APONTAMENTOS EM TORNO DE MÚSICA E TRANSDISCIPLINARIDADE
O presente artigo, parte II de “Mauricio Kagel e o Teatro Instrumental”, artigo publicado no número anterior, prossegue com o estudo da interactividade disciplinar focando-se uma segunda tendência designada por música cénica, cujo termo é aplicado por Karlheinz Stockhausen (1928-2007) para definir a sua investigação músico-teatral.
Realça a criação em várias dimensões (o som, o gesto, o texto, a imagem, o espaço, etc.) e sua conexão, submetendo-as a uma organização global específica, obedecendo aos princípios que regem a estruturação da matéria do som, à visão subjectiva do encenador e versão pessoal do espectador. Apela a todos os sentidos propondo-se o desenvolvimento e aperfeiçoamento da sensibilidade e da capacidade de compreensão, sendo a faceta espiritual, nessas extensões perceptivas, caracterizada pela pluralidade (sempre crescente) de significados.
Esta interacção evoca necessariamente a ideia de Gesamtkunstwerk, a unificação entre música, teatro, canto, dança e artes plásticas, numa síntese que culmina na obra de arte total. Não se pretende a inclusão da música cénica de Stockhausen neste conceito estético, já que implica conotações históricas desde o final do século XIX, podendo, todavia, ser este considerado a pré-história das suas directrizes criativas.
Como características essenciais da sua prática composicional e relativamente à música cénica, salientam-se fundamentalmente: 1) a composição com fórmulas (formelkomposition); 2) a inexistência de narratividade; 3) a desierarquização entre música-texto; 4) o relacionamento entre o sonoro e o visual; 5) a obrigatoriedade de pesquisa dos músicos-‘actores’; 6) a adaptação ao espaço com indicações específicas e precisas da mise-en-scène.
1) A composição com fórmulas (formelkomposition) baseia-se na utilização de uma ‘característica musical’ relativamente estável e básica (fórmula), facilmente memorizável, cantável e reconhecível (consciente ou inconsciente), nas suas projecções, dilatações e compressões. É uma espécie de ‘código genético’, matriz, semente plural e polivalente, núcleo gerador de ‘vida’ e de onde deriva uma multitude de materiais ou elementos (sons que constitutem melodias, ecos, pré-ecos, encadeamentos, sons, ruídos, silêncios, etc.), reproduzindo-se em diferentes contextos. Desenvolve-se em liberdade (jogo intuitivo) ou em restrição (jogo totalmente determinado), estando a concepção formal da obra sistematicamente relacionada com a característica referida, e, neste sentido, sendo definida como pluridimensional, dinâmica, espacial e particularmente intensiva, já que se assegura um ‘rendimento’ (produção e proliferação) ilimitado apesar de sempre centrado, procurando o equilíbrio ‘arquitectónico’ da obra.
2) A inexistência de narratividade (com o desenvolvimento e pontos culminantes) suprime a estratégia de evolução e representação lineares de uma história literária ou dramática, a partir da qual se constroem ‘arquitecturas operáticas’, pretendendo-se o desenrolar de vários processos em simultâneo com diversas camadas de sucessão de acontecimentos, sendo as acções cénicas derivadas de um tema geral. Segue-se a lógica de associações livres e ‘explosões dinâmicas’, estreitamente relacionadas com a estrutura musical global, e com extensões abertas e incontroláveis gerando numerosas possibilidades. Criam-se linguagens mistas e não se utiliza um texto literário pré-existente, uma vez que este não se escreve previamente à composição, mas durante o desenvolvimento desta, visando a unificação e coerência criativas.
3) A desierarquização entre música-texto considera fundamental a existência simultânea destas duas vertentes evitando-se prioridades, já que a música cénica é composta pela totalidade dos ‘meios’, não se concebendo a composição desta para um texto ou separadamente deste e vice-versa. Compreende-se o sentido do texto no interior da obra, agindo num espaço vasto e aberto à produção de significação, não só pelo autor-compositor, mas também pelo ouvinte-espectador, sendo este intercâmbio anulado se existir uma separação entre as duas vertentes referidas. Pretende-se, no processo criativo, a invenção e pesquisa de linguagens híbridas transgredindo-se os limites daquelas já estabelecidas.
