entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santos

transcrição de Duarte Pereira Martins e Philippe Marques

Podíamos talvez começar pelas origens familiares do teu pai…

Primeiro do lado do pai, que talvez tenha tido mais influência na vida dele, embora tenha falecido muito cedo. O meu avô, António Braga Santos, vinha de uma família com posses: o seu pai, Manuel Joaquim dos Santos, tinha enriquecido no Brasil. António e as duas as irmãs tiveram uma educação primorosa, tanto do ponto de vista literário como musical. As duas raparigas tocavam piano e o meu avô tocava violino. Segundo me disse a minha tia Leonor, irmã de meu pai, chegaram a colaborar com a Sociedade de Concertos e com a Academia de Amadores de Música.

De onde vinham os proventos da família?

Esse avô brasileiro emigrou muito novo, com 14 anos, e fez fortuna na cidade de Santos, daí o ter mudado o nome de Baltazar para Santos. Voltou para Portugal nos anos 70-80 do século XIX, quando tinha uns 40 anos, para casar-se com uma rapariga que tinha conhecido por um retrato que um familiar lhe tinha enviado. Ela vinha de uma família com algumas terras na região de Santarém e foi na quinta da família que lhes nasceram os três filhos: o meu avô, António Braga Santos, e duas irmãs. Uma delas, a tia Santana, casará mais tarde com o famoso médico José Bénard Guedes, fundador do IPO e dos Hospitais Universitários de Lisboa, e da Radiologia em Portugal também. A outra, a tia Aurora, terá um casamento muito jovem com um senhor inglês, também conhecido nos meios lisboetas, um Shirley, do qual entretanto se divorcia porque ele, pelos vistos, era um doidivanas. A rapariga vai então como enfermeira para a frente em 1917 e quando volta conhece o famoso médico cirurgião José Paredes, de quem tem um filho, o actual cirurgião Fernando Paredes. Portanto, as duas irmãs do meu avô casaram e tiveram ligações com médicos de renome na época.

Entretanto o meu avô recebe a sua herança e casa-se, já tardiamente, por volta dos 37 anos, com a minha avó Virgínia Joly. Ela vinha de uma família de comerciantes da Baixa lisboeta, ourives de origem francesa que vieram para Portugal em finais do século XVIII, no reinado de D. Maria I. Durante muito tempo, por causa das raízes do lado da minha avó e por causa do nome do meu pai achei que eram de origem cristã-nova, mas não! Fui à Torre do Tombo verificar isso e nem de um lado, nem do outro. O Joly é um nome comum no Sul da Bélgica e no Norte da França. Essa família que se estabelece na Baixa de Lisboa em finais do século XVIII e que, felizmente, prospera, estabeleceu relações de casamento nomeadamente com a família Batalha, dos ourives da Casa Batalha.

A minha tia conta que o meu avô e a minha avó se terão conhecido num baile de Carnaval. Ele ficou apaixonado, a minha avó em nova era muito bonita. Ela ofereceu alguma resistência porque tinha tido um namorado que fora a grande paixão da vida dela, mas tinha falecido na batalha de La Lys, em 1918. Ficara, portanto, solteira aqueles anos todos, até ter mais de trinta anos. Na época não era uma idade casadoira…

Pouco tempo depois de estarem casados nasce o meu pai, em 1924, na moradia que tinham na Rua Pinheiro Chagas, casa essa que já não existe. Sete anos depois, em 1931, nasce uma filha, a minha tia Leonor.

Mas o meu avô teve uma desgraça na vida: tornou-se fiador de uma pessoa que não pagou a sua dívida e todos os rendimentos e a pequena fortuna que lhe tinham cabido por herança foram para pagar isso (na altura 700 contos eram uma fortuna – isto nos anos 20, mesmo a seguir ao casamento, ainda antes de nascer o meu pai). Teve que vender a casa e o recheio todo para pagar a dívida e teve que, obviamente, arranjar um emprego. Conseguiu um lugar na Rua das Escadinhas de São Cristovão, em plena Baixa, como guarda-livros e contabilista de uma empresa. Onde é que ele passava as tardes? Num sítio óbvio para tomar café, sobretudo um rapaz que era músico e que também gostava de escrever os seus poemas nas horas vagas, ou seja, no Martinho da Arcada. Terá conhecido o Fernando Pessoa nessa época. Eu sempre suspeitei, pela maneira como o meu pai falava de Fernando Pessoa e do pai dele, e pela precocidade, apesar de tudo, das primeiras canções, que teria havido alguma relação familiar…

Que não é nada conhecida…

Não, eu descobri isso há cerca de dois meses. Eles de facto conheciam-se perfeitamente: o meu avô chegava a casa e contava as suas conversas com o Pessoa e com os outros… Com o Botto, e com toda a gente que frequentava o Martinho da Arcada. Eu tentei, nos papéis que a minha tia conservou, verificar se havia alguma referência ou algum papel do Pessoa. Infelizmente, não. O que restou foram só poemas do meu avô, bonitos, enfim, uma poesia amadora, mas bem feita, rimada. Nada de especial, mas comovente porque se refere a muitos factos familiares e a outros da época, como, por exemplo, vitórias do Benfica e coisas muito engraçadas desse género. É um documento engraçado sobre a época. E era realmente no Martinho da Arcada que ele escrevinhava os seus poemas, tal como os outros que o frequentavam.

