidas na Biblioteca Nacional; traduções francesas setecentistas d’Os Lusíadas e uma tragédia de Antoine Houdar de la Motte (1672-1731) sobre Inês de Castro; sinfonias de Leonora Duarte (c. 1610-1678) esquecidas em Oxford…
Cada projecto, cada concerto, é um enorme e complexo desafio. Antes do momento puramente artístico, em que o Ludovice Ensemble entra em palco e se ouvem as primeiras harmonias, existem horas de trabalho, invisíveis e inaudíveis. Primeiro é uma ideia, um conceito, um tema, frequentemente vago e indefinido. Segue-se a reflexão, a discussão, o amadurecimento. Uma figura histórica que nos inspira, uma pequena “estória” que nos desperta curiosidade, um espaço que é necessário animar, um evento que é necessário evocar, uma memória que é urgente resgatar. Depois seguem-se muitas horas de delineamento e investigação, e ainda mais horas de transcrição das obras e preparação das partes. É necessário, com frequência, rever extensivamente e mesmo completar as partituras: um erro do copista, uma mancha de humidade, uma página em falta, uma parte incompleta… Estabelecer o texto, fazer uma tradução cuidada, escrever notas ao programa que sejam simultaneamente elucidativas e cativantes são outras etapas necessariamente contempladas. E, quando o projecto se destina ao estrangeiro, mais traduções e contextualizações são necessárias pois a ignorância sobre a nossa cultura é imensa lá fora – mas, felizmente, proporcional à curiosidade e receptividade manifestadas –. Finalmente chega o momento de, no estudo individual e nos ensaios, pôr em prática tudo o que sabemos ou intuímos sobre a interpretação: a escolha dos instrumentos correctos, a afinação e o temperamento adequados, o tempo daquela dança, do ornamento mais belo para esta melodia, a proporção daqueloutro compasso, a melhor realização de uma harmonia no baixo contínuo… E então sim, é o momento certo para adicionar a nossa musicalidade, o nosso instinto, a nossa paixão: o concerto pode finalmente começar.
[…]
A escolha do Ludovice Ensemble para representar Portugal no Encontro de 2011 da Rede Europeia de Música Antiga (REMA) a convite da Casa da Música, realizado no Porto, bem como o lançamento em 2012 do nosso primeiro CD para a editora franco-belga Ramée/Outhere (em que nos mantivemos fiéis ao nosso primeiro e eterno amor, o barroco francês) trouxeram ao grupo uma maior notoriedade e, inevitavelmente, convites para festivais e salas de concerto no estrangeiro. A par dos repertórios internacionais, muitos programadores pedem-nos – exigem-nos! – música portuguesa. A Europa vai finalmente descobrindo que há uma outra “música antiga” para lá do eixo Alemanha-Áustria-Itália, com um pouco de França e Inglaterra, para desenfastiar… Nos últimos anos, a Espanha tem vindo a afirmar-se no panorama internacional, graças aos seus magníficos repertórios, grupos, intérpretes e editoras. Faltava “cumprir-se Portugal”; cumprir-se sobretudo de uma forma fundamentada – mas não fundamentalista nem monótona –, arrojada – mas não populista –, imaginativa – mas não fantasiosa –, e virtuosa – mas não tecnicista –.
São estas as qualidades que nos têm reconhecido internacionalmente (cá “dentro”, o processo é sempre mais complexo, mais demorado)… Este ano, o Ludovice Ensemble abrirá em Agosto a 47.ª edição do Festival de La Chaise-Dieu em França, com um programa dedicado a David Perez e à Lisboa do seu tempo, e preludiando uma das primeiras apresentações modernas dos seus Mattutini de’ Morti. Do nosso programa consta a primeira audição moderna de duas cenas operáticas de Perez e de uma ária de João Cordeiro da Silva (fl.1756-1808), bem como obras de Francisco António de Almeida, José António Carlos de Seixas (1704-1742), Pedro António Avondano e José Palomino (1755-1810). Poucos dias depois apresentaremos um concerto com um programa semelhante no Festival de Vivarais-Lignon, mas desta vez focando as ligações musicais e culturais entre Roma e Lisboa, nos alvores do século XVIII, em que Almeida e Seixas se reunirão a Corelli (1653-1713) e Händel (1685-1759). Uma temática muito semelhante, motivada pelas comemorações dos 300.º aniversário da morte de Arcangelo Corelli, presidirá à nossa participação, em finais de Julho, no Festival de Música Barroca de Praga, na República Checa; o mote é mais uma vez as ligações entre Roma e Portugal, e revisitaremos as obras de Carl’Ambrogio Lonati, Pietro Paolo Capellini (meados do século XVII) e Michelle Mascitti (1663/64-1760) preservadas em Coimbra, desta vez complementadas com obras de Domenico Scarlatti, Carlos de Seixas e do quase desconhecido Pedro Lopes Nogueira (início do século XVIII), num recital de violino e contínuo que culminará com as célebres Folias de Corelli – que foi sem dúvida o “tema” português mais conhecido na Europa.
[…]
Mas a verdade é que a música portuguesa é apaixonante, e uma vez experimentada não a conseguimos abandonar; mais do que ser parte do nosso património, faz parte de nós e reconhecemo-nos nela; sentimos a obrigação de a revelar, de a defender, de a acarinhar. E é cada vez mais claro que, sobretudo no estrangeiro, sempre nos pedirão mais música portuguesa. E se não formos nós a fazê-lo, quem o fará?
ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 8 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).