4) O relacionamento entre o sonoro e o visual alerta (o público) para a visualização dos gestos realizados na produção de um determinado resultado sonoro, tal como para a existência de um paralelismo entre estrutura musical-visual e a organização sonora-gestual. Refere-se, por um lado, a influência da música e teatro extra-europeus (a dança ou drama do Bali, a dança indiana kathakali, ou o nô japonês) com a “interacção composta entre o sonoro e o gestual, entre o audível e o visível”, onde “a gestualidade acústica e a gestualidade visual são fortemente desenvolvidas com a mesma exigência”, e, por outro lado, a do mito, sonho ou inconsciente, que possibilita a compreensão variada de significados e permite o desenvolvimento das capacidades de percepção e de compreensão do ser humano. ‘Transformam-se’ os instrumentistas em ‘figuras dramáticas’ (nas suas obras), com a composição dos ‘movimentos’ e ‘gestos’ de forma tão precisa como o som, sendo necessária a experimentação (em ensaios) fundada na colaboração estreita com o compositor, desenvolvendo propostas (várias tentativas e repetições) que se vão modificando até se estabelecer a versão final.
5) A obrigatoriedade de pesquisa dos músicos-‘actores’ exige que estejam ávidos e preparados não só para o aprofundamento de aptidões com para o alcance e desenvolvimento total das possibilidades técnicas (virtuosismo instrumental e vocal), de performance, e de alargamento do ‘instrumentarium’ (instrumentos acústicos e electrónicos), mas também para a memorização quase total da partitura, capacitando-os de meios de improvisação e invenção, propondo novas soluções (participação na composição até à elaboração definitiva da obra) através da aprendizagem e experimentação. Salienta-se nas aptidões referidas a valorização dos comportamentos ‘cénicos’, ‘movimentos’ e ‘gestos’ que se consideram como ‘naturais’ e ‘orgânicos’, tornando-se estes ‘música’ e vice-versa. Os músicos-‘actores’ funcionam como ‘personagens’ que utilizam o instrumento, o corpo e a voz, assim como determinados figurinos, representando ‘papéis’ e ocupando o espaço, com mudanças de posicionamento do corpo e instrumento.
6) A adaptação ao espaço com indicações específicas e precisas da mise-en-scène (nas partituras) manipula diversos meios em simultâneo, como o som e a matéria de origem verbal, a diversidade e flexibilidade instrumental (orquestra moderna), a espacialização variável, equipamentos acústicos e de iluminação, mas também as novas funções, comportamentos e movimentação espacial dos ‘intérpretes’ ou músicos-‘actores’, com a valorização das entradas e saídas em ‘cena’, a forma de ocupação, posição e deslocamento no espaço. Tornam-se uma ‘espécie’ de fonte sonora móbil, componente activa (real, física, energética) e integrante da composição espacial global, possibilitando esta mobilidade a exploração do espaço e o envolvimento com o público. Diferenciam-se os planos informativos (mise-en-scène) de acordo com os espaços de apresentação das obras e concebem-se versões ‘quasi-concert’, i. e., realizadas parcialmente devido à impossibilidade de concretização da sua totalidade no contexto de determinados espaços.
Dentre as obras resultantes menciona-se Kreuzspiel (1951), Zeitmasze (1955-56), Gruppen (1955-57), Carré (1959-60), Momente (1959), Zyklus (1959), Originale (1961), Mikrophonie I, II (1964, 1965), Aus den sieben Tagen, Oben und Unten (1968), Herbstmusik Nr. 40 (1974), Inori (1973-74), Harlequin (1975), Sirius (1975-77), Licht (1977-2003), Klang (2004-2007).