Por coincidência, tanto pelo lado da mãe como pelo lado do pai os avôs do meu pai faleceram muito cedo. Deixaram, portanto, filhos menores. A minha avó Virgínia é póstuma, o pai dela faleceu estava a mãe grávida; o meu avô António e as irmãs foram criados pela mãe viúva e tinham alguém para gerir a fortuna. É um milagre que duas senhoras viúvas, embora com alguns rendimentos, tenham conseguido criar de maneira capaz, e com sucesso, tanto de um lado como do outro, aquelas crianças.

A minha avó Virgínia tinha dois irmãos. Um deles era muito conhecido em Lisboa nos anos 20 a 40: chamava-se Augusto Joly e tornou-se falado por ter posto um processo à Câmara de Alpiarça por causa da herança Relvas. Era corretor, trabalhava na Bolsa e ele próprio conseguiu algum dinheiro. Era uma personagem engraçada e que merecia, talvez, uma biografia.

Quando o meu avô António teve que vender a casa, foi com a mulher e os dois filhos morar para casa da sogra, na Rua Capitão Renato Baptista, entre os Anjos e o Campo dos Mártires da Pátria; foi lá que o meu pai viveu até se casar em 1957.

Entretanto o meu avô sofria de dores de cabeça e de alguns problemas de saúde e acabou por falecer precocemente em Março de 1938. O meu pai já na altura andava no Conservatório, onde se inscreveu no ano lectivo de 36/37. Conta-me a minha tia que nunca se pôs sequer a hipótese de o meu pai continuar os estudos num sítio que não fosse o Conservatório, porque desde muito pequeno o pai dele tinha percebido, tinha entendido a vocação. Tinha-lhe dado aulas de violino e depois tinha-o posto mesmo a ter aulas com um professor. Nunca se pôs sequer a questão de ele seguir outra carreira que não fosse a música e quando acabou a Escola Primária inscreveu-se imediatamente no Conservatório. Acabou a Primária um pouco tardiamente, não sei exactamente porquê. É verdade que as crianças, na época, entravam mais tarde para a escola e também é verdade que o meu pai tinha recordações péssimas: ele detestou a Escola Primária! Estamos a falar do princípio dos anos 30, ou seja, da mudança para o Estado Novo. Portanto, uma escola duríssima do ponto de vista disciplinar. O meu pai era uma criança irrequieta, distraída…

Deve ter levado muitas reguadas…

A personalidade que veio a adquirir mais tarde já estava na infância, não é? A questão disciplinar deve ter sido para ele um sofrimento pavoroso. Mas a verdade é que lá concluiu a Primária com louvor e distinção e entrou para o Conservatório sem quaisquer problemas. Ele tinha o apoio do pai, que era um homem culto e encorajava as crianças no amor pelas artes, pela música e pela poesia. Todas as noites se sentava ao pé deles, antes de adormecerem, e obrigava-os a decorar um poema. Daí que toda a gente que conheceu o meu pai se lembra dele declamar estrofes d’Os Lusíadas, sonetos de Antero, vindos enfim daquele amor pela poesia que tinha.

Isso veio então mais do lado do pai do que do lado da mãe.

Completamente pelo lado do pai. A mãe também tinha tido uma boa educação mas era de facto o pai que se encarregava desta educação das crianças.

E a mãe tinha alguma ligação ao meio musical?

Não, não. Era uma pessoa relativamente mais simples. 

A morte do pai foi um grande choque. 

A morte do pai foi uma tragédia. Para já, o choque emocional. E depois o choque financeiro. O tio Augusto Joly, irmão da minha avó, deu-lhes uma ajuda inicialmente: pôs a minha tia num colégio interno de freiras, onde ela fez o seu curso e depois seguiu a carreira de assistente social. Mas o meu pai, que já tinha 13 anos e estava no Conservatório, foi mais ou menos entregue à sua sorte, com imensos problemas de consciência por ser ainda demasiado novo para poder trabalhar e ajudar a mãe. A carreira dele no Conservatório foi extremamente atribulada. Na época havia mais cadeiras de cultura geral do que há agora mas o que lhe interessava verdadeiramente era aprender composição e cometeu talvez o erro, normal numa criança de 13 anos que quer emular o pai, de se inscrever na cadeira de violino como instrumento.

