Sobre a peça

Esta peça põe em música Singra o navio…, um dos poemas que integram Clepsidra de Camilo Pessanha. Como boa parte dos poemas desse livro, trata-se de um soneto decassílabo, estrutura poética eminentemente clássica. Essa estrutura — rigorosa, clara e explícita — é integrada por um material poético que, como é característico do autor, é rico em significados ambíguos e implícitos, em sugestões e alusões. Neste caso, a temática é marítima, evocando imagens de naufrágio. Essas imagens vão sendo gradualmente reveladas: inicialmente, o sujeito poético assume uma certa distância face ao que observa (“Sob a água clara / Vê-se o fundo do mar […] / A distância sem fim que nos separa!”); depois, descreve imagens aparentemente inocentes e delicadas do fundo do mar (“Seixinhos da mais alva porcelana […] / Repousam, fundos, sob a água plana.”); por fim, constata que o que vê, afinal, são destroços de naufrágios, e que os seixinhos e conchinhas de que falava são, na verdade, restos de unhas, dentes e ossos.

A música procura seguir de perto o texto poético, sobretudo a nível semântico e fonético. Assim, as imagens poéticas do texto — como o “navio”, a “fria transparência luminosa”, a “água plana”, os “destroços” ou a “fúlgida visão” — sugeriram diferentes texturas orquestrais que, frequentemente, se sobrepõem em sonoridades mais complexas. Além disso, a peça procura servir-se das inflexões naturais do texto, da sua prosódia e sonoridades, da lógica de abertura ou fechamento das vogais, de simetrias ou padrões métricos e estróficos: assim se inspira na musicalidade do próprio poema. Nesse contexto, insere-se num conjunto de peças que tenho composto sobre poesia portuguesa (especificamente de Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade e Fiama Brandão), de que tem resultado o meu cada vez maior fascínio pelas potencialidades musicais da língua portuguesa.

Singra o navio. Sob a água clara

Vê-se o fundo do mar, de areia fina…

— Impecável figura peregrina,

A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,

Conchinhas tenuemente cor-de-rosa,

Na fria transparência luminosa

Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara.

Tantos naufrágios, perdições, destroços!

— Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira…

Dentinhos que o vaivém desengastara…

Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…

Camilo Pessanha (in Clepsidra)

Sobre a experiência

Não é todos os dias que se tem a oportunidade de trabalhar com a Orquestra Gulbenkian. E não é todos os dias que se tem a oportunidade de trabalhar desta forma com uma orquestra: em várias fases, separadas por vários meses, havendo a possibilidade, após uma primeira sessão de ensaios, três meses antes do concerto final, de rever ainda a partitura (assim se escapando à habitual pressão que o pouco tempo de ensaios provoca). Só por isso seria já especial este projecto. Mas outras razões o tornaram tão interessante: o trabalho com o maestro e compositor Magnus Lindberg, que nos deu sempre excelentes soluções (tanto a um nível mais estritamente compositivo como a um nível mai pragmático); o trabalho com os cantores (no meu caso, com a Inês Simões), a cujo talento e incansável aplicação todos nós, compositores, muito devemos; e o trabalho paralelo com os outros compositores, que nos permitiu trocar muitas ideias, enriquecendo-nos mutuamente. No meu caso, foi também fantástico poder realizar um dos meus sonhos: escrever um Lied orquestral.

NOTA BIOGRÁFICA

Licenciado em Economia (Faculdade de Economia; Universidade do Porto; 2006), Mestre em Composição e Teoria Musical (Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo – ESMAE; Instituto Politécnico do Porto – IPP; 2010) e Doutorando em Composição (King’s College; Universidade de Londres; 2012). Como principais professores destacam-se D. Andrikopoulos, F. Lapa e G. Benjamin (Composição); C. Guedes (Música Electrónica); M. Ribeiro-Pereira, J. Oliveira Martins e Silvina Milstein (Teoria Musical). Contactou ainda com Lachenmann, Klaas de Vries, Lindberg, Harvey e Saariaho, e em workshops com o Remix Ensemble, Quarteto Diotima e Orquestra Gulbenkian.

Em 2009, foi Jovem Compositor em Residência na Casa da Música. Recebeu encomendas da Casa da Música, Festival Musica Strasbourg, European Concert Hall Organisation, Chester&Novello, Banda Sinfónica Portuguesa e Antena 2/RDP.

As suas obras têm sido tocadas em Portugal e no estrangeiro, destacando-se os Festivais de Música Contemporânea de Witten, na Alemanha (2009), e de Estrasburgo, em França (2010 e 2012). Conquistou o 3.o Prémio no Concurso Internacional de Composição Gian Battista Viotti (Itália, 2007); Menção Honrosa no 3.o Concurso Internacional de Composição da Póvoa de Varzim (2008); e 2.o Prémio no Concurso Internacional de Composição GMCL / Jorge Peixinho (2014). Em 2010, representou Portugal na Tribuna Internacional de Compositores.

É professor de Composição, Análise e Estética musicais (ESMAE-IPP; 2009) e investigador em teoria das artes (CITAR/Universidade Católica; 2014).

Texto publicado na Glosas nº11, p. 56

Sobre o autor