Destaca-se Originale, encomenda de Hubertus Durek e Carlheinz Caspari, designada (pelo compositor) de Musikalisches Theater e influenciada por Theater Piece (1952) de John Cage (convocando alguns dos performers originais como David Tudor e Nam June Paik). Abrange todos os parâmetros imagináveis da acção teatral (no ‘mundo’ criativo do compositor), utilizando como base e elemento unificador a obra Kontakte (1958-1960) (sons electroacústicos, piano e percussão), incluindo também gravações de Carré (1959-60), Gesang der Jünglinge (1955-56), Gruppen (1955-57) e Zyklus (1959). Na organização musical incorpora, em simultâneo, ‘acções’ variadas com indicações e marcações temporais precisas, de acordo com os princípios do serialismo (forma rigorosa), combinados com a estrutura improvisada e livre (influenciada pelo happening), onde ‘tudo’ acontece não ‘como se’ mas ‘tudo é’, no espaço e no tempo, com intervenientes (‘personagens’) que ‘agem’. As instruções são apresentadas em dezoito grupos e inseridas em ‘molduras’ ou ‘caixas’ agrupadas em sete ‘estruturas’ auto-suficientes (solo), que podem ser apresentadas em qualquer ordem, sucessivamente ou simultaneamente (até três), em três diferentes palcos, com a especificação temporal (segundos ou minutos). Uma série de ‘personagens’ são introduzidas, incluindo um pianista, percussionista, técnico de som, encenador, operador de câmera, ‘action composer’, ‘action painter’, poeta, cantor de rua, mordomo, vendedor de jornais, modelos, criança, animal, um maestro, cinco actores, e outras, ‘representando’ eles próprios (originais), i. e., um pintor representa O Pintor, um actor O Actor, e um poeta O Poeta, etc., com acções no palco feitas actividades normais: pintam, representam, lêem…, durante um tempo definido. Apesar de existir um certo nível de controlo, a improvisação é utilizada durante as performances (acções, entradas e durações, por exemplo), modificando-se de uma apresentação para a seguinte. A estreia da obra ocorre em 1961, Colónia, e posteriormente em Nova Iorque no 2nd Annual Avant Garde Festival (1964), sendo incumbida a documentação em filme (e fotografia) a Peter Moore (1932-1993), intitulando-se o resultado final Stockhausen’s Originale: Doubletakes (32’, 1964-93). Somente em 1993 é iniciada a produção e edição do filme por Barbara Moore, Susan Brockman e Jacob Burkhardt / Ross Gaffney Inc. (mistura sonora). Referem-se como elementos do elenco Allan Kaprow (encenador e direcção da apresentação), James Tenney (pianista), Max Neuhaus (percussionista), Robert Breer (realizador), Nam June Paik (‘action composer’), Anton Kaprow (criança), Olga Adorno e Lette Eisenhauer (modelos), Charlotte Moorman (cordas), Don Heckman (metais), Dick Higgins e Jackson Mac Low (actores), Robert Delford Brown e Ay-O (pintores) e Allen Ginsberg (poeta).
CONCLUSÃO
Pretendeu-se com estes dois artigos (partes I e II, respectivamente nas glosas 10 e 11) uma panorâmica sobre aspectos de interactividade disciplinar, área de estudo cujas múltiplas práticas implicam uma diversidade de dados históricos caracterizadores e delimitadores, propondo-se assim o estabelecimento de linhas condutoras e interligações. Incide-se no teatro musical e nas tendências dele derivadas, nomeadamente no ‘teatro instrumental’ de Mauricio Kagel (parte I) e na ‘música cénica’ de Karlheinz Stockhausen (parte II), impulsionando não só a reflexão sobre as várias manifestações artísticas interactivas disciplinares, o seu posicionamento no panorama artístico do século XX e XXI, mas também o encaminhamento para futuras e novas terminologias coerentes e conscientemente atribuídas – e não apenas a apropriação ocasional sem análise e estudo prévios.
Encontremos um par de ouvidos novos, de outra forma não ouviremos nada de novo, mas unicamente discos da nossa memória seculares e porosos.
K. Stockhausen
AGRADECIMENTOS
A autora agradece à sua família o permanente estímulo para a realização da pesquisa e escrita do presente artigo que surge do projecto já desenvolvido no seu percurso de pós-doutoramento, finalizado em 2013.
REFÊRENCIAS
HEILE, Björn, The Music of Mauricio Kagel, Ashgate, 2006.
PAVIS, Patrice, Dictionary of the Theatre, University of Toronto Press, 1998.
PAVIS, Patrice, Analysing Performance, The University of Michigan Press, 2003.
SALZMAN, Eric, DESI, Thomas, The New Music Theater, Oxford University Press, 2008.
STOIANOVA, Ivanka, “La musique scénique de Karlheinz Stockhausen”, inFERRARI, Giordano, Pour une scène actuelle, L’Hartmattan, 2009, pp. 61-92.
Fotografia: Outubro de 1994, no Studio for Electronic Music of WDR Cologne
Texto publicado na Glosas n.º 11, p. 75-76.