Que não era uma coisa muito natural para ele…

Não… O violino para ele foi um tormento. O professor de violino idem, que era o velho Flaviano Rodrigues, enfim, com aquela escola de violino antiga. Entretanto, inscreveu-se também em piano porque se apercebe que o piano é igualmente necessário para a composição, mas vai perdendo os anos, ou por faltas, ou por desistência.

Foi aluno de quem?

Fez o primeiro ano de piano com Virgínia Vitorino. Entretanto faz as cadeiras de Acústica e de História da Música com o Luís de Freitas Branco e é aí que eles se encontram pela primeira vez, logo em 1940: foi nessas duas cadeiras que o Freitas Branco foi professor dele, no princípio dos anos 40.

O primeiro professor de Composição que o meu pai teve foi o Artur Santos. E eu suspeito que, além do João de Freitas Branco, tenha sido este que tenha chamado a atenção do Luís para o talento particular do meu pai. O João de Freitas Branco conta, no seu famoso artigo publicado na revista do São Carlos (que ainda é, obviamente, um artigo de referência), que terá chamado a atenção do pai para o caso do Joly que, de facto, andava a perder cadeiras e a perder um bocado o seu tempo naquilo. Entretanto deu-se a reforma do Ivo Cruz, a chamada “contra-reforma”. O meu pai terminou as cadeiras do Luís com altas notas (16 e 18), portanto este já o conhecia como aluno mas não o conheceria como compositor. E nessa altura ele já tinha umas coisinhas escritas, que provavelmente terá mostrado ao seu amigo João.

Dessas tentativas prévias de composição, há coisas anteriores à ida para o Conservatório?

Não, as primeiras coisas que aparecem são já do Conservatório e são obviamente exercícios, no princípio dos anos 40. Há umas peças para piano que são obviamente exercícios escolares e coisas de circunstância escritas para as primas, que também tocavam piano. A primeira coisa mais a sério para piano (instrumento para o qual o meu pai escreveu pouquíssimo) são duas peças que fez para o Sequeira Costa, quando este ia estudar para Paris: uma delas é uma adaptação duma peça coreográfica anterior, a outra é uma chamada Elegia Trágica, que seria instrumentada pelo João Paes muitos anos mais tarde.

Mas o que eu presumo que tenha acontecido é que o João de Freitas Branco tenha chamado a atenção do pai e que este, muito correctamente, tenha ido perguntar a opinião do seu ex-aluno e querido amigo Artur Santos, que tinha acabado de entrar como professor do Conservatório com uma altíssima média. Sei disso por causa duma conversa a que assisti entre o meu pai e o Artur Santos num gabinete do Quelhas. Eles eram muito amigos, começaram a falar de outros tempos e às tantas o meu pai agradeceu-lhe: “Eu nunca mais me esqueço que o Senhor Professor deu as maiores referências ao meu querido Mestre!”, “Mas também foi meu Mestre!” – dizia o Artur Santos. 

Isso conduziu às aulas particulares com o Freitas Branco.

A aulas particulares, porque ele queria andar para a frente e o sistema do Conservatório arrastava-o, não encaixava… Por insistência do próprio Luís, lá continua matriculado, lá vai fazendo uma cadeira ou outra, até que, em 45, surge aquela história estúpida, que eu não vou contar agora aqui porque já foi contada várias vezes, do processo disciplinar, por parte do Ivo Cruz…

Aquilo que o João de Freitas Branco conta no artigo é exactamente o que aconteceu? O teu pai terá dito que se recusava a levantar-se ‘porque nenhum respeito lhe merecia um perseguidor do seu mestre’?

Exactamente! E o meu pai achava que, estando em São Carlos, estava fora do domínio da autoridade do Ivo Cruz, com toda a razão! E o Secretário-Geral dá razão ao meu pai! E diz que a queixa do Ivo Cruz é improcedente. Só que o Ivo Cruz passa por cima do Secretário-Geral e apesar das cartas do Artur Santos e de outros professores do Conservatório para o Secretário-Geral da Educação dizendo que aquilo era um disparate e que não se podia pôr na rua um aluno daqueles, que era uma vergonha para o Conservatório, vai ao Ministro, ou ao Director Geral de Educação na época, que eram obviamente pessoas do regime, e pronto…

O teu pai foi efectivamente expulso?

Foi efectivamente expulso.

