entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santos
transcrição de Duarte Pereira Martins e Philippe MarquesArtigo
Mas voltando ainda ao impacto das primeiras obras orquestrais, começou com a Abertura Sinfónica n.o 1, em 1946…
Sim. Mas, obviamente, a 1.ª Sinfonia teve maior impacto, um grande impacto. As pessoas, segundo me contam testemunhas da época que presenciaram essa estreia (porque, como é evidente, eu não assisti) nem queriam acreditar que o meu pai, que tinha 22 anos (ia fazer 23) e parecia um miúdo, magrinho, com aqueles óculos redondos, tinha escrito aquela obra. Há fotografias da época que o comprovam, a aparecer no palco do São Carlos ao lado do Pedro de Freitas Branco. Uma estreia daquelas! E podemos dizer que foi mesmo um estrondo, um choque na sociedade lisboeta da época, porque desde as estreias do próprio Luís que não aparecia um sinfonista comparável, é evidente.
Nem comparável, nem sem ser comparável…
Sim, embora as críticas sejam muito engraçadas, porque quem as vai ler agora, à distância de décadas, vê que há alguns críticos (pelo menos um) que dizem que a música é difícil de ouvir, e que é algo estranha, e que é algo dissonante, e que é diferente do habitual, e que ele não gostou nada… O que é extraordinário, porque aquela primeira sinfonia do meu pai é do mais convencional que se pode fazer. Muito inventiva do ponto de vista melódico, com todas as qualidades que ele revelaria mais tarde, mas muito ingénua e o mais convencional possível! Do ponto de vista formal, acho…
Ainda que a linguagem não seja tão retrógrada quanto isso para a época, um pouco na linha dos sinfonistas ingleses…
Sim, sim. Se posso fazer aqui um parêntesis, a convivência mais próxima com os papéis e com a obra que tenho tido nos últimos anos tem-me feito reflectir sobre algumas coisas. Eu não sou musicóloga, só sou uma testemunha privilegiada de tudo o que aconteceu nas últimas quatro ou cinco décadas no meio da música em Portugal. Não sou musicóloga, de maneira nenhuma! Mas isso não quer dizer que não possa reflectir sobre alguns aspectos da composição do meu pai, do seu modo de compor e das soluções que encontrou para exprimir a sua vontade criativa e o que ele queria dizer. E penso que, sobretudo no início, o equilíbrio formal que tanta gente admira na obra de Joly Braga Santos tem a ver por um lado com os ensinamentos do Luís de Freitas Branco (parece-me evidente) e por outro lado com a necessidade de conter a explosão melódica e o jorro melódico que saía daquela cabeça dentro duma ordem clara e equilibrada. Essa necessidade de contenção duma criatividade exacerbada pela juventude justifica o equilíbrio formal das primeiras obras. É evidente que depois esse equilíbrio formal há-de manter-se, de outras maneiras e por outras formas, ao longo de toda a sua carreira. Independentemente das formas muito mais livres que passou a cultivar a partir de meados da carreira, essa noção de fundações que nós temos em toda a obra do meu pai (sabemos sempre onde estamos!) é inerente à sua escrita criativa.
Há reflexos clássicos de forma-sonata, mesmo quando a linguagem se torna quase atonal.
Exactamente. Mas penso que no início isso foi a tentativa de contenção do jorro melódico. Basta ouvir a 3ª e a 4ª Sinfonias, aquilo são melodias, melodias e mais melodias. Ele de alguma maneira tinha de pôr ordem nelas, não é? Estava no outro dia a pensar nisso e achei que tinha de dizer isso hoje, aqui.
E quanto às peças para canto e piano do início da carreira?
Se olharmos para o catálogo do meu pai, logo na primeira metade dos anos 40 encontramos uma extraordinária quantidade de obras para canto e piano, nomeadamente para meio-soprano ou barítono e piano, algumas das quais foram orquestradas mais tarde. Há duas razões para isso. Uma delas é a Carmélia [Âmbar], evidentemente. Outra é o facto de, na época, o Luís de Freitas Branco, para além da 4ª Sinfonia e de outras obras, estar a trabalhar em motetes e muita coisa para canto e piano; isso terá encorajado o meu pai a explorar esse meio. Por um lado era um tipo de obra que podia ser facilmente executado. Por outro, ele de facto tinha amigas cantoras no Conservatório e teve uma paixão por uma meio-soprano muito conhecida chamada Carmélia Âmbar, que ainda hoje é viva e teve a enorme generosidade de me ceder a sua correspondência com o meu pai. Nela fui recolher imensos elementos da sua rotina diária e do seu modo de composição, que agora conto nesta entrevista. Para além de ter havido uma paixão, infelizmente não correspondida…
Foi a primeira grande paixão dele?
Foi a primeira grande paixão dele, infelizmente não correspondida porque a Carmélia, na época, estava apaixonada por outra pessoa. Mas ele escreveu realmente aquela quantidade enorme de canções que agora fazem as delícias das cantoras da actualidade e que têm essa razão curiosa.
Coincidiram também com a criação da Juventude Musical Portuguesa…
Sim, de cujo núcleo fundador ele fez parte com o Luís de Freitas Branco, o João de Freitas Branco, o Nuno Barreiros, o Humberto de Ávila, todo aquele grupo a que depois se juntou a Carmélia Âmbar, o José Carlos Gonçalves…
Uma coisa que o teu pai viveu intensamente…
Intensamente! E que lhe deu um trabalhão e cuja organização o ocupava todos os dias. Isso vê-se na correspondência com a Carmélia: todos os dias ele ia lá, trabalhava, organizava, fazia telefonemas, arranjava pianos… fazia tudo! (risos) Com aquele entusiasmo da juventude.
Entretanto que é que fazia para ganhar a vida?
Nesta fase deu-se uma coisa muito importante, que foi a sua entrada para o Gabinete de Estudos Musicais [da Emissora Nacional]. Na altura já ele trabalhava na rádio, na parte clássica, com o João de Freitas Branco, a pôr discos de música clássica, sentados numa sala com um gravador e um microfone.
Foram os inícios da Antena 2: eles os dois sentados no chão, só a pôr discos, sem locução! Mas a entrada para o Gabinete de Estudos Musicais permitiu ao meu pai e aos outros ter um salário para compor. Os outros eram Artur Santos, o Armando José Fernandes, o Croner de Vasconcellos… o único que não entrou foi o Graça, por razões que toda a gente conhece. A partir daí o meu pai tem um ordenado mensal, coisa que nunca tinha tido antes. Até então vivia de lições esporádicas de composição, que dava a quem lhe aparecia à frente: o João Paes foi aluno do meu pai durante anos, o António Victorino d’Almeida, o Atalaya… alunos particulares que o Luís encaminhava para o meu pai porque sabia das dificuldades que ele tinha.
O Freitas Branco também o ajudou financeiramente…
Sim. As temporadas que ele passava em Reguengos!
Mas não foi só o Freitas Branco. Havia um amigo dele, médico, que também o ajudava e que ele conheceu através do primo Fernando Paredes. É uma das razões pelas quais há tantos alunos de Medicina no início da Juventude Musical: com dois primos direitos médicos ou a formarem-se para médicos, o que o meu pai mais tinha era amigos na Faculdade de Medicina e ia lá frequentemente fazer conferências, porque eles gostavam de música, através da Juventude Musical; ele recrutou dezenas de estudantes de Medicina para a Juventude Musical Portuguesa através dos dois primos direitos. Outras pessoas que o ajudaram financeiramente foram o tio Augusto Joly, o José Carlos d’Almeida Gonçalves, em casa de quem ele passava uma parte do Verão, a tia Aurora Braga Santos, que morava a cinco minutos da casa dele e onde ele ia almoçar todos os dias e ficava para trabalhar no piano, porque ele não tinha piano em casa.
Nessa altura ele vivia com a mãe.
A avó entretanto falecera e a mãe não tinha rendimentos. Para sobreviver, como a filha tinha saído de casa para um colégio e a casa era grande, alugou o quarto a uns hóspedes e fazia bordados e comida para fora. Era o meu pai que a ajudava, o tio Augusto Joly e pouco mais. O meu pai tentava tornar-se o menos pesado possível indo almoçar ou jantar, à vez, a casa de um primo, de um tio ou de um amigo. O José Carlos Gonçalves conta isso com alguma comoção ainda hoje porque ele de facto, um dia, declarou aos amigos: “Não tenho dinheiro para comer, não posso sobrecarregar a minha mãe, vamos combinar um dia para eu ir almoçar ou jantar.”. E eles combinaram, organizaram-se e ele ia almoçar e jantar a casa de um amigo diferente ou de um primo cada dia da semana. Andava a pé, logo não gastava em transportes, e o tio Augusto Joly dava-lhe roupa que a minha avó cuidadosamente costurava à medida dele.