Pode dizer-se que o percurso académico dele ficou concluído a partir daí, depois teve só aulas particulares…

Ficou concluído. Quer dizer, o percurso académico em Portugal. Mas quero só acrescentar que estamos a falar de 45. Nessa altura já o meu pai tinha escrito as Cinco Canções sobre poemas de Fernando Pessoa, estava a escrever os Três Sonetos de Camões, estava a iniciar a composição da 1ª Sinfonia, que é terminada em 46, tinha escrito o Nocturno, que tinha sido tocado pelo Silva Pereira e pelo João de Freitas Branco no Conservatório. Tinha já 15 peças, portanto muita coisa escrita! É uma das razões pelas quais o Artur Santos escreve para o Secretário-Geral a dizer que é um escândalo que um rapaz que vai estrear a sua primeira sinfonia em São Carlos dirigida pelo Pedro Freitas Branco seja expulso do Conservatório! Era uma coisa um bocado escandalosa! Mas é o que realmente acontece. E eu suspeito que ele até terá suspirado de alívio, por ter uma desculpa para se ver livre daquilo.

Como passou a ser a rotina dele? A relação com o Freitas Branco era praticamente diária…

Sim. Sobretudo a partir da estreia da 2.ª Sinfonia, que é, digamos, a confirmação definitiva (se é que era precisa!) do talento do discípulo. Ele fica, então, comovidíssimo e escreve-lhe uma carta extraordinária! Desde essa altura, a conversa entre eles começa a ser diária até no sentido de rotina que o próprio Luís de Freitas Branco tinha estabelecido para si mesmo.

Portanto, o meu pai acompanhava-o nas temporadas que ele passava no Alentejo. Recorde-se que o Luís o convidara a escrever na Arte Musical logo em 1942, quando o meu pai tinha 18 anos; foi com essa idade que publicou o seu primeiro artigo, o que diz muito, apesar de tudo, do respeito que já tinha ganho.

E as aulas particulares quando é que começaram, sabes exactamente?

As aulas particulares devem ter começado logo em 42/43. São anteriores, são bastante anteriores à saída dele do Conservatório. Mas ele era uma esponja!…

Tudo isso coincidiu com o processo contra o Freitas Branco, essa é a relação umbilical desta história…

Claro, evidentemente! No fundo, o Ivo Cruz armou aquela confusão por causa do meu pai ter sido testemunha abonatória do Luís de Freitas Branco no processo do professor, no processo do Mestre. E portanto aquilo foi uma desculpa que ele arranjou para pôr aquele aluno na rua.

O teu pai alguma vez sanou esse trauma em relação ao Ivo Cruz (pai)?

No fim da vida, sim. Em grande parte devido à influência da minha mãe. Porque a minha mãe era muito amiga do maestro Manuel Ivo Cruz, filho dele. De infância, de adolescência, porque o Manuel Ivo Cruz e o meu tio João Falcão Trigoso tinham sido colegas no Liceu e a minha mãe gostava muito de música, o Manuel Ivo também, iam aos concertos, à ópera, encontravam-se, eram amigos de adolescência, desde miúdos. Por isso juntos tentaram sanar aquilo e lá conseguiram! O meu pai, no final da vida, lá concedeu uma reconciliação. Ainda por cima eles tinham uma casa em Cascais, sítio onde também nós passávamos as férias. Portanto encontrávamo-nos ali naquele meio social, que na altura era minúsculo, e era um bocadinho aborrecido o meu pai continuar a virar-lhe as costas.

Artigo publicado na Glosas nº3, p.18-30.

Sobre o autor

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Alexandre Delgado nasceu em Lisboa em 1965. Foi aluno particular de Joly Braga Santos. Recebe uma bolsa do Ministério da Cultura para prosseguir os seus estudos em Composição e Violino no Conservatório de Nice, tendo trabalhado com os professores Jacques Charpentier e Barbara Friedhoff, e concluindo o curso com distinção em 1989. Entre as suas obras, destacam-se o 'Concerto para viola e orquestra', 'Poema de Deus e do Diabo' e a ópera 'O Doido e a Morte'. Em 2001, o seu 'Quarteto de Cordas' foi gravado em CD pelo Arditti Quartet. Como violetista, ganhou em 1987 o Prémio Jovens Músicos. Foi membro da Orquestra Juvenil da Comunidade Europeia (1988-1989) e da Orquestra Gulbenkian (1991-1995). Tem-se dedicado ao estudo da música portuguesa, em especial a vida e obra de Luiz de Freitas Branco. Foi crítico musical do jornal 'Público' (1991-2001) e assinou o programa 'A Propósito da Música' na Antena 2. É autor do livro 'A Sinfonia em Portugal' (ed. Caminho 2002). Desde 2002 é director artístico do Festival de Música de Alcobaça.