Em 1948 o teu pai foi estudar com Scherchen.
Foi a primeira saída dele ao estrangeiro, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura, no Verão de 48. Esteve três meses em Veneza a frequentar o curso do Herman Scherchen e mais tarde teve aulas particulares com ele em Lugano. Esse foi realmente o seu primeiro contacto com a música europeia e com um grande professor e grande maestro. E foi a primeira saída ao estrangeiro, considerando que ele tinha passado toda a sua juventude e adolescência primeiro com a guerra de Espanha, depois com a 2.a Guerra Mundial. Em 48 já havia comboios. As linhas tinham começado a ser reconstruídas e ele foi de comboio para Veneza, uma viagem longa e complicada, mas lá conseguiu chegar. E foi lá que conheceu uma personalidade que se viria a tornar importante na sua vida que é o Bruno Maderna, para além do próprio Scherchen, com quem estabeleceu uma imediata empatia. Esse curso, para ele, foi uma abertura de horizontes, muito profícuo e uma grande felicidade. Coincidiu, aliás, curiosamente, com a composição da 3ª Sinfonia, que ele interrompeu para ir para Veneza e que só terminaria no Verão seguinte, em 49. Antes disso tinha tido o magistério do Pedro de Freitas Branco, que continuava a fazer todas as suas estreias; o meu pai ia assistir a praticamente todos os ensaios da orquestra da Emissora Nacional e portanto muito aprendeu com o Pedro de Freitas Branco. Mas esse curso do Scherchen foi para ele uma revelação.
A Abertura Sinfónica nº 3, de 1954, foi dedicada a Elisa de Sousa Pedroso.
Sim, uma mecenas das artes que, durante décadas, fez o papel que seria também o da Marquesa de Cadaval. Foi uma grande apoiante e promotora do Círculo de Cultura Musical e
da Juventude Musical Portuguesa. O meu pai conheceu a Sr.a D.a Elisa (como a tratavam na época) através do Luís de Freitas Branco, passou a frequentar o círculo que ela tinha e que se reunia periodicamente em sua casa. Ele acabou por lhe dedicar essa Abertura Sinfónica, como gratidão pelo apoio da Elisa de Sousa Pedroso ao 1.o Congresso da Juventude Musical, que passou por várias vicissitudes, incluindo as dificuldades em ter autorização do Governo (coisa que aliás se repetiria curiosamente em 68 e terá sido a Marquesa de Cadaval a fazer a mesma diligência…). A Elisa de Sousa Pedroso tinha obviamente contactos junto do Governo, diz-se aliás que era amiga e visita de casa de Salazar; e portanto conseguiu isso. Ainda por cima essa Abertura Sinfónica toca-se imenso e é minha favorita das três. Ela, com certeza, terá ficado grata. Eu não cheguei a conhecê-la, infelizmente.
Entretanto em 1955 morre o Luís de Freitas Branco…
Na altura o meu pai já estava director da Sinfónica do Porto e foi para Lisboa disparado, foi uma tragédia. Mas pelo meio deram-se coisas curiosas. Em 1951/52 é extinto o Gabinete de Estudos Musicais; o meu pai entra em pânico porque vai perder o ordenado mensal que lhe permitia, evidentemente, pagar as suas despesas. O que lhe vale é que, entretanto (já agora conto isto aqui pela primeira vez, é uma história que ninguém sabe), nesse interregno do fim do Gabinete de Estudos Musicais, que acaba por se verificar só a partir de 1952/53 (eles já anunciam em 51, mas aquilo vai-se prolongando), ele tinha recebido uma encomenda, através da Emissora Nacional, ligada ao Plano Marshall. E o que era? O Plano Marshall tinha instituído uma organização cultural, sediada em Paris, chamada a Telecine France, que estava encarregue, digamos assim, do restauro e da reanimação da vida cultural europeia, e sobretudo da cooperação europeia. Fazia tudo, desde filmes de propaganda, que ainda hoje podemos ir ver na Cinemateca (encomendava-os a realizadores europeus), até a encomendas directas a artistas, pintores, escultores, poetas, músicos, de toda a qualidade.
A Amália teve uma encomenda do plano Marshall! E quando chega o pedido à Emissora Nacional, o Pedro do Prado indica o nome do meu pai, que faz um contrato com esta organização, que lhe paga algo como 15 mil dólares.
Era bastante para a altura.
Era! Ele refere-se na sua correspondência a esse dinheiro como “os dólares da América”. Tinha perfeita noção que se tratava de dinheiro americano, embora não tivesse sido pago em dólares, presumo que deve ter sido em francos e que o contrato tivesse vindo em francês (está lá em casa, esse contrato sobreviveu).
E qual era a obra?
A obra desapareceu! Desapareceu tal como os arquivos da dita organização. Eu procurei em todo o lado, incluindo o arquivo Marshall, a Biblioteca do Congresso, a Biblioteca Jean Monet e o arquivo Jean Monet, porque, como se sabe, o plano Marshall deu origem à Comunidade Económica Europeia e podia ser que o arquivo Jean Monet tivesse ficado com estes arquivos, visto que estavam sediados em Paris. A Biblioteca Nacional de França também não tem nada, foram eles que mandaram para a Library of Congress. Do arquivo Marshall, sabem da organização mas não têm nada nos arquivos nem sabem onde estão.
Até parece uma coisa portuguesa…
Pois! E imaginas o trabalhão que isto me deu. A obra era uma abertura sinfónica para uma orquestra até relativamente pequena, para ser executada (e terá sido) em Paris num grande concerto em que foram executadas obras do Bruno Maderna e de gente nova daquela época. Estamos a falar de 49, a encomenda é desse ano. E será esse dinheiro que ele recebe em finais de 49 que lhe permite sobreviver ao susto do encerramento do Gabinete de Estudos Musicais, antes de ir para o Porto em 54-55.
Como é que surgiu essa oportunidade?
O meu pai tinha já uma preparação muito boa quando foi convidado, através dos bons ofícios de um senhor muito influente na altura, no Porto, chamado Rebelo Bonito, junto do Ino Savini, para se tornar primeiro Maestro Assistente e depois, com a saída do Savini, Maestro da Orquestra do Conservatório.
Durante esse anos no Porto, que para ele foram felizes e em que ele se sentiu realizado, teve a oportunidade de dirigir não só os clássicos (os compositores do cânone, como se diz agora), mas também os contemporâneos e os colegas. Promove concertos de música moderna (então não se dizia de vanguarda) mas de música portuguesa, com obras do Graça, do Artur Santos, do Croner de Vasconcellos e de todos os outros. Do Luís de Freitas
Branco também, evidentemente: dirige imenso Freitas Branco, muitas coisas que o Pedro dirigia. Para ele foram anos, por um lado, felizes e realizados e, por outro, de encomendas, muito trabalho. Outro aspecto da ida para o Porto foram os contactos com algumas personalidades da vida musical portuguesa que eram influentes na época e que viriam a continuar a ser influentes e com quem ele travou uma amizade até ao fim dos seus dias, nomeadamente as irmãs Helena e Madalena Sá e Costa, a Guilhermina Suggia, que ele conheceu lá, e os compositores do Porto, mais novos, que ele não conhecia. Foram anos, para ele, muito felizes.
Ele morava sozinho?
Morava em casa de uns senhores, terá sido o Rebelo Bonito que lhe arranjou um quarto em casa de uns amigos que tratavam dele. Entretanto, no âmbito das actividades da Juventude Musical Portuguesa, vinha constantemente a Lisboa, tinha sempre cá trabalho. E é num desses concertos da Juventude Musical Portuguesa que conhece a minha mãe, que estava na altura a estudar canto com o Tomás Alcaide e piano com o Lourenço Varella Cid. Adorava música, não quis terminar o liceu, não quis prosseguir os estudos na faculdade e o avô, José Falcão Trigoso, que era um pintor conhecido em Lisboa e no Porto e que foi quem a criou, tinha-a, de facto, encorajado a seguir essa via dos estudos musicais. Nesse âmbito ia aos concertos, foi lá conheceu o meu pai no princípio de 56 e apaixonaram-se.
Em que ano nascera a tua mãe?
Em 1935, portanto faziam uma diferença considerável, 11 anos. Casaram em Janeiro de 57, os dois de luto ainda, porque entretanto aconteceu uma tragédia: o meu bisavô adoeceu e acabou por falecer em Dezembro de 56. A minha mãe ficou desesperada porque, para ela, o avô tinha tido exactamente a mesma função, no fundo, de pai que o Luís de Freitas Branco tinha tido para Joly. Era essa realmente a relação que eles tinham, a de pai e filho. Tudo aquilo foi uma tragédia e a minha avó encorajou-os a casar o mais depressa possível. Alugaram uma casa em Gondomar e foram viver para o Porto. O meu pai tinha reiteradamente solicitado ao Instituto de Alta Cultura, após a viagem de 48, uma nova bolsa de estudo para voltar a Itália, para estudar. Foi sempre recusada, por uma razão ou por outra, sempre com informações negativas da PIDE, provavelmente porque ele terá andado metido naquela história do MUD juvenil na época. Alguns amigos da Juventude Musical Portuguesa tê-lo-ão incitado a assinar um papel ou outro. Ele detestava política e era a última pessoa a meter-se em coisas políticas, mas enfim…
Assinou?
Assinou. Resumindo e concluindo, as bolsas foram-lhe constantemente negadas. Até que houve uma intervenção de uma amiga da minha avó, muito amiga da irmã do Marcello Caetano, que na altura era Ministro do Ultramar, acho eu. Para grande surpresa dos meus pais, que não sabiam absolutamente de nada, parece que o Marcello terá ido assistir a um concerto com uma obra do meu pai e estava sentado ao lado do Director do Instituto de Alta Cultura (isto foi contado posteriormente pelo próprio Director), perguntando-lhe: “Mas afinal este rapaz está cá? Já o mandaram estudar para fora?” E o Director do Instituto de Alta Cultura, que acabara de recusar mais um pedido, ficou muito atrapalhado e resolveu mandar o meu pai para fora rapidamente. Resultado: recebem um telefonema no dia 1 de Abril de 57, julgando obviamente que era uma brincadeira de algum amigo mais brincalhão, a dizer que lhes tinha sido concedida a bolsa. De facto, recebem a carta a 15 de Abril.
A minha mãe desmancha a casa rapidamente e viajam de barco para Roma. O meu pai começa as aulas no Conservatório e a minha mãe decide inscrever-se também, uma vez que estava ali sem fazer nada… fez lá o exame de admissão ao Conservatório, passou e entrou logo para o 4.o ou 5.o grau. Viveram aqueles anos em Roma, com viagens. Aproveitaram para ir ao Festival de Siena, aos festivais todos, viajaram, foram a concertos.
Em 57-58 estiveram em Lugano durante uns meses, enquanto o meu pai fez um curso com o Scherchen. Entretanto eu nasço em Outubro de 58, no intervalo entre duas bolsas; os meus pais voltam a Itália em Março de 59 e levam-me com eles para Roma.
Em 1960 aparece lá o Peixinho, já com uma bolsa da Fundação Gulbenkian (tinham acabado de abrir as primeiras bolsas); eles conhecem-se através da Embaixada e travam amizade. Foram anos de abertura, de aprendizagem, de descoberta de novas músicas. Conheceram Malipiero por causa do Festival de Siena, assim como conheceram o Luigi Nono, que o meu pai já tinha conhecido em Veneza, mas retomaram o contacto em Roma. O meu pai continua a compor furiosamente. Compõe Viver ou Morrer, o Divertimento I, o Concerto para Viola, digamos que são as grandes obras desta fase. O Divertimento é estreado num concerto de música portuguesa que o meu pai é convidado a dirigir em Nápoles, em 61. A Mérope é estreada em São Carlos com um sucesso estrondoso, em 1959. Logo a seguir vêm o Concerto para Viola e o Divertimento I, perto de 61. O Concerto de Viola é estreado pelo François Broos, para quem o meu pai o escreve, em 1960, em São Carlos, mais uma vez dirigido pelo Pedro de Freitas Branco. O meu pai dirige a Mérope e depois dirige este concerto em 61, já pouco antes de voltar para Portugal definitivamente. Foi um concerto transmitido pela RAI, só de música portuguesa, em que se estreia uma obra do Peixinho, outra do Cassuto e esta do meu Pai. Mais algumas obras de compositores portugueses dos séculos XVII e XVIII compõem o resto do programa.
Fotografia: Joly Braga Santos com senhora não identificada, Sequeira Costa, Grazi Barbosa e João Paes, em Reguengos
Artigo publicado na Glosas nº3, p.18